Anotações sobre a sociedade feudal
Alessandro de Moura
Em tempos remotos havia, por um lado, uma
elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos
dissipando tudo o que tinham e mais ainda. [...] Assim se explica que os
primeiros acumularam riquezas e os últimos, finalmente, nada tinham para vender
senão sua própria pele. E desse pecado original data a pobreza da grande massa
até agora, apesar de todo o seu trabalho, nada possui para vender senão a si
mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham
parado de trabalhar. [...] Na história real, como se sabe, a conquista, a
subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência, desempenham o
principal papel. Desde o início, o direito e o trabalho têm sido os únicos
meios de enriquecimento [...]. Na realidade, os métodos da acumulação primitiva
são tudo, menos idílicos. (Karl Marx, “A assim chamada acumulação primitiva”.
In: O capital).
INTRODUÇÃO
Partimos da discussão sobre a escravidão na Grécia e no
Império Romano para compreender as bases sociais sobre as quais se desenvolveu
o feudalismo Ocidental. Este nasce dos restos do modo de produção escravista que
constituiu o Império Romano somado a elementos germânicos. A dissolução
do Império estendeu-se ao longo dos séculos, sendo que parte de seus territórios foram dominados e reorganizados por Carlos Magno, constituindo o Império
Carolíngio no final do século VIII.
A primeira fase feudal teve inicio durante o século IX, ganhando maior estabilidade durante a primeira metade do século XI e atingindo o seu
auge durante a primeira metade do século XIII. Após 1250 denota-se a fase de
declínio desse modo de produção. No século XVI os restos feudais deram base ao absolutismo europeu. (BLOCH, 2012: ANDERSON, 2013). As monarquias centralizadas, as Grande Navegações e o desenvolvimento e ascensão a burguesia marcaram o fim da fase feudal e o inicio da Idade moderna.
BASES SOCIO-HISTÓRICAS DO FEUDALISMO - GRÉCIA E ROMA
O sistema social que se desenvolveu ao longo da Idade Média é herdeiro da sociedade greco-romana e sua interação com os povos franco-germânicos. A servidão feudal, como desdobramento da desagregação do modo de produção escravo, foi uma invenção decisiva
do mundo greco-romano. Em Atenas, durante o século V a.C., metade da população era de pessoas escravizadas. O Império romano chegou a contar com cerca de 5 milhões de escravizados. Com a falência desse sistema, o trabalho escravo foi substituído pelo colonato e, posteriormente, pela servidão feudal. Sendo assim, cabe aqui uma breve retomada sobre as bases da sociedade greco-romana para compreensão sobre o sistema feudal.
Creta antiga - o inicio da sociedade europeia
A região da Grécia antiga era ocupada por diversos povos semi-nômades, sendo que, por volta do ano 5.000 a.e.c. já havia tribos sedentárias na região. O que surgiu disso, como produto da mistura cultural de diversos povo que beberam em culturas orientais, foi a pujante "civilização do mediterrâneo", sendo que, as primeira cidades foram construídas por volta de 2.000 a.e.c. na Ilha de Creta, como Cnossos, Faesto, Tílisso, Mália, Faina e Cânia. Essas cidades não eram fortificadas, porque "aparentemente, não havia perigo de ataque vindo da terra". (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 36). Nesse processo de desenvolvimento independente: "(...) As cidades viviam em paz umas com as outras, tendo, provavelmente conseguido uma espécie de governo federal para toda a ilha". (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 37). Ainda, segundo o autor: "(...) A maioria dos cretenses compõem-se de marinheiros e comerciantes. Eles ignoravam a guerra e se dedicavam às artes mais pacíficas (...). (Idem, p. 42).
Os cretenses eram politeístas e, segundo a mitologia grega, o
próprio Zeus teria nascido na ilha, apontado a relevância desta primeira fase
para a sociedade grega e transmitindo a ideia do início da civilização em
Creta. Também era de Creta o mito do Minoutaro (metade homem e metade touro)
que vivia em um labirinto.
Os cretenses criavam animais como cabras, bois e ovelhas,
produziam leite, iogurtes, queijos, etc. Também plantavam uvas, azeitonas,
trigo e cevada. Fabricavam objetos e ferramentas de cobre e bronze. Produziam
cerâmica (vasos, potes) e inventaram uma escrita própria.
A sociedade cretense se desenvolveu e dominou toda a região
do Mar Egeu. Todos os povos que viviam na região se viam sob hegemonia dos reis de Creta, constituindo laços de dependência política e econômica com os
cretenses:
"(...) Unida, Creta adquiriu gradativamente grande autoridade sobre os habitantes das ilhas vizinhas que, como cretenses, eram comerciantes piratas, e colonizadores e talvez tenham feito algum tipo de aliança sob a liberdade de Creta". (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 37).
No entanto, a sociedade cretense entrou em crise por volta de
1.400 a.C, perdendo seu poder político e econômico. Com isso, foi dominada
pelos Aqueus que já viviam na Península de Peloponeso desde 1.800 a.e.c., na
cidade de Micena. O mito da morte do Minotauro cretense, morto por Teseu (do
povo aqueu) com a ajuda de Ariadne, marcou a crise de Creta e a ascensão do
povo aqueu. Os Aqueus foram os protagonistas da guerra e vitória sobre Troia,
região da costa da Península Balcânica.
A hegemonia dos Aqueus de Micenas
Quatro povos formaram o povo grego: Aqueus, Eoleos, Jônios e Dórios. Os povos Aqueus chegaram na península de Peloponeso por volta de 1.800 a.e.c. Foram eles que construíram a cidade de Micena e desenvolveram a civilização micênica. Nesse período, eram os cretenses que dominavam toda a região do Mar Egeu, por isso os Aqueus eram obrigados a pagar tributos a Creta.
A sociedade micênica era predominantemente rural, com forte
poderio militar, era organizada em torno de palácios, o que lhe valeu a
designação de sociedade palaciana, isso porque era liderada pelo palácio e seus
guerreiros. Seus palácios eram fortificados como palácios-fortaleza
cercados por grandes muralhas. Além de micenas, também construíram as cidades
de Pilos e Tirinto. Em tal contexto, frente a uma infinidade de povos e
guerreiros nômade que circulavam pela Europa, os camponeses pagavam tributos
aos palácios para receber proteção.
Os micênicos também criavam animais como ovelhas, bois e
vacas, plantavam uvas e olivas. Possuíam uma camada de guerreiros e de
sacerdotes. Também possuíam escrita própria para registrar a vida nos palácios.
O auge da sociedade micênica se deu entre os anos 1600 a 1200 a.e.c., nessa fase,
os micênicos passaram a dominar a Ilha de Creta. Neste processo, a cultura
micênica se misturou com a cretense, surgiu assim a cultura creto-micênica.
Durante o século XIII a.e.c. sociedade micênica entrou em crise e foi dominada pelos Dórios. A dispersão de aldeões
dos entornos dos palácios, somada às guerras, disputa territoriais e invasões, desagregaram todo o sistema palacial micênico. Ainda assim, o intercâmbio cultural dos minoicos, micênicos e dórios lançaram as bases do que viria a ser a sociedade grega.
Dessa forma, a sociedade grega foi produto da desagregação do velho mundo creto-micênico. A dissolução desta sociedade produziu “os núcleos comunais que irão caracterizar a civilização grega” (ANDERSON, 1994, p. 59). Os antigos palácios foram reapropriados e, assim, nasceram as pólis como núcleos de poder. Este processo se deu entre os séculos XII e VII a.e.c., período também denominado de “Idade das Trevas”, talvez porque nele os núcleos urbanos sofreram refluxo, a produção e a economia regrediram. Ao longo da passagem da Idade das Trevas para o Mundo Arcaico, os núcleos urbanos se recompuseram na região da Grécia lançando as bases para a sociedade Ateniense e Espartana.
O domínio dos Dórios e a formação de Esparta: guerra e desigualdade
A cidade-Estado de Esparta foi fundada pelos Dórios, um povo guerreiro que chegou na Península de Peloponeso por volta do ano 1.200 a.e.c. Eles dominaram os Aqueus, missenios e demais residentes da região, reduzindo-os à escravidão. O dominadores iniciaram uma nova cultura na península e a sociedade passou a ser dividida entre espartanos e hilotas (dominados). Os dórios assimilaram a cultura, os deuses e tradições creto-micênicas, bem como as técnicas de agricultura e cerâmica. Ao mesmo tempo, os dórios inseriram a utilização do ferro em larga escala na península para a fabricação de armas e ferramentas. A cidade-Estado de Esparta se desenvolveu muito entre os anos 800-500 a.e.c., chegando a dominar toda a Península de Peloponeso.
A principal característica do sistema é a seguinte: um grupo residente em Esparta, e chamado espartano, dominava a população muitas vezes mais numerosa. Parte dessa população subordinada recebia o nome de hilotas. Eles viviam em fazendas isoladas no domínio da cidade e em algumas regiões da Missênia conquistada; sua posição era de escravos do Estado e as famílias dos espartanos utilizavam seu trabalho. Outra parte era chamada de perioeci ou provincianos (...). (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 92).
De acordo com a sua tradição, e tendo como necessidade diária a manutenção da escravidão dos hilotas por força das armas, os espartanos se viam obrigado a se devotar totalmente à guerra e ao combate terrestre, as crianças eram iniciadas na arte da guerra aos 7 anos e treinavam durante a vida toda: "Aos sete anos, os menino eram afastados de suas famílias e ingressavam num grupo militar comandado por um jovem espartano, onde aprendiam a marchar, ginástica, música e leitura". (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 95). Os grandes generais do exército eram também os maiores proprietários de terra e riquezas (expropriaram os antigos habitantes da península).
O poder politico era exercido por famílias da nobreza espartana, representada por um conjunto de instituições políticas e militares, que contava com dois reis - uma diarquia militar e política-, mas também com uma Assembleia popular de Espartanos e pela Gerúsia (conselho de anciãos). Conforme apontou Rostovtzeff:
Assim, os reis - dois reis, um de cada uma das família nobres dos Europôntidas e dos Agíadas - ainda estavamà frente do governo. Também havia um grupo chamado gerúsia ou Conselho de Anciãos, composto por trinta membros incluindo os dois reis. Esses membros eram tirados de um grupo definido de famílias nobres e formavam o principal instrumento de governo. Mas ambas essas instituições eram relíquias. O poder real pertencia pertencia à apella ou assembléia popular, composta de todos os espartanos adultos que possuíam direitos integrais de cidadania e serviam na cavalaria e infantaria do exército. Eles elegiam o conselho e também os éforos (administradores), que eram os governantes reais do país e guardiães da constituição. É verdade que a assembleia só votava nos assuntos que lhes eram apresentados pelos éforos e previamente debatidos pelo Conselho. Individualmente, os cidadãos não tinham poder para iniciar legislação; não obstante, nenhuma decisão importante ou lei era válida a menos que fosse confirmada pela assembleia popular. (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 93).
