Combate Classista

Teoria Marxista, Política e História contemporânea.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Proxima reunião

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Convidamos tod@s interessad@s para a discussão do texto "PODERIAM OS BOLCHEVIQUES TEREM TOMADO O PODER EM JULHO?" – de Leon Trotsky, In: História da Revolução Russa e APÊNDICE I - ALGUMAS LENDAS DA BUROCRACIA, de Leon Trotsky.


Reunião Aberta:


SÁBADO, dia 13 de novembro as 15 HRS -
PRÉDIO PRINCIPAL DA FFC - UNESP/MARÍLIA

O PCB, seu bolivarianismo e o chamado envergonhado a votar em Dilma


O PCB, seu bolivarianismo e o chamado envergonhado a votar em Dilma:
para além da miséria da política e da política da miséria

Alessandro de Moura

Come abacaxi, mastiga perdiz.
Teu dia esta prestes, burguês.
Vladimir Maikovsky, 1917

Partimos do pressuposto que vivemos em uma sociedade de classes. Onde os meios de produção e reprodução da vida humana (as máquinas, terras, tecnologias) estão em posse de uma minoria social. Por conseqüência disso, os trabalhadores e trabalhadoras, os despossuídos de meios de produção, necessitam diariamente vender sua força de trabalho como uma mercadoria. Esta estruturação social produz uma série de conseqüências. A burguesia, centralmente por conta do monopólio das armas, das forças repressivas, da produção e difusão ideológica, e da concentração dos meios de produção consegue impor (via repressão, enganação e consenso) sua hegemonia política e econômica. Os processos eleitorais emergem como mais um momento da produção de ilusões onde, demagogicamente, afirma-se que seriam as massas e os trabalhadores que definem os rumos políticos e econômicos do país. A impossibilidade de intervenção qualitativa do proletariado nas eleições expressa-se, por exemplo, no fato de que o processo eleitoral reserva espaço quase nulo às organizações operárias, enquanto, por outro lado, os partidos dos grandes monopólios e frações da burguesia martelam sua demagogia meses a fio, o que é facilitado via monopólio dos meios de comunicação. Porém, em meio a todas estas contradições, os processos eleitorais impõem-se como um momento em que a classe trabalhadora e as amplas massas discutem a política nacional, o que obriga os revolucionários a debaterem não só as táticas eleitorais, como as estratégias contidas por trás delas.

Sobre a tradição histórica do socialismo

Para pensarmos as eleições como parte da totalidade social, é necessário pensar também o caráter do Estado que está em disputa pelas diferentes frações de classe. Karl Marx, no artigo Glosas Criticas Marginais..., destacava que “Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no fato de que não ele, mas o seu partido adversário, acha-se ao leme do Estado”. Para o teórico revolucionário o jogo parlamentar centra-se na produção de dicotomias parciais estabelecidas entre o governo em exercício e a oposição que está fora do governo. Desta forma a miséria social, a desigualdade é sempre explicada por conta da má administração do Estado burguês. Nunca é explicitado que a subsunção do proletariado pelas classes dominantes e pelo próprio Estado burguês é elemento sine qua non do capitalismo. O Estado burguês, e sua máquina eleitoral existem para manter e legitimar a dominação entre as classes sociais e a escravidão assalariada do proletariado. Nesse sentido, para os marxistas revolucionários, nenhum governo da burguesia é capaz de governar atendendo as necessidades histórico-sociais dos trabalhadores e trabalhadoras. Mas, ainda assim, o processo eleitoral nas democracias burguesas é um dos momentos em que, os trabalhadores e as massas despossuídas de meios de produção, discutem organização política e econômica da sociedade, bem como uma série de problemas nacionais. Por isso, sem nenhum traço de fetichismo parlamentar é preciso que os revolucionários apresentem uma alternativa independente dos partidos da burguesia, que dialoguem com as demandas do proletariado e, ao mesmo tempo, denunciem o cretinismo parlamentar que se nega a intervir nestes processos, para que, com isso, os trabalhadores e as massas exploradas e oprimidas avancem em sua consciência política. A necessidade de organização do proletariado em um partido comunista independente das classes dominantes é colocado por Marx e Engels desde o Manifesto do partido Comunista, onde os autores convocam os revolucionários a organizarem-se em partido comunista, que defenda o programa histórico do proletariado.