Reservando a produção e reprodução da vida, dos insumos materiais e alimentação ao trabalho escravo dos hilotas, isso, por sua vez, liberava os espartanos para a exclusividade da vida militar e política. Com isso, Esparta construiu um respeitado legado militar, afirmando se como uma potência bélica-militar:
(...) Todas as relações sociais e econômicas eram baseadas na subordinação total do indivíduo ao Estado e na transformação de toda a classe dominante num exército permanente, pronto para iniciar uma campanha a qualquer momento. Todo espartano adulto era, acima de tudo, um soldado. Embora possuísse uma casa e família, ele não morava lá e seus dias não eram despendidos na manutenção da sua família ou em trabalho produtivo, mas inteiramente dedicado ao treinamento militar constante. Todo espartano adulto se alistava numa das divisões militares do exército dos cidadãos onde era obrigado a participar das refeições em comum. (...). (ROSTOVTZEFF, 1983, pp. 93-94).
Ou seja, os soldados espartanos não conviviam com as suas famílias e nem as sustentava. Era o Estado que se apropriava do produto do trabalho dos hilotas e distribuía os viveres as famílias dos soldados:
"(...) Como todo o seu tempo era ocupado pela vida social e pelo treinamento, o Estado o exonerava dos seus cuidados materiais, mantendo-o e á sua família". (p. 94). Para tanto:
Isso era feito dando-se a cada homem considerável lote de terra juntamente com uma ou mais famílias de hilotas. Estes era obrigados a fornecer ao seu dono e sua família uma quantidade anual fixa de alimentos e trabalhar como seus servos na paz ou em campanha. Parte dos tributo dos hilotas era usada para pagar a inscrição do espartano em seu clube e parte era destinada à manutenção da sua família. (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 94).
Por causa dessa dominação, escravidão e exploração, os antigos habitantes da península (chamados de Hilotas) viviam se revoltando contra os espartanos dominadores. Por isso, o espartanos viviam em um "estado permanente de guerra" para manter sua dominação, vigiavam e matavam os hilotas que pudessem exercer qualquer papel de liderança militar ou política:
"Moral e socialmente, a posição dos hilotas era deplorável. Eram escravos absolutos do Estado e mantidos sob constante supervisão. Periodicamente, os mais vigorosos dentre eles eram assassinados. Os espartanos mais prudentes e inteligentes eram mandados como agentes secretos do governo, aparecendo onde eram menos esperados e matando os hilotas indesejáveis sem julgamento". (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 95).
Atenas antiga: comércio marítimo e escravidão de massa
A cidade de Atenas foi formada pelos povos Jônios que chegaram na Península Ática por volta do ano 1.500 a.e.c. Com o fim do domínio creto-micênico, os jônios puderam desenvolver sua produção e sua sociedade, edificando Atenas por volta do ano 900 a.e.c. e dominando a península Ática por volta do ano 800 a.e.c. Essa fase, entre o século VIII e século VI, compreendida como Período Arcaico, foi de grande desenvolvimento para o conjunto das cidades-Estados das civilizações da região grega, das "civilizações do Mar Egeu":
"Do oitavo ao sexto séculos a.c., o desenvolvimento político e social da Grécia acompanhou seu crescimento econômico. Devemos considerar a formação e estabelecimento gradativos das cidade-Estado, essa peculiar instituição grega, como a principal característica desse desenvolvimento (...)". (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 88).
Atenas, localizada nas margens do Mar Egeu, contava com posição privilegiada para o comércio marítimo. Internamente, produzia trigo, cevada, azeitonas, produzindo azeite e vinho. Neste processo, pôde se especializar-se no comercio marítimo, dominando todo o mar Egeu. Com o desenvolvimento de Atenas, essa cidade-Estado passou a rivalizar com a hegemonia dos espartanos na região, se Espata dominava com tropas terrestres e produção agrícola, Atenas se tornaria senhora do mar Egeu e do comécio maritimo:
"Na Grécia, entre 800 a 600 a.C., surgiu, lado a lado com Esparta, outro importante poder político que estava destinado a tomar a liderança, durante vários século, da política e civilização de todos os gregos. Era a cidade-Estado de Atenas, o cenro econômico e político da Ática. Vimos como Esparta preferiu deliberadamente confiar sua atividade às operações terrestres, não reconhecendo a indústria, e sim a agricultura. Atenas, ao contrários, sempre usou integralmente sua posição geografica favorável e os recursos do seu território". (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 97).
Formou-se uma nobreza em Atenas, esta foi chamada de Eupátridas (bem nascidos). Eles dominavam a propriedade das terras e a produção agrícola de exportação, com isso dominavam o comercio marítimo com as outras cidades-Estados por meio do mar Egeu. Os Eupátridas eram a aristocracia de Atenas e dominavam os camponeses e artesãos, reservando a si os principais cargos políticos e administrativos:
"(...) O governantes da comunidade, escolhidos dentre os membros da aristocracia dominante, eram em número de três: primeiro, o rei, que também era o sacerdote principal; em segundo lugar, o polemarca, que comandava as forças armadas do reino e, em terceiro, o arconte, representante da autoridade civil. A esses três associou-se posteriormente seis arcontew subordinados, chamados thesmothetae, como juízes e guardiães da lei. Os nove governantes escolhidos do Estado, ou, para usar um termo romano, magistrados, não formaramum só grupo autõnomo". (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 98).
Ao longo do tempo, os reis foram perdendo parte de seu poder político monárquico que foi redistribunido para satisfazer as demandas expressas pelas diversas frações da aristocracia dominate. Nesse processo, os cargos vitalícios foram convertidos em mandatos anuais:
(...) O rei, que outrora fora chefe da administração, gradativamente começou a perder toda a sua importância política, mantendo somente as suas funções religiosas. O poder estava concentrado quase que inteiramente as mãos do polemarca e do arconte. Ao mesmo tempo, o mandato de todos esses arcontesou magistrados, que antes era permanente, tornou-se limitado. Eventualmente, em Atenas, tornou-se costume de todos representantes da autoridade ocuparem o cargo durante um ano apenas. (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 99).
Esse processo teve como base o aumento da participação dos atenienses no controle dos órgãos deciósio do Estado:
"Os magistrados eram eleitos, a leis eram aprovadas e as deciões sobre guerra e paz talvez fossem tomadas pela ecclecia ou assembléia popular, que provavelmente se compunha de todos os cidadãos com direitos integrais, isto é, todos aqueles que fizeram parte do exército de cidadãos e lutassem em defesa do país. Um conselho de anciãos, o principal grupo de Estado para assuntos políticos, religiosos e jurídicos, agia juntamente com os magistrados; chamava-se Areópago, em homenagem à colina onde geralmente se realizavam suas reuniões, e era preenchido pelos representantes das mais nobres famílias e provavelmente por ex-magistrados". (ROSTOVTZEFF, 1983, pp. 99-100).
A prosperidade e enriquecimento por via do comércio maritimo criou uma camada de comerciantes ricos, que se contrapunham aos gradnes propeitários de terras e passaram a exigir poder e espaço político na cidade-Estado. Mesmo que não fossem bem-nascidos, conseguiram acumular vastos recursos com os lucros do comércio marítimo e isso deveria ser acompanhado de maior poder político na polis. Assim, foram necessárias mudanças para acomodar os novos ricos, atribuindo-lhes posições no Estado:
"Juntamente com essas mudanças gradativas no sistema de governo, surgiu uma nova divisão da população em três grupos sociais e econômicos. O primeiro incluía os grandes proprietários rurais, o segundo, os comerciantes e artifíces que viviam na cidade, e o terceiro, os pequenos proprietários. Ao mesmo tempo, os direitos políticos e deveres militares de cada cidadão começaram a ser considerados não conforme seu nascimento, mas segundo sua propriedade e renda. A aristocracia formou-se eem timocracia [governo dos ricos]. A necessidade de se criar um exército maior e mais forte talvez tenha sido a causa dessa inovação. A aristocracia rural, que originalmente suportava toda a carga da defesa do país, estava inclinada a transferir parte desse fardo para os ombros de outros cidadãos abastados, concedendo-lhes, em troca, parte dos seus privilégios políticos. (...)". (ROSTOVTZEFF, 1983, pp.100-101).
Abaixo das camadas de grandes proprietários e comerciantes estavam os camponeses e artesãos que viviam endividados e por isso acabavam sendo escravizados. Neste processo de endividamento contínuo, metade da população de Atenas era de escravizados:
"(...) a lei relatica relativa às dívidas eram extremamente severas e sua aplicação é atribuição das classes altas, as mesmas pessoas que possuem o capital e emprestam dinheiro. Assim, o pequeno proprietário é arruinado e privado não só da sua propriedade como também de sua liberdade, nos termos da lei so devedor e credor. Muitos escapavam desse destino tornando-se inquilinos das terras que outrora lhes pertencera mas que agora foram confiscadas pelos pretamistas. (...)". (ROSTOVTZEFF, 1983, pp. 101-102).
A escravidão crescente é um contraponto importante para se pensar e contrapor a Atenas idílica, harmônica progenitora da filosofia grega. A liberdade e prosperidade de uns se dava com base na escravidão de seus milhares de conterrâneos que decaiam na escala social, se endividavam por conta de altos juros dos empréstimos, perdiam suas propriedades e eram escravisados. Mas, como sabemos, onde tem escravidão tem resistência:
"(...) O descontentamento das classes baixas cresce gradualmente e assume forma aguda. Elas procuram e encontram homens para dirigi-las e organizá-las na luta contra as classes dominantes. Seus brados de guerra são por uma novadivisão da terra e a abolição da dívida. Para levar a cabo esse programa, ocorre um levante armado, dirigido pelo líder que procura, com apoio das massas, concentrar o poder militr e civil em suass próprias mãos. Os distúrbios desse tipo foram particularmente comuns na maior parte do mundo grego dos séculos VII e VI a.C. (...)". (p. 102).
No entanto, a luta antiescravista não pôde barrar a introdução do trabalho escravo em larga escala, marcadamente no
século V a.e.c.. Assim, foi nessa fase em que se verificou a expansão da produção com base no trabalho escravo. Nesse período que a democracia escravista grega atingiu o seu ápice. Com a grande produção de
manufaturados, acumulada com base no trabalho escravo Atenas enriquecia.
Conforme sabemos, a democracia escravista ateniense se estruturava com base na
desigualdade – mulheres, estrangeiros e escravos não podiam votar. Os pequenos
proprietários tinham dificuldade de exercer seu poder de voto. Os grandes
proprietários coagiam e compravam votos. Atenas chegou a possuir uma população
de 150 mil habitantes, tendo entre 60 e 80 mil escravos. Apenas 6 mil de seus
habitantes participavam efetivamente das decisões.
ESCRAVIDÃO COMO BASE DO IMPÉRIO ROMANO
A história de Roma é dividida em três partes: 1) Monarquia
romana (753-509 a.e.c.). 2) República romana (509-27a.e.c.).
Império romano (27-475a.e.c.). Nessas três fases era utilizado trabalho
escravo. Mas na fase monárquica a escravidão era praticada em pequena proporção,
não constituía coluna vertebral do sistema produtivo, pois predominava a
produção agrícola com camponeses livres. A massificação da escravidão se deu na
fase da República romana, com expansão territorial e escravização dos
prisioneiros de guerra na Europa e no Oriente.
A monarquia romana foi fundada em 753 a.e.c como produto da
fusão de vilas e assentamentos de três povos: Latinos, Sabinos e Etruscos. Os
Etruscos viviam na região norte da península itálica, já contavam com 12
cidades nessa região. Por sua influência, predominou a monarquia na fundação
romana, com hegemonia etrusca. O rei etrusco exercia o poder político,
administrativo, judiciário, militar e religioso. O rei era apoiado pela nobreza
local, que compunha o Senado romano, sendo assim, o rei era um representante da
nobreza patrícia.
A sociedade romana monárquica era desigual, dividida entre
nobreza (grande proprietária), uma maioria de camponeses pobres e contava com
uma camada de escravizados. No entanto, ao longo dos 244 anos de monarquia, a
camada camponesa passou por grande diversificação, surgindo uma camada de
camponeses enriquecidos, causando uma diferenciação econômica ne plebe, que
teve como consequência a fricção pelo poder com a nobreza tradicional e grande
proprietária. Isso levou á uma crise fatal do seu regime político.
A concentração do poder nas mãos da monarquia, a
estratificação econômica e a diversificação no seio da própria nobreza produziam
disputas e a revolta dos patrícios contra o sistema monárquico, este já não
dava conta de representar a diversidade de interesses na classe dominante. Isso
abriu espaço para a derrubada da monarquia e a organização na forma de
República, com hegemonia do Senado. Interessante notar que a República romana
foi implementada no mesmo período da democracia grega, mostrando a influência
mútua entre as duas regiões. As crises internas e as disputas por terras foram resolvidas
com incursões externas em busca da conquista de novos territórios e na escravidão
em massa.
A República romana (509-27a.e.c.): uma República
imperial escravocrata
Depois da derrubada do rei Tarquinio e o fim da monarquia,
iniciou-se a fase da república romana, dominada pelo Senado patrício. O senado, composto pela nobreza e pelos plebeus ricos passaram a governar a
cidade-Estado de Roma.
Conforme apontado, a fase da República romana foi marcada pela ampliação e
intensificação progressiva da guerras de expansão territorial, tanto na
Península Itálica como na região grega, Macedônia, Hispania, Galia e Egito. As guerras contra Cartago (norte da África), chamadas de "guerras
púnicas" foi um marco importante na expansão da República romana, pois
durante esse processo, com escravidão em massa, Roma se tornou uma República
escravista, sendo que no final da fase republicana, Roma contava com mais de 3 milhões de escravos.
A República romana viveu sua crise mais profunda entre 135-71 a.e.c.. Os principais motivos da crise foram: o empobrecimento das
massas camponesas, a concentração de terras (via expropriação dos camponeses),
que levou à migração forçada para os centros urbanos, formando massas
proletários e lumpemproletarios desempregados. e também as rebeliões massivas de escravizados (a de
Spartacus organizou cerca de 120 mil pessoas). A crise da República, com rebeliões populares, revoltas camponesas e rebeliões escravas produziu uma fase de guerras civis. Para controlar as efervescências sociais, o Senado concedeu maiores poderes ao exército e aos generais de destaque. Nesse processo destacaram-se três figuras: Júlio Cesar (descendente de Caio Mario), o General Pompeu e Crasso. As três figuras formaram a junta governante chamada de Triunvirato. O Popular Júlio Cesar implantou uma reforma agrária e distribuiu terras para acalmar as rebeliões e conflito. Isso o tornou muito mais popular. Não tardou para que a aliança se rompesse e Júlio Cesar desse um golpe e se declarasse Ditador romano. Mesmo após o assassinato de Júlio Cesar, manteve-se aberto o caminho para se iniciar uma nova fase de Roma: O império Romano, tendo como primeiro imperador Caio Otavio Augusto (o sobrinho-neto de Júlio Cesar).
Em meio a esses processos, ampliaram a busca por conquistar novos territórios e mais escravizados para trabalhar nos campos. Verificava-se “o surgimento de propriedades agrícolas
trabalhadas por escravos em uma até então desconhecida imensidão”. (ANDERSON, 1994,
p. 59). No ano 43 a.C., estima-se que a Itália tivesse
quatro milhões e meio de habitantes livres e um total de três milhões de
escravos (ANDERSON, 1994, p. 61). Mas, durante a fase do Império Romano (27-395 e.c), a base escravista latifundiária foi multiplicada. O latifúndio escravocrata foi a condição primeira da conquista e
colonização permanente de extensas terras interiores do Ocidente e do Norte. (ANDERSON, 1994, p. 61).
O Império romano (27-476 e.c.): da escravidão em massa ao sistema de colonato
Com o fim da República, consolidou-se uma forma de monarquia
imperial expansionista que, além de já nascer com vasto territórios, deu
continuidade à conquista militar de novos territórios. Nesse processo, dobrou o
número de escravizados pelo império, com isso foi possível o acesso a mais matérias-primas,
exploração de novas minas, assim aumentou-se a produção e circulação de mercadorias
dando maior pujança aos fluxos comerciais entre as diversas províncias e
cidades do império. Isso foi fundamental tanto pra atender as novas cidades
conquistadas, tanto para manter o gigantesco exército com cerca de 500 mil
soldados.
O primeiro século e meio do império foi a sua melhor fase. Esse
período, de 27 a.e.c. até 161 da nossa era, ficou conhecido como Pax romana.
O sistema econômico e político romano foi estendido a todo o império,
substituindo formas menos desenvolvida de produção. O império contava com mais
de 1000 cidades que atuavam como centro de produção, utilizando-se de uma moeda
única em todo o Império. O Império romano chegou a contar com uma população de
80 milhões de habitantes. Mas a maior parte da população vivia da produção agrícola,
as cidades eram pequenas: “A maior parte das mais de 1.000 cidades do Imperium
romanun tinha provavelmente uma população de 10.000 a 15.000 habitantes”. (ALFOLDY,
1989, p. 114). Nesse cenário, a propriedade de terras ainda era o principal
critério econômico. Foi em 117 a.e.c., com o imperador Trajano, que o império romano chegou a sua maior extensão territorial:
Figura: Império Romano.
Nesta fase da monarquia imperial, era o imperador que nomeava seus próprios senadores, independente das linhagens consanguíneas e das posses. O imperador passou a nomear senadores nas províncias e terras conquistadas. A calaria era o braço direito do imperador e disputava espaço com o senado. Os cavaleiros eram uma “nobreza de funcionários” do Estado.
Aos poucos, o império começou a ter mais terras do que braços para cultiva-las. Isso levou a intensificação do trabalho nos campos, redobrando a opressão e violência contra os escravizados no campo, que, por sua vez, gerava grandes rebeliões de escravizados no campo. A falta de mão de obra levou à introdução do regime de colonato, com arrendamento de terras e destinação de uma parte da produção aos latifundiários.
Em determinada altura, o Império não podia mais se expandir, conquistar novas multidões de escravizados como mão de obra. Passou-se a ter problemas de produção e abastecimento, falta de alimentos e aumento dos preços, com queda na circulação de mercadorias e matérias primas. O enfraquecimento do Império levou à abertura de fronteiras. A instabilidade econômica e política ficou patente no ano 238, ano em que 6 imperadores tiveram morte violenta. A miséria e a pobreza cresceram, ao mesmo tempo aumentava a violência e a opressão dos latifundiários e das camadas militares, sendo que “até o homem ‘livre’ era cada vez mais tratado pelo Estado e pelos poderosos como um escravo”. (ALDOLDY, 1989, p. 175).
Nesse processo, com o fim da expansão territorial romana, com menos anexações e declínio de novos escravizados, mão de obra escrava necessária para a grande produção no campo, ampliava-se o sistema de colonato e decrescia a escravidão. Era mais caro manter centenas e milhares de escravizados o que empregar o sistema de arrendamentos. Agora, para os latifundiários se tornava mais vantajoso cobrar uma soma anual em dinheiro dos seus colonos. Sequencialmente, no final do século IV, os colonos foram convertidos em “servos da gleba” e podiam ser vendidos como parte das terras.
O sistema político, social e econômico do Império romano se tornou demasiadamente opressivo, levando a população a fugir para regiões vizinhas. Isso agravava o problema da falta de mão de obra. Com isso, o Estado se viu obrigado a abrir espaço para os povos franco-germânicos: “a única possibilidade de repovoamento dos territórios despovoados, no interesse da economia romana, residia na instalação de bárbaros nessas terras (...)”. (ALFOLDY, 1989, p. 230). Porém, a abertura de fronteiras pra esses povos guerreiros acabariam por enfraquecer ainda mais o Império:
(...) a instalação de bandos de guerreiros germanos militarmente fortes dentro das fronteiras do Império não podia deixar de enfraquecer, a longo prazo, o poder imperial central no Ocidente romano, onde esse poder dependia inteiramente do aparelho militar germânico, e era inevitável que o império fosse finalmente destruído. (ALFODY, 1989, p. 321).
Quanto mais aprofundava a sua crise, mais fracas eram suas fronteiras, facilitando as invasões estrangeiras por povos nômades e guerreiros. Na figura abaixo, podemos observar os territórios abandonados pelos romanos e a fixação de povos franco-germânicos no território do Império Romano:
O Império
Romano chegou a dividir sua capital para melhor resistir aos ataques, contra-ataques e resistência de outros povos. Em 395, o
imperador Teodósio dividiu a administração do Império Romano entre seus filhos:
Honório ficou com o Império Romano do Ocidente, e Arcádio com o Império Romano
do Oriente. Assim, uma capital continuava em Roma e outra foi estabelecida mais
ao leste, onde hoje se localiza Istambul, que foi chamada de Bizâncio, tendo
por capital Constantinopla. Esta segunda capital do Império Romano estabelecida
no Oriente foi responsável por transplantar elementos culturais do Ocidente
para o Oriente, sobretudo o cristianismo. As duas capitais do romanas existiram concomitantemente por quase cem anos.
Na imagem a seguir podemos observar a configuração do Império Romano do Ocidente e o Império Romano do Oriente:
Figura : A divisão do Império Romano entre Ocidente e
Oriente.
Durante o Império Romano importantes obras arquitetônicas foram construídas e resistem ao tempo até nossos dias. A segui podemos observar um Aqueduto construído para o transporte de água:
Figura: Aqueduto romano para transporte de água –
Segóvia/Espanha, entre os séculos I e III.
Figura: Aqueduto Pegões – Tomar/Portugual.
CRISE DO IMPÉRIO ROMANO
A
crise do Império Romano teve variadas causas, com destaque para o crescimento exagerado de seus territórios e de seu
exército, bem como a crise de seu sistema escravista. A falta de mão de obra nos latifúndios, gastos exagerados e falta de insumos levou à estagnação da
produção e do comércio, selando o destino do Império.
O Estado romano era o maior consumidor individual do
Império. Era o foco real de apropriação da produção em massa. Influenciou assim
diretamente na origem de um setor manufatureiro dinâmico. Então, a crise de arrecadação gerava crise interna no Império. Os serviços públicos
comuns, estradas, construções, aquedutos, esgotos eram realizados com trabalho
escravo. (ANDERSON, 1994, p. 78).
No
século III e.c., entre os anos 235 e 284, a inflação foi estratosférica. O
dinheiro desvalorizava-se rapidamente. A instabilidade política degenerava, eclodindo revoltas e rebeliões. (ANDERSON,
1994, p. 80). As guerras civis eram ininterruptas. Dos vinte imperadores
daqueles anos, dezoito tiveram morte violenta. Às contradições internas
somam-se as invasões estrangeiras constantes. Nos últimos anos do Império,
assistiu-se a uma devastadora sequência de invasões de suas gigantescas fronteiras. Tratavam-se de invasões dos povos francos-germanos,
alamanos, jutungidas, hérulus, godos, persas e outros povos nômades.
Figura:
Templo romano de Córdoba/Espanha, construído no ano 41 d.C. Foto: Alessandro de Moura.
Centrado na escravidão, o Império investia pouco em técnicas
produtivas. Mesmo tendo inventado o moinho de água e a colhedeira, estas
descobertas ficaram abandonadas só sendo retomadas durante a fase feudal. Anderson
aponta que “a máquina militar e a burocracia ampliada ao final do Império
cobrou um preço terrível de uma sociedade cujos recursos econômicos haviam, na
verdade, declinado” (ANDERSON, 1994, p. 92). Assiste-se a uma intensa polarização
social ao final do século IV.
Figura: Ponte Romana em
Córdoba/Espanha, construída no século II a.C. Foto: Alessandro de Moura.
Figura: Forte de Tossa del Mar,
vila romana do século I a.C. Foto: Alessandro de Moura.
Somava-se a isso, o custo do vasto aparato clerical existente nos últimos anos do
Império que “foi uma das principais razões da sobrecarga parasitária que exauriu a
economia e a sociedade romana” (ANDERSON, 1994, p. 127). Ainda de acordo com
Perry Anderson, mesmo após a queda do Império, na reorganização de Roma, “por volta do século VI, os bispos e o clero no Império
remanescente eram em muito maior número que os agentes administrativos e
funcionários do Estado, e recebiam salários consideravelmente altos” (1994, p.
127).
Após a queda do Império Romano do Ocidente (476),
conquistado por Odoacro, chefe da confederação de tribos germânicas dos
hérudus, o território do Império foi dividido em numerosos reinos romano-germânicos.
O domínio recém-estabelecido não pôde fixar uma centralização administrativa
que repelisse os ataques de nômades e as pilhagens.
Apenas durante o reino
franco de Carlos Magno avançou-se para a conquista de diversos povos vizinhos.
OS
NORMANDOS CONQUISTAM FRONTEIRAS DO DECADENTE IMPÉRIO
Em plena decadência do Império Romano (entre os séculos V e
VI), os normandos tiveram grande protagonismo nas invasões na Europa. Eles tinham
imensa vantagem sobre os povos sedentários do antigo Império Romano, sobretudo pelas habilidades de combate à cavalo e o estilo de vida nômades e altamente adaptáveis. A guerra era seu modo de existência, por
isso desenvolveram muito as estratégias de ataque e defesa montada. Tinham ampla vantagem nas lutas e disputas, seu
objetivo central era a pilhagem de ouro e prata. As invasões de domínio de territórios na Europa, sobretudo pós-queda
do Império Romano, eram facilitadas porque as populações europeias, em geral,
contavam com pouca densidade populacional. Vimos que a maioria da 1.000 cidades romanas contavam com cerca de 10.000 a 15.000 habitantes. Dessa forma, os normandos tinham imensa vantagem sobre aquelas rarefeitas populações
sedentárias.
Aos poucos, os normandos vão tornando-se sedentários e estabelecendo-se
no antigo Império Romano. Seus reinos vão se estabelecendo na Europa e
construindo fronteiras. Com isso, o cristianismo penetra em suas tradições, ou
seja, as invasões ao decadente Império Romano produziram intensa interação
socio-linguística, constituindo assim um caldo de cultura comum. Normandos, húngaros
(durante o século VIII e IX) e escandinavos misturam-se consanguineamente com
os povos europeus. Bloch aponta que nesse período, decorrido até por volta do
ano 991, “o nacionalismo era um sentimento desconhecido” (BLOCH, 2012, p. 66).
Destaca ainda que a influência normanda foi muito mais forte na Inglaterra do
que na França.
Além dos normandos, os árabes também avançavam Europa
adentro por meio da Espanha. Por outra face, lutando para resistir às invasões
dos normandos e vikings, os árabes estabelecidos na Espanha chegaram a bloquear
a navegação dos piratas escandinavos em suas águas meridionais.
IMPÉRIO
CAROLÍNGIO E AS BASES PARA O SISTEMA FEUDAL
Para defenderem-se dos ataques bárbaros, na Europa, os reis
e barões construíam fortificações e castelos. Aos poucos foram contidas as
invasões, com destaque para o Império de Carlos Magno – Império Carolíngio –
que encontra seu auge durante o final do século VIII. Conseguiu-se estabelecer
fronteiras. Magno constitui uma nova unidade em grande parte do Ocidente. O
Império Carolíngio expande-se durante todo o período de decadência do Império
Romano, encontrando seu ápice no início do ano 800. Perry Anderson registra que
o Império Carolíngio entrou em colapso no século IX. Na noite de natal do ano
800, em Roma, Magno foi coroado como Imperator
Romanorum. Este processo foi entendido como uma restauração do Império no
Ocidente. Magno conquistou imenso prestígio e poder político. No entanto, a unidade
do novo Império não durou muito. Após a morte de Magno, seu filho Luís, o
Piedoso, assumiu o poder. Com a morte de Luís, o Império foi dividido em três
partes pelo Tratado de Verdum (843).
No ano 843, os três netos de Carlos
Magno dividiram entre si o Império. Carlos, o Calvo, recebeu a Frância Ocidental (que se tornará
França); Luís, o Germânico, ficaria com a Frância
Oriental (que se tornará a
Germânia); e Lotário ficou com o centro da Itália até Frísia (que se tornará a Lotaríngia).
Para Perry Anderson o Estado Carolíngio marcaria o início do
feudalismo (1994, p. 131). Pois neste ínterim foram dados passos decisivos para
a formação feudal. No século VIII já se tinha vassalagem (homenagem pessoal) e
o benefício (concessão de terras em troca de serviços) (ANDERSON, 1994, p.
134). No século IX passa-se a usar o termo “feudo”. A França, nesse período
ficou cheia de castelos e fortificações privadas levantadas por senhores rurais
sem autorização imperial. Frente à divisão do Império Carolíngio, buscava-se resistir
aos ataques bárbaros e consolidar o poder local. “Essa paisagem cheia de
castelos era ao mesmo tempo uma proteção e uma prisão para a população rural” (Anderson,
1994, p. 137). Perpassa-se a multiplicação das relações feudais, tal como a
monopolização das relações vassalo-cavaleiro.
A partir desse núcleo social organizado no centro da Europa,
foi possível desenvolver uma nova forma de organização social partindo dos
escombros do Império Romano e das bases recentes deixadas pelo Império
Carolíngio. Os fortes e castelos construídos de forma independente serão também
importantes pontos de apoio no controle das invasões. Teve centralidade essas
formas de defesa “autônomas” sem um Estado centralizado. Os reinados e
principados organizavam-se de forma independente para proteger as riquezas
acumuladas, plantações, animais e terras. Ofereciam proteção à massa
trabalhadora em troca de trabalho, assim surgiriam as primeiras formas de
vassalagem e servidão. Tanto a vassalagem como a servidão são formas oriundas
dos germânicos e dos romanos. Com a síntese romano-germânica passa-se a ter os
elementos iniciais que delineariam a primeira
idade feudal, que para Bloch vai do inicio do século IX até a primeira
metade do século XI (por volta de 1050).
É nesse período que os árabes edificam o palácio da Alhambra,
na Espanha:
Como destaca Perry Anderson, entre os elementos que definem
o feudalismo como uma fusão dos legados do Império Romano com o germânico,
considera-se a vassalagem, que é um produto que pode ser atribuído tanto ao
Império Romano como aos germânicos (ANDERSON, p. 125).
Esse autor destaca ainda que durante o feudalismo tem-se no
Ocidente um grande salto produtivo baseado na utilização de técnicas
produtivas, tal como o arado de ferro, os arreios para tração equina, o moinho
de água para força mecânica, o adubo calcário e três campos de rotação para a
agricultura (ANDERSON, 1994, p. 178). Durante o feudalismo a expectativa de
vida quase dobrou, passou de uma média de 25 para 35 anos.
A feudalidade é produto do profundo enfraquecimento do
Estado romano. Sem uma instituição unificadora e coletiva, afluíram profundas
relações de dependência pessoal. Com a dissolução do Império havia uma legião
de chefes e principados dispersos com seus exércitos e suas propriedades. Assim,
além de produto resultante da brutal dissolução das sociedades antigas, o
feudalismo foi produto também da busca por defesa dos ataques e invasões
bárbaras. Formou-se mais como “uma sociedade desigual do que hierarquizada” (BLOCH,
2012, p. 516). Constituiu-se como uma sociedade com “muita gente humilde
sujeita a alguns poderosos”. Os chefes dessa sociedade eram guerreiros
profissionais, “cavaleiros pesadamente armados” (BLOCH, 2012, p. 516). A
subordinação se dava ao chefe mais próximo, e não a um coletivo ou classe.
O feudalismo não constituía um sistema homogêneo, pelo
contrário, a Europa feudal era feudalizada de forma desigual (BLOCH, 2012, p.
518), tendo como laço comum a dependência pessoal hereditária. A subordinação
entre duas pessoas desiguais era a principal característica do feudalismo,
completada pela sujeição pessoal ao invés do regime de salário, com vínculo de
proteção e obediência, fracionamento de poderes, supremacia dos guerreiros e da
cavalaria cristalizada em uma nobreza armada (surgida no século XII) como braço
de defesa dos chefes, reis e principados.
A PRIMEIRA IDADE DO FEUDALISMO
Bloch define que a primeira
idade do feudalismo desenvolveu-se a partir do século IX e estende-se até
por volta do ano 1050. Para o autor, a partir do século XI ter-se-ia início a
segunda fase do feudalismo, ou a segunda
idade feudal, marcada por intenso desenvolvimento, onde se destaca “admirável
florescimento artístico” (BLOCH, 2012, p. 82), uma “nova sensibilidade religiosa”,
salto na arquitetura romana, mas também por um adensamento populacional,
aumento da produção, do comércio e dos exércitos.
Durante a primeira idade feudal as técnicas agrícolas
exigiam grandes extensões territoriais para o cultivo. Enquanto metade do solo
“descansava”, apenas a outra metade do solo podia ser usada (BLOCH, 2012, p.
84). Para assegurar seus domínios e o estabelecimento dessa primeira idade
feudal, “os reis da primeira idade feudal mataram-se literalmente de tanto
viajar” (BLOCH, 2012, p. 86). Iam de vilarejo em vilarejo, de feudo em feudo. Muitas
vezes, ao cobrar a corveia em produtos, os reis tinham que consumi-las no local
onde eram cobradas. Nesse período “existiam várias correntes de troca entre as
civilizações circulantes” (BLOCH, 2012, p. 89).
Sendo que as mercadorias
mais apreciadas funcionavam como “padrão de troca”, faziam função de criar
equivalentes, como uma moeda. Não existia nessa fase a compra e venda como
forma determinante, viviam de trocas embora se pudesse vender e comprar (BLOCH,
2012, p. 91). Nesta fase, as prestações de serviços ocupavam ainda lugar mais
importante do que a troca, sobretudo para a massa de pobres. O salário tinha um
papel ínfimo.
Figura 12: Castelo de Consuegra/Espanha, construído no século
X. Foto: Alessandro de Moura.
A SEGUNDA IDADE DO FEUDALISMO
Mudanças importantes acontecem durante a segunda idade
feudal (1050-1250), esta fase transformou a face da Europa. Ela será a fase
mais importante das realezas e principados, em que terão surgimento as
burguesias urbanas e ampliação do comércio e de grandes construções públicas. “Quantas
pontes não foram lançadas sobre todos os rios da Europa, no decurso do século
XII” (BLOCH, 2012, p. 94). Bloch aponta que a segunda idade feudal chegou a ser
chamada de “renascimento do século XII”. Além das poesias, construções, houve
muitas traduções de obras árabes. Os romances e poemas buscavam analisar e explicar
os sentimentos. Os moinhos de vento são construídos a partir desse período na
Europa. Podemos encontrar doze moinhos, construídos no século XVI, na cidade de
Consuegra localizada em La Mancha. Esses foram inspiradores de Dom Quixote de La Mancha, obra de Miguel
de Cervantes (1547-1616).
Figura 13: Moinhos de Vento e o Castelo de Consuegra/Espanha.
Ainda nessa segunda idade feudal, aumenta-se a quantidade de
barcos circulantes e as trocas entre países (feitas via Alemanha)
intensificam-se sobremaneira na Europa feudal. De acordo com Marx, n’A ideologia alemã, desde a metade do
século XII até o final do século XIII “[...] o comércio e a navegação haviam se
expandido mais rapidamente do que a manufatura, que desempenhava um papel
secundário; as colônias começaram a tornar-se fortes consumidoras, as diversas
nações dividiram-se, por meio de longas lutas, no mercado mundial que se abria”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 58).
Bloch também afirma que a classe dos artesãos e de
mercadores ganha grande centralidade durante esse período e tornam-se
indispensáveis no ambiente urbano. O comerciante consegue sobrepor-se ao
produtor. As cidades tornam-se atrativas também para servos descontentes,
conforme apontara Marx “a fuga dos servos para as cidades deu-se incessantemente
durante toda a Idade Média” (MARX; ENGELS, 2007, p. 53).
Durante toda a época feudal, o latim era a língua comum. No
entanto, conviviam uma infinidade de outras línguas regionais. Logicamente, o
latim era a única língua veicular que se ensinava nas escolas monásticas e
catedrais. A imensa maioria da população era iletrada, havia apenas um pequeno
punhado de pessoas letradas. Não apenas o povo (artesão e camponeses), mas
também a maioria dos pequenos e médios senhores eram analfabetos. Dessa forma,
ganham importância social e administrativa os clérigos e religiosos letrados
que se colocavam a serviço dos poderosos e autoridades. A reforma gregoriana do
século XI produz um despertar religioso. O Papa Gregório VII buscou colocar o
padre acima do simples crente. Os padres, que até o século XI, tinham suas
sacerdotisas foram proibidos de se casar. Com as reformas de Gregório, a Igreja
galgou lugar de superioridade na sociedade feudal, aproximando-se das classe
mais poderosas. Junto com os senhores, a Igreja compunha o corpo de grandes
juízes feudais.
Como a maioria da população era iletrada, as poesias
guerreiras, épicas, místicas, glorificações dos chefes em epopeias eram, em sua
maioria, transmitidas por via oral. A Itália antiga, sede do Império Romano,
era a região mais letrada da Europa.
Interessante notar que esta nova sociedade que surge não
contava com um sistema próprio de leis. Assim, os textos e costumes romanos e
germânicos, bem como suas leis foram essenciais para constituir a base jurídica
para a organização do feudalismo. Além disso, utilizava-se ainda as leis
criadas por soberanos de reinos bárbaros, tanto o que se tinha escrito como as
tradições puramente orais. A “Itália erudita” continuava a fornecer fontes
escritas para as leis, “o que foi tem o direito de ser”, como destaca Bloch, “a
maior parte dos tribunais contentavam-se com decisões puramente orais” (BLOCH, 2012,
p. 144). Visando a transmissão das leis para as novas gerações, nas decisões
dos tribunais, era comum levar crianças para que aprendesse a tradição
jurídica. Para Bloch “o grande erro do feudalismo foi precisamente a sua
inaptidão para construir um sistema jurídico verdadeiramente coerente e eficaz”
(BLOCH, 2012, p. 273). Por não ter estabelecido um sistema jurídico próprio para
a resolução das contendas, havia uma gigantesca margem de manobra no que tangia
a direitos e deveres. As lacunas jurídicas existentes eram sempre preenchidas
em favor do mais forte. Muitos acordos jurídicos eram rompidos por base no
equilíbrio de forças.
JUSTIÇA
COM AS PRÓPRIAS MÃOS
Uma vez houvesse prejuízo, garantia-se o direito à vingança.
Nas relações sociais, de trabalho, de produção e de posse, os laços consanguíneos exerciam grande importância. As relações de parentesco junto com as relações de
vassalagem são as centrais, daí desdobram-se as vinganças de consanguíneos,
onde se podia punir e matar o criminoso e seus descendentes. A desgraça de um
caía sobre toda a família. “A honra ou a desonra de um dos membros recaía sobre
a pequena coletividade inteira” (BLOCH, 2012, p. 158). O cadáver pedia a
vingança consanguínea.
As famílias se vingavam umas das outras, mas também se uniam
para fortalecer suas posses e poderes. Neste plano, o casamento era uma associação
de interesses coletivos e não uma simples opção pessoal. Nesse caso, o amor só
existia em relações extraconjugais.
O senhor também podia vingar-se por um prejuízo ou mal feito
causado a seu vassalo, assim como o vassalo tinha a obrigação de defender o seu
senhor. O feudalismo era a sociedade em que o homem pertencia a outro homem. Ao
prejudicar um vassalo, podia-se prejudicar também o seu senhor. Como a
vassalagem se dava sempre entre um mais forte e outro mais fraco, a defesa mútua
era determinante. A vassalagem era, sobretudo, uma relação das classes
superiores, assim a mesma dinâmica social não se aplicava aos camponeses,
vilãos e artesãos (BLOCH, 2012, p. 180). Porém, “por toda parte os fracos
sentiam a necessidade de se aproximar de alguém mais poderoso do que eles” (BLOCH,
2012, p. 180). Embora pudessem ser revogadas, as relações de vassalagem
faziam-se hereditárias.
Durante o extinto Império Romano, a população contava com a proteção
do Estado. Também era o Estado que protegia a propriedade privada. Com a queda
do Império, foi necessário instituir uma ordem de guerreiros profissionais para
trabalharem em serviço dos reinados e principados. As guardas privadas tornam-se
uma necessidade objetiva. Tal especialização e armamento ganhavam corpo ainda
durante a primeira idade feudal. O vassalo tinha que proteger seu senhor com
armas nas mãos. Por isso começou-se a treinar as habilidades de combate ainda
na infância, antes dos doze anos de idade. O rei fazia seus vassalos as
pessoass às quais confiava os primeiros cargos do Estado, comandos
territoriais, condados e ducados. Porém, nenhuma concessão era vitalícia, o rei
poderia cassá-las. A hereditariedade vai ganhando terreno durante a segunda
idade feudal, ou seja, de 1050 em diante. Na Normandia, em 1066, o feudo passou
a ser hereditário. Depois do século XII os feudos podiam ser vendidos ou
cedidos.
Enquanto os reinados e principados garantiam a proteção dos
vassalos, “o dever primordial do vassalo era o auxílio de guerra”. Raramente o
vassalo aparecia sozinho para auxiliar seu senhor em uma guerra. O vassalo
tinha ainda como desígnio fazer guarda no castelo senhorial, “se ele próprio
possuía uma fortaleza, deveria pô-la à disposição de seu senhor” (BLOCH, 2012, p.
262). O vassalo devia ajudar seu senhor com a sua espada, com conselho e, por
fim, com dinheiro (BLOCH, 2012, p. 265). Também o senhor tinha que proteger e
auxiliar seu vassalo, “o homem será defendido pelo seu senhor”. A vassalidade
era comparada ao parentesco consanguíneo (BLOCH, 2012, p. 267) e o vassalo
confiava a seu senhor a educação de seu filho, que viveria na casa de seu
senhor, tornando-se dele um auxiliar permanente. O sistema de proteção
determinava que “o acordo vassálico unia dois homens que, por definição, não
eram do mesmo nível” (BLOCH, 2012, p. 270). Começava do rei ou príncipe para
com um súdito, um subordinado, e descia criando outras relações de dependência.
“O primeiro dever do bom vassalo, naturalmente, é saber morrer pelo seu chefe,
com a espada na mão” (BLOCH, 2012, p. 276). Tanto a Igreja como os poetas
propagavam este dever com honras e louros. No entanto, a fidelidade não era
absoluta. As relações de vassalagem oscilavam entre a dedicação e a
infidelidade.
Com o passar do tempo, a posse das terras é que passaram a
determinar a relação entre os homens. O interesse pela terra é que balizaria as
relações pessoais durante a segunda idade feudal “o herdeiro só prestava
homenagem com vista a conservar o feudo” (BLOCH, 2012, p. 281). A honra ficaria
secundarizada. O vassalo passava a ser uma espécie de locatário que pagava com
“serviços e obediência”. Mas ainda existiam senhores que contavam com vassalos
fiéis, que reproduziam os primeiros vínculos de vassalagem (BLOCH, 2012, p.
282).
COMO
ERAM DIVIDIDOS OS PRODUTOS DOS FEUDOS
No feudo havia uma organização que estabelecia a divisão da
produção entre senhor e vassalo, entre vassalo e servo. Havia o domínio ou reserva, onde se produzia o que seria destinado à apropriação
direta pelo senhor. Havia ainda a tenures,
que eram pequenas e médias áreas do mesmo feudo destinadas à exploração
camponesa, onde o camponês trabalhava para si próprio durante três dias da
semana.
Mesmo aldeias que estavam fora do domínio de qualquer
senhor, para conseguirem proteção de seu exército, por vezes aldeias inteiras,
se colocavam sob a autoridade de um senhor (Bloch, p. 291). Com a proteção
vinha também a opressão senhorial e a apropriação direta dos frutos do trabalho
camponês. No século XII se pagava a dízima, a corveia, a talha, banalidades aos
senhores. As obrigações de pagar ao senhor foram se agravando (BLOCH, 2012, p.
299). Apenas os guerreiros contavam com liberdade frente à opressão senhorial. Ainda
assim, os servos não se viam em proximidade alguma com os antigos escravos do
Império Romano, o servo feudal se sentia livre, dono do produto de seu trabalho
e com obrigações apenas com outro homem mais poderoso que ele. Não se sentia
preso à terra. Assim, o vilão, que vivia na vila, era um camponês considerado
livre.
Já na segunda idade feudal (a partir do ano 1050) podia-se
substituir as corveias por pagamentos em dinheiro. No século XIII já haviam as
alforrias que liberavam da servidão aldeias inteiras (BLOCH, 2012, p. 329).
NOBREZA:
UM BRAÇO ARMADO DAS MONARQUIAS E PRINCIPADOS
Por haver a dominação de diversos grupos, em fios paralelos,
não se pode dizer que o feudalismo era o domínio estrito da nobreza, pois
muitos outros grupos dominantes não faziam parte da nobreza mas exerciam sua dominação.
Ainda, a nobreza só apareceria enquanto classe de fato durante a segunda idade
feudal. Só depois do século XII a nobreza tornou-se uma classe com privilégios
hereditários e direitos próprios. Toda a primeira idade feudal ignorava sua
existência.
Descendentes de guerreiros subordinados aos reis e
príncipes, a nobreza só surge na fase inicial do declínio das relações de
vassalagem. O enfraquecimento dos laços de vassalagem deixam um flanco aberto
que expõe os reis e principados tornando-os mais vulneráveis. Durante a segunda
idade feudal os nobres tornaram-se conselheiros e companheiros de armas da
coroa. Os nobres eram, eles próprios, o corpo nobre dos guerreiros. Eram homens
que comandavam outros homens e podiam mover batalhões em favor dos senhores.
Depois da segunda metade do século XII proibiu-se armar às classe inferiores,
constituindo um monopólio de armas nas mãos da nobreza. A nobreza torna-se a
classe bem armada. Frente a todos os guerreiros, “o guerreiro nobre era mais
bem armado e um guerreiro profissional” (BLOCH, 2012, p. 343). Tinha cavalos e
armamento completo. O cavaleiro tornou-se o equivalente ao nobre.
O orgulho dos nobres era um orgulho guerreiro. Viviam para a
guerra, sendo que “a guerra para eles não era apenas um dever ocasional para
com o senhor, para com o rei, para com a linhagem. Ela representava muito mais:
uma razão de viver” (BLOCH, 2012, p. 345). Era direito dos guerreiros apossarem-se
de todos os bens da pilhagem, assim, quanto mais se guerreava e vencia, mais se
podia acumular. Por ser um guerreiro nato, descendente de outros guerreiros que
serviam o castelo, o nobre nada tinha de agricultor. Guerreava e participava de
torneios que eram convocados por reis e barões. Demonstrava suas habilidade e
força publicamente. Apenas os nobres de linhagem comprovada podiam lutar. Os
vencedores se apoderavam dos equipamentos, do cavalo do vencido e às vezes até
de sua pessoa, que só poderia recuperar sua liberdade mediante um resgate. O
combate podia ser uma profissão muito lucrativa. Unia alegria da luta com altos
ganhos. O nobre era, assim, um fiel bem armado e testado no calor do combate. A
mulher nobre podia comandar com dureza o feudo e seus criados, ela era letrada
e culta. Os nobres deviam ter talentos literários, ler e escrever poemas. Consagrando
matrimônios que eram verdadeiros negócios entre família, o amor raramente se
dava dentro do casamento, “o amante nunca é o marido” (BLOCH, 2012, p. 364).
A Igreja buscava beneficiar-se dos serviços dos guerreiros.
Lutou para poder abençoar os rituais de armamentos, fazendo-os guerreiros a
serviço de Deus que, por sua vez, ganhavam como incumbência da “Santa Igreja” perseguir
os malfeitores e pagãos. O clero possuía feudos e vassalos, laicos e fiéis,
vassalos militares e simples camponeses. Os párocos homenageavam seus senhores
e recebiam homenagens de seus vassalos.
Também a cavalaria não se manteve fechada para si. No século
XII surge também o patriarcado urbano, ricos comerciantes que facilmente
adquiriram senhorios para si próprios ou para seus filhos. Os guerreiros não
gostaram disso, mas no século XIII passou-se a possibilidade de acesso à
cavalaria a novas personagens que, por terem muitas posses, puderam ascender à
nobreza. Na Inglaterra, a nobreza não existia, seu equivalente era o fidalgo. A
nobreza era símbolo da França e da Alemanha. Os nobres não constituíam uma
classe homogênea, havendo entre eles hierarquia. Assim, um nobre podia se
tornar chefe de outros nobres, fazendo-se nobre de maior dignidade.
O
SURGIMENTO DA BURGUESIA
É também durante a segunda idade feudal, a partir de 1250, que
surge a burguesia. Ela deriva de um desdobramento do vilão, lavrador,
trabalhador braçal. Daí surgem os comerciantes e artesãos que ganham maior densidade
na segunda idade feudal. N’A ideologia
alemã, Marx apontava que “o século XIII foi o século do comércio”. Esses
comerciantes e artesãos podiam escolher um lugar para trabalhar, morar em uma
vila, fortificá-la para se proteger de ataques, assim formando o burg que era apenas “um lugar
fortificado” (BLOCH, 2012, p. 418). Nas palavras de Marx e Engels, “dos servos
da Idade Média nasceram os moradores dos primeiros burgos; dessa população
municipal saíram os primeiros elementos da burguesia” (MARX; ENGELS, 2004, p.
41).
Os burgueses são urbanos e conquistaram um lugar próprio. Marx
e Engels, ainda n’A ideologia alemã, mostravam
que “o comércio e a manufatura criaram a grande burguesia, enquanto nas
corporações concentrava-se a pequena burguesia” (MARX; ENGELS, 2007, p. 57). Sempre
que enriqueciam compravam feudos e portavam armas, viviam de trocas por meio
das quais acumulavam do sobre-preço. Os lucros da burguesia provinham do vender
mais caro do que custou. Viviam do lucro intermediário, viajavam percorrendo
estradas em busca de novas vendas. Por sua função e posição social, a burguesia
era um corpo estranho na sociedade feudal (BLOCH, 2012, p. 419). Para se
protegerem, ao invés de buscar um senhor que lhes oferecesse proteção, os
burgueses associavam-se a outros burgueses de poderes compatíveis, criavam as
comunas que ligavam-nos com seus iguais. As relações entre burgueses não se davam
de baixo para cima como as relações de vassalagem onde um fraco ligava-se a um
forte. Pelo contrário, “a originalidade do juramento comunal foi ligar dois
iguais” (BLOCH, 2012, p. 420). Era algo revolucionário e que atraía antipatia
de um mundo hierarquizado. Em meio a uma multidão de chefes que tinham o poder
de morte durante a primeira idade feudal, o estabelecimento de relações entre
iguais era uma deturpação da ordem feudal. N’A ideologia alemã Marx descreve o processo de surgimento da
burguesia como classe:
[...] Na Idade Média, os burgueses eram forçados, em
cada cidade, a se reunir contra a nobreza rural a fim de salvar a sua pele; a
expansão do comércio e o desenvolvimento das comunicações levaram as diversas
cidades a conhecer outras cidades que haviam defendido os mesmos interesses na
luta contra a mesma posição. Das muitas burguesias locais das diversas cidades
nasceu pouco a pouco a classe
burguesa. As condições de vida dos burgueses singulares, pela oposição às
relações existentes e pelo tipo de trabalho que daí resultava, transformaram-se
em condições que eram comuns a todos eles e, ao mesmo tempo, independentes de
cada um individualmente. Os burgueses criaram essas condições na medida em que
se separaram da associação feudal, e foram criados por elas na medida em que
eram determinados por sua oposição contra a feudalidade então em vigor. Com o
estabelecimento do vínculo entre as diferentes cidades, essas condições comuns
desenvolveram-se em condições de classe. Condições idênticas, oposição idêntica
e interesses idênticos também tinham que provocar, necessariamente em todas as
partes, costumes idênticos. A própria burguesia desenvolve-se progressivamente
dentro de suas condições, divide-se novamente em frações distintas, com base na
divisão do trabalho, e termina por absorver em si todas as preexistentes
classes de possuidores (enquanto desenvolve a maioria das classes possuidoras
preexistentes e uma parte da classe até então possuidora em uma nova classe, o
proletariado), na medida em que toda a propriedade anterior é transformada em capital
industrial ou comercial [...] (MARX; ENGELS, 2007, p. 63).
Bloch destaca que os burgueses se protegiam e atacavam; eram
muito duros com os pobres e devedores. Eram impiedosos com os credores. Ao
mesmo tempo, por possuir dinheiro e armas, também podiam oferecer proteção e
entreajuda. Quanto mais se aprofundava a crise do feudalismo, mais se
fortalecia e se fazia livre a burguesia. Tornava-se uma classe “armada e
autônoma” em sua comuna. Com a dissolução dos laços feudais, com sua imensa
liberação de mão-de-obra que se tornará disponível (vassalos, servos, mestres e
aprendizes), a burguesia, formando-se como classe de ricos comerciantes,
conseguirá direcionar todas as forças produtivas em favor das manufaturas e
comércio. As classes que eram oprimidas pelo feudalismo entrarão sob o domínio
burguês. Como formulariam Marx e Engels no Manifesto
Comunista “a sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade
feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer
novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das
que existiam no passado” (MARX; ENGELS, 2004, p. 30). É também durante a
segunda idade feudal que se formaria a Câmara dos Comuns, onde se constitui uma
justiça senhorizada (BLOCH, 2012, p. 438). Participando desse espaço, a burguesia
pôde tomar parte nas decisões administrativas.
O
ESTADO FEUDAL
Durante a segunda idade feudal ganha força a unificação em Estados,
com moeda, funcionalismo assalariado e exército pago. O Estado passa a acumular
muito mais recursos do que qualquer coletividade privada (BLOCH, 2012, p. 494).
Voltam à tona lembranças e histórias da majestosa grandeza do Império Romano. No
entanto, ao invés de dar lugar a um novo Império Europeu com apenas um governo
unificador como foi o Império Romano ou algo parecido com o Império de Carlos
Magno, a administração feudal concentrada é a base para a formação dos Estados
nacionais independentes. Os Estados nacionais sobreviverão à queda do sistema
feudalista e serão base central da estrutura determinante nos próximos séculos.
A
CRISE DO FEUDALISMO NO OCIDENTE EUROPEU
A crise do feudalismo foi essencialmente uma crise
produtiva. A divisão do trabalho do feudalismo determinava que os servos
produzissem para si mesmos e para os seus senhores. Os senhores exigiam cada vez
mais produção dos camponeses. Chegou-se a um momento de superprodução com consequente
exaustão dos solos. Isso, por sua vez, consequentemente levou a uma queda da
produção, escassez e fome. Eclodem grande número de revoltas camponesas, guerras,
a peste negra e intensificação do comércio, que por fim produziram uma crise de
morte em todo o sistema feudal.
Perry Anderson denota que houve abrupta ascensão dos preços
dos cereais entre o ano 1000 e 1300, um aumento de 300%. Com isso, as vendas
podiam ser muito lucrativas, o que intensificava o comércio. Mas, no entanto,
as altas de preços causavam revoltas. Para Anderson, a crise do feudalismo foi
produto de um crescimento populacional exagerado que agravou o pouco
investimento em técnicas produtivas e em fertilidade dos solos. São problemas
que se interligam: a crise produtiva, populacional, o crescimento da inflação e
as revoltas populares. Tem-se uma crise de fome na Europa entre os anos 1315 e
1316. As terras começaram a ser abandonadas, a natalidade cai. O declínio da
população levou ao declínio da demanda (ANDERSON, 1994, p. 193). As forças de
produção encontraram limites objetivos. A Guerra dos Cem Anos (1337 a 1453) intensificou
a crise na Europa, a população ainda teve que enfrentar a peste negra em 1348 e
a Guerra das Duas Rosas na Inglaterra (de 1455 a 1485). De acordo com Anderson,
“estes desastres acumulados desencadearam uma luta de classes desesperada pela
terra”. Nesse processo, perdeu-se 40% da população europeia (ANDERSON, 1994, p.
195).
De acordo com Perry Anderson, com as grandes concentrações
populacionais nas cidades, os centros urbanos tornaram-se também lugares onde
eclodiam os movimentos contestatórios. As principais ondas de levantes se deram
em Bugres, Gand em Flandes, Paris, norte da França, Condres no sudeste da
Inglaterra, Barcelona e Catalunha. “Os violentos levantes rurais da época,
mesmo em caso de derrota, traziam mudanças no equilíbrio das forças de classe
na terra” (ANDERSON, 1994, p. 198).
Os movimentos rebeldes das cidades influenciavam o clima
político no campo. “No Ocidente, a relativa densa rede de cidades exercia uma
constante influência gravitacional no equilíbrio de forças sociais no interior”.
A existência desses centros de mercado tornava-se também uma alternativa de fuga
para os camponeses descontentes (ANDERSON, 1994, p. 199). Ao mesmo tempo,
enquanto prejudicava a ordem de dominação e de produtividade no campo, as fugas
de camponeses para os centros urbanos eram uma fonte de mão-de-obra para os
artífices urbanos e para a manufatura.
A nobreza, percebendo este movimento, passou a investir mais
na atividade pastoril para abastecer a indústria de lã que se desenvolvia nas
cidades. Em meio a esse processo, já no início do século XIV, na primeira e
segunda décadas de 1300, no Norte da Itália a servidão havia desaparecido. Nos
próximos cinquenta anos, o mesmo se daria na França e Inglaterra (ANDERSON, 1994,
p. 202). Assim, a dissolução do feudalismo começou na Europa no final do século
XIII e início do século XIV. De acordo com Marx, esse processo libera enorme
contingente de vassalos feudais e militares que tornam-se mão-de-obra supérflua
no feudalismo decadente. Com isso “uma massa de proletários livres como
pássaros foi lançada no mercado de trabalho pela dissolução dos séquitos
feudais” (MARX, 1985, p. 264). Enquanto as propriedades dos grandes senhores
foi conservada, as casas dos pequenos proprietários, todos que tinham menos de
vinte acres de terra, foram destruídas (MARX, 1985, p. 265).
Os expulsos das terras pela dissolução dos séquitos
feudais e pela intermitente e violenta expropriação da base fundiária, esse
proletariado livre como pássaros não podia ser absorvido pela manufatura
nascente com a mesma velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os
que foram bruscamente arrancados de seu modo costumeiro de vida não conseguiram
enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condição. Eles
se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por
predisposição e, na maioria dos casos, por força das circunstâncias. Daí ter
surgido em toda Europa ocidental, no final do século XV e durante o século XVI,
uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os ancestrais da atual classe
trabalhadora foram imediatamente punidos pela transformação, que lhes foi
imposta, em vagabundos e paupers. A
legislação os tratava como criminosos “voluntários” e supunha que dependia de
sua boa vontade seguir trabalhando nas antigas condições, que já não existiam.
Na Inglaterra, essa legislação começou sob Henrique VIII. Henrique VIII, 1530: “Esmoleiros
velhos e incapacitados para o trabalho recebem licença para mendigar. Em
contraposição, açoitamento e encarceramento para vagabundos válidos. Eles devem
ser amarrados atrás de um carro e açoitados até que o sangue corra de seu
corpo, em seguida devem prestar juramento de retornarem a sua terra natal ou ao
lugar onde moraram nos últimos três anos e ‘se porem em trabalho’. [...].
Aquele que for apanhado pela segunda vez por vagabundagem deverá novamente ser
açoitado e ter metade da orelha cortada; na terceira reincidência, porém, o
atingido, como criminoso grave e inimigo da comunidade, deverá ser executado”.
(MARX, 1985, p. 275).
Como aponta Marx e Engels n’A ideologia alemã, por conta dessa vagabundagem, na Inglaterra, as
execuções foram feitas em massa.
Com o começo das manufaturas deu-se, simultaneamente,
um período de vagabundagem, causado pela dissolução das vassalagens feudais,
pela dissolução dos exércitos que haviam sido formados e servido aos reis
contra os vassalos, pela agricultura melhorada e pela transformação de grandes
porções de terra cultiváveis em pastagens. Por aí já se mostrava como a
vassalagem encontra-se inteiramente ligada à dissolução da feudalidade. Já no
século XIII sucederam-se diferentes épocas desse tipo, muito embora a
vagabundagem só tenha se estabelecido de forma geral e permanente com o fim do
século XV e início do século XVI. Esses vagabundos tão numerosos que o rei
Henrique VIII da Inglaterra, entre outros, mandou enforcar 72 mil deles [...] (MARX;
ENGELS, 2007, p. 56).
Em sua fase final, o feudalismo passou por várias etapas
transitórias com rápidas transformações significativas, produzidas pelos
limites objetivos de expansão e manutenção daquele sistema. No seu auge, a
sociedade feudal produziu um comércio vigoroso entre núcleos urbanos, fortes
exércitos e Estados centralizados. Surge também uma classe de comerciantes que
sobreviverão e colherão os lucros de sua decadência, a classe burguesa. Com a crise do sistema feudal, criam-se as bases para os Estados absolutistas na Europa. De acordo com Perry Anderson em Linhagens do Estado Absolutista:
A longa crise da
economia e da sociedade europeias durante os séculos XIV e XV marcou as
dificuldade e os limites do modo de produção feudal no fim do período medieval.
Qual foi o resultado político final
das convulsões continentais dessa época? O Estado absolutista emergiu no
Ocidente ao longo do século XVI. As monarquias centralizadas de França,
Inglaterra e Espanha representam uma ruptura decisiva com a soberania piramidal
e parcelada das formações sociais medievais, com seus sistemas de suseranias e propriedade.
(...). (Anderson, 2013, p. 15).
No entanto, para o autor, os Estados absolutistas não representam uma superação completa em relação ao feudalismo. "Pois o fim da servidão não significou o
desaparecimento das relações feudais no campo". (Anderson, 2013. p. 17). Pelo contrário, o absolutismo é uma resposta da nobreza feudal ao processo de desagregação do feudalismo ocidental. O domínio da nobreza sobre a massa rural continuava, no entanto, a nobreza concentra seu poder na figura monárquica. Dentro disso: "(...) As monarquias absolutas introduziram
exércitos regulares, burocracias permanentes, impostos nacionais, leis
codificadas e os primórdios de um mercado unificado". (Anderson, 2013, p. 17). Em outro trecho do mesmo livro, Anderson aponta que:
Em qualquer sociedade
pré-industrial, os senhores que continuaram sendo proprietário de meios de
produção fundamentais eram, por certo, os nobres donos de terras. Por todo o
início da época moderna, a classe dominante – política e economicamente – foi,
portanto, a mesma da época medieval:
a aristocracia feudal. Essa nobreza passou por profundas metamorfoses nos
séculos que se seguiram ao encerramento da Idade Média: mas, do começo ao fim
da história do absolutismo, jamais se viu desalojada do comando do poder
político. (p. 18).
OU seja, mesmo em meio ao turbilhão de mudanças, desagregação dos feudos e o fim das relações de vassalagem e servidão, a nobreza consegue se manter como classe dominante, mas sobre outra roupagem, por meio da centralização do poder político no Estado absolutista. Instituição social que concentrou o poder político, econômico e militar em favor da nobreza. Segundo Anderson: "Em essência, o absolutismo era apenas isto: um aparato de dominação feudal reimplantado
e reforçado, concebido para reprimir as massas camponesas de volta a sua
posição social tradicional – a despeito e contra os benefícios que elas haviam
conquistado com a comutação generalizada de suas obrigações". (p. 18). Dessa forma, para o autor, "com o desaparecimento gradual da servidão, o
poder de classe dos senhores feudais se viu sob risco direto" (p. 129), então, com a unificação da nobreza, o Estado absolutista, enquanto aparato régio, foi "uma nova carapaça
política de uma nobreza ameaçada. (...). (Anderson, 2013, p.19). Esse aparato régio da nobreza ameaçada possibilitou a "repressão das massas camponesas e plebeias na
base da hierarquia social", e assim estendeu a dominação da nobreza. Segundo Anderson:
"O efeito derradeiro
desse rearranjo generalizado do poder social da nobreza foi a máquina estatal e
a ordem jurídica do absolutismo, cuja coordenação viria a incrementar a
eficácia doo jugo aristocrático, ao sujeitar o campesinato não servil a novas
formas de dependência e exploração. Os Estados régios do Renascimento foram,
primeiro e acima de tudo, instrumentos modernizados para a manutenção do
domínio nobre sobre as massas rurais". (2013, p. 21).
Beneficiária direta do Estado absolutista, a nobreza fazia frente as massas camponesas despossídas, mas também à burguesia mercantil que se desenvolvia nas cidades medievais. Esse duplo enfrentamento pela manutenção do poder, é denotado por Anderson:
(...). Assim, quando os
Estados absolutistas se constituíram no Ocidente, sua estrutura foi
fundamentalmente determinada pelo reagrupamento feudal contra o campesinato,
após a dissolução da servidão; mas foi secundariamente sobredeterminada pela ascensão de uma burguesia urbana que, depois
de uma série de avanços técnicos e comerciais, agora se desenvolvia rumo às
manufaturas pré-industriais, em escala considerável. (p. 23).
Uma das formas de assegurar o predomínio de seus interesses no Estado absolutista era a compra de cargos no Estado:
Assim, no Ocidente, o
modo predominante de integração da nobreza feudal ao Estado absolutista tomou a
forma de aquisição de “cargos”. Aquele que comprava uma posição no aparato
público do Estado depois podia reaver a quantia por meio de privilégios e
corrupção (sistema de comissões), nem um tipo de caricatura monetizada da
investidura no feudo. (...). Esses detentores de cargos – que se proliferaram
na França, Itália, Grã-Bretanha e Holanda – podiam esperar por lucros de 300% a
400%, e talvez ainda mais, sobre o valor de compra. O sistema nasceu no século
XVI e se tornou um apoio financeiro central dos Estado absolutistas durante o
século XVII. (...). O crescimento da venda de cargos foi, é claro, um dos
subprodutos mais surpreendentes do aumento da monetarização nos primórdios das
economias modernas e da relativa ascensão da burguesia mercantil e
manufatureira nesse contexto. Assim, por esse mesmo motivo, a própria
integração dessa burguesia ao aparato estatal, por meio da aquisição privada e
da herança deposições e honras públicas, marcou sua assimilação subordinada a
uma organização política feudal em que a nobreza sempre constituiu, necessariamente,
o topo da hierarquia social. (...) (Anderson, 2013, p. 35-36).
Anderson destaca que, em termos econômicos, o mercantilismo foi a doutrina dos Estado absolutistas:
O mercantilismo era,
justamente uma teoria da intervenção coerente do Estado político no funcionamento
da economia, no interesse conjunto da prosperidade de uma e do poder do outro. (...).
As teorias mercantilistas da riqueza e da guerra estavam, de fato,
conceitualmente interligadas: o modelo de comércio mundial de soma zero que
inspirava o protecionismo econômico derivava do modelo de política
internacional de soma zero que era inerente a seu belicismo. (p. 39).
Em outro trecho o autor infere que:
O Estado absolutista centralizou cada vez mais
poder político e se empenhou em instituir sistemas jurídicos mais uniformes
(...). O Estado absolutista eliminou um grande número de barreiras internas ao
comércio e patrocinou tarifas externas contra competidores estrangeiros: as
medidas de Pombal no Portugal iluminista foram um exemplo drástico. (p. 42).
Em síntese, para Anderson, o Estado absolutista:
(...). Era um estado
fundado na supremacia social da aristocracia e confinado ao imperativos da
propriedade da terra. A nobreza pôde entregar o poder à monarquia e permitir o
enriquecimento da burguesia: as massas continuavam à sua mercê. Jamais ocorreu
uma derrogação “política” da classe nobre sob o Estado absolutista. Seguidas
vezes, seu caráter feudal acabou frustrando e falsificando as promessas ao
capital. (...).. Exército, burocracia, diplomacia e dinastia continuaram formando
um rígido complexo feudal a governar toda a máquina estatal e guiar seus
destinos. Na época da transição para o capitalismo, o domínio do Estado
absolutista pertencia à nobreza feudal. Seu fim viria assinalar a crise do
poder de sua classe: o advento das revoluções burguesas e a emergência do
Estado capitalista. (p. 44).
O
FEUDALISMO NO ORIENTE
Perry Anderson aponta que o feudalismo no Oriente tem uma estruturação
muito distinta da ocidental. Enquanto no Ocidente o feudalismo se produziria a
partir da síntese do modo de produção escravo com o modo de produção comunal primitivo
em desintegração, no Oriente esta síntese não seria possível, uma vez que sua
formação não contou com o latifúndio escravo, não teve uma Antiguidade e nem
uma civilização urbana com a densidade grega e italiana. Assim, no Oriente a
formação do feudalismo assumiria outros contornos, onde não existiu aquela
síntese Ocidental.
O
NOMADISMO DIFICULTA A CONSOLIDAÇÃO FEUDAL NO ORIENTE
No Oriente, o impacto das invasões nômades retardaram
sobremaneira o sedentarismo, a fixação no solo e a evolução interna das sociedade
agrícolas. O nomadismo manteve-se dominante (ANDERSON, 1994, p. 210). Era a criação
de rebanhos que constituía sua base produtiva e não a posse da terra e seu
cultivo. O maior valor da terra era fornecer pastagens.
Os nômades combinava a propriedade individual – posse de
animais –, com a apropriação coletiva das terras (pastos). Os rebanhos
pertenciam às famílias, as pastagens pertenciam aos clãs ou tribos (ANDERSON, 1994,
p. 212). Mesmo sem fixarem-se nas terras, entendiam-nas como sendo suas (Marx, Formações econômicas pré-capitalistas).
O que interessa aqui é a reprodução e a apropriação do rebanho e não o solo.
Por isso, o direito de se mover de terras em terras, de pastos em pastos, era mais
importante do que o direito de fixar-se na terra. Os clãs e tribos tomavam
decisões em assembleias e assim se organizavam e decidiam sobre a distribuição
das pastagens.
Criavam cavalos, o que por sua vez os equipavam
preparando-os para as guerras. Possuíam “a melhor cavalaria do mundo” (ANDERSON,
1994, p. 214). Desenvolveram os “arqueiros montados”, cavalaria da qual
provinha o seu grande poderio militar. Eram capazes de cobrir longas distâncias
em alta velocidade, mantinham-se coesos e organizados em um comando cerrado.
Por isso obtinham grande êxito em suas expedições, daí vem a projeção histórica
dos nomes de Átila e Gengis Kan. Mediante a organização e predomínio nômade, o
feudalismo sedentário só encontraria espaço no Oriente durante o século X.
A consolidação do feudalismo encontraria dificuldades
particulares nessas regiões, pois a Europa Oriental tinha uma população muito
menos densa em um território muito mais extenso. No século XIII contava com
treze milhões de habitantes, enquanto que na Europa Ocidental, no mesmo
período, em uma zona muito menor, concentravam-se 35 milhões de habitantes. Ou
seja, como completa o autor “o tipo de superpopulação que existia no Ocidente
por volta de 1300 era desconhecido no Oriente” (ANDERSON, 1994, p. 237).
Houve uma “lenta transição na lavoura arável regular” que
aumentava o excedente disponível, o que por sua vez criou uma “nobreza
guerreira, divorciada da produção econômica”. Criou-se assim um estamento
social superior fazendo surgir os príncipes e chefes guerreiros. Tal processo
foi acompanhado pelo surgimento de pequenas cidades no século IX e X na Rússia,
Polônia e Boêmia. Na Polônia eram “centros tribais fortificados, dominados por
castelos locais” (ANDERSON, 1994, p. 221). Assim, houve o fortalecimento de
aristocracias de clã e tribo, que deram lugar ao surgimento de príncipes e chefes.
Esses príncipes e chefes criavam as estruturas para seus próprios Estados
territoriais.
Soma-se a esse processo um segundo elemento que contribuiria
diretamente para o estabelecimento de estruturas de Estado no Oriente: a Igreja
cristã. A Igreja coroou o processo de transição das comunidades tribais em
formas de governos territoriais. Ou seja, “a fundação de Estados geridos por príncipes
coincidiu com a adoção do cristianismo” (ANDERSON, 1994, p. 223). Isso porque o
processo de formação de Estados, marcado pela transição de clãs e tribos para
estruturas territoriais, incluía o abandono do paganismo tribal, bem como o
abandono dos princípios dos clãs na organização social, dando lugar ao “estabelecimento
de autoridade e hierarquia políticas centralizadas”. Dessa forma, a intervenção
católica e ortodoxa foi componente essencial na “formação do Estado na Europa
Ocidental”. A adoção do cristianismo pelos príncipes e a extensão da
cristianização oficial “era um ato inaugural do Estado” (ANDERSON, 1994, p. 223).
Para dar corpo administrativo ao feudalismo, um grupo
compacto de guardas e guerreiros leais foi convertido em senhores feudais e
vassalos dos monarcas. O sistema feudal estável e integrado consolida-se no
século X, sendo necessário criar um campesinato servil fixado à terra e que
fornecesse o excedente de seu trabalho para uma hierarquia feudal (ANDERSON,
1994, p. 224).
No feudalismo Oriental a situação dos camponeses era melhor
do que no Ocidente. Os camponeses e burgueses contavam com mais direitos
sociais. Nobres tornavam-se burgueses e burgueses tornavam-se senhores feudais.
De acordo com Anderson, “os príncipes eram obrigados a oferecer isenções de
taxas, direitos comunais e mobilidade pessoal aos camponeses, para induzi-los a
instalarem-se nas terras recentemente desbravadas” (ANDERSON, 1994, p. 235).
CRISE
DO FEUDALISMO ORIENTAL
Assim como seu surgimento e consolidação, também a crise do
sistema feudal começou mais tarde no leste europeu. Constituindo-se tardiamente
em relação àquele feudalismo, a estrutura feudal no Oriente era mais recente e
frágil do que a do seu predecessor ocidental. Este fator determinou que o
impacto da crise fosse maior sobre essas recentes e frágeis estruturas. A
resistência à crise foi mais fraca. O ápice da força do feudalismo no leste
europeu, na Polônia e na Boêmia, seu apogeu político e cultural, se deram no
século XIV. Um século mais tarde do que no feudalismo ocidental. Seu auge coincide
com o início do declínio do apogeu feudal ocidental.
O aprofundamento da crise do feudalismo no Ocidente aos
poucos penetraria no vizinho feudalismo oriental durante o século XIV, pois
eram sistemas interligados. A crise estende-se e migra ao longo dos anos para o
leste europeu, ganhando cada vez maiores dimensões, até criar uma crise geral
do sistema feudal. Com o avanço da crise no Ocidente, com a deterioração dos seus
laços feudais, também na Europa Oriental o impulso à colonização de novos
territórios e expansão da produção começou a declinar. Com isso, “no início do
século XIV, já havia sinais inquietantes de aldeias abandonadas em Brandenburgo
e na Pomerânia”. Os camponeses abandonavam as áreas de fronteiras ocidentais e
migravam para o leste. De acordo com Anderson, no “início do século XV havia
uma depressão sincronizada nos dois lados da Europa” (ANDERSON, 1994, p. 238).
O abandono de campos colocava em crise todo o processo de
colonização e estabelecimento dos feudos. O fato de ter-se muita terra
disponível levava o camponês à conclusão de que “ela podia ser explorada com
brevidade e depois deixada para trás” (ANDERSON, 1994, p. 238). Os solos eram
mais arenosos e se exauriam com maior rapidez, eram mais difíceis de se
explorar, o que por sua vez contribuía para a dificuldade de fixação
populacional. As técnicas produtivas eram precárias, as queimadas predominavam
em Moscou até o fim do feudalismo. Só depois de 1480 foi introduzido o sistema
de três campos que permitia a rotatividade da terra e recuperação dos solos. Os
arados de ferro só foram introduzidos no século XX.
A queda dos preços dos cereais no Ocidente, com queda da
demanda, também influenciou na queda dos preços no Oriente que começava a
exportar modestamente parte de sua produção para a Europa Ocidental. Anderson
acrescenta ainda que a precária técnica de mineração afetara os estoques de
metais e a cunhagem de dinheiro. Houve queda no rendimento dos senhores. Essa
crise somou-se às epidemias de pestes, escassez e guerras, houve “onze
explosões maiores de pestes na Prússia entre 1340 a 1490. Entre 1350 e 1450 a Rússia
foi vinte vezes assolada pela peste” (ANDERSON, 1994, p. 239). Seguiram-se más
colheitas na Prússia entre 1437 e 1439, essas foram as piores do século.
Seguiu-se no Leste uma série de conflitos militares. “Os otomanos aniquilaram
Sérvia e Bulgária no final do século XIV [...] Mais de 150 campanhas foram empreendidas
através da Rússia contra mongóis, lituanos, alemães, suecos e búlgaros” (ANDERSON,
1994, p. 239).
As guerras causavam mortes com maciço despovoamento. Os
camponeses fugiam para as cidades. Os proprietários prussianos, em 1494,
conseguiram direito de enforcar camponeses fugitivos sem julgamento. Em 1497
Ivan III aboliu o direito dos camponeses de saírem das propriedades por vontade
própria. As fugas para as cidades continuavam mesmo com as medidas mais
repressivas. Magnatas das cidades ignoravam as leis pois estavam ávidos para
atrair mão-de-obra para as cidades (ANDERSON, 1994, p. 248). O início da
dissolução do feudalismo no Oriente deu-se nos primeiros anos do século XV,
cerca de 100 anos depois do início da crise no Ocidente. No Oriente tudo
iniciou-se depois, tanto o feudalismo como o surgimento da burguesia. No
entanto não passou exatamente pelas mesmas fases pelas quais passou o Ocidente.
Houve um complexo desenvolvimento desigual e combinado.
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