A crítica ao Estado burguês e seu regime político não pode levar ao abstencionismo

Todos os marxistas revolucionários devem partir do pressuposto de que o Estado burguês é o comitê de negociação da burguesia, como destacavam Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista. Este é, e será sempre, um instrumento de opressão de classe. O sistema eleitoral, organizado e dirigido pela burguesia e o patronato, estão a serviço da reprodução desta ordem. Ao invés de disputar cargos neste aparato, os revolucionários devem utilizar a tribuna burguesa para denunciar o sistema social da burguesia e difundir o programa comunista. Ou seja, como dizia Lenin no O que fazer?, utilizar este espaço para avançar na agitação, organização e propaganda da perspectiva revolucionária. Desde o processo eleitoral, os marxistas revolucionários devem empenhar-se para resgatar a perspectiva colocada também por Trotski n’O programa de transição, acerca a necessidade de em todo momento atuar para “ajudar as massas no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista”.
A partir do texto Esquerdismo, doença infantil do comunismo, escrito por Lênin em 1920, se pôde aprofundar em grande medida a discussão em relação à participação dos revolucionários nas eleições. Neste trabalho, o revolucionário avalia que o simples fato de milhares de proletários ainda sustentarem ilusões no regime parlamentar já justifica participação do partido revolucionário nas eleições. Porém os revolucionários devem atuar nas eleições como um tribuno do povo, expondo a farsa que as eleições representam. Deve-se utilizar tal espaço para critica radial do sistema eleitoral da burguesia e do patronato, utilizando o parlamento contra o próprio parlamento. Assim, nas palavras de Lênin “os comunistas podem (e devem) travar uma luta prolongada e tenaz, sem retroceder diante de nenhuma dificuldade, para denunciar, desvanecer (...)”. Não alimentarão então nenhuma ilusão no parlamento. Com isso explicita-se que não se pode obter as demandas históricas da classe trabalhadora por meio do parlamento.
Desta forma, os revolucionários, também nos processos eleitorais, devem tomar a defesa das principais questões que mais afetam a classe trabalhadora, tal como a concentração da propriedade privada, o trabalho extenuante, as condições de habitação, transporte, saúde, educação. Assim evidencia-se que o parlamento, composto em sua maioria pelas classes dominantes e por seus representantes, não pode servir ao proletariado. Nas palavras do revolucionário russo “(...) a participação nas eleições parlamentares e na luta através da tribuna parlamentar são obrigatórias para o partido do proletariado revolucionário, precisamente para educar os setores atrasados de sua classe, precisamente para despertar e instruir (...). Enquanto não tenhais força para dissolver o parlamento burguês e qualquer outra organização reacionária, vossa obrigação é atuar no seio dessas instituições”.
Para Lênin cabe ao revolucionário “Usar o parlamento reacionário para fins revolucionários”, deixando claro para qual classe o parlamento trabalha. Com isso, explicita-se a necessidade de dissolução de tal organismo. Atuando para sua destruição, utiliza-se o parlamento contra as classes dominantes, como tribuno do povo. Nesse sentido faz-se correta a defesa de candidaturas de revolucionários, centradas sempre sob a independência de classe. No mesmo sentido é desenvolvida a orientação de Trotski n’O programa de transição, para o revolucionário trata-se de “Olhar a realidade de frente; não procurar a linha de menor resistência; chamar as coisas pelo seu nome; dizer a verdade às massas, por mais amarga que seja; não temer obstáculos; ser rigoroso nas pequenas como nas grandes coisas; ousar quando chegar a hora da ação: tais são as regras da IV Internacional”. (p. 65).
De Marx a Lênin e Trotski, ao mesmo tempo em que se participa das eleições é necessário manter explicito que apenas a organização do proletariado, independente das classes dominantes e seus lacaios, é que pode garantir suas conquistas. Para avançar a luta do proletariado, como já destacou Lênin no Esquerdismo..., é necessário, em todos os espaços sociais, travar a mais ferrenha guerra contra a burguesia e o patronato, isso porque a “a vitória sobre a burguesia torna-se impossível sem uma guerra prolongada, tenaz, desesperada, mortal; uma guerra que exige serenidade, disciplina, firmeza, inflexibilidade e uma vontade única”. Nenhuma ilusão na democracia burguesa. Todos os esforços, dentro e fora do parlamento, devem ser voltados contra as classes dominantes. Para Lênin tratava-se de “combinar a ação de massas fora do parlamento reacionário com uma oposição simpatizante da revolução (ou, melhor ainda, que a apóia, abertamente) dentro desse parlamento”.
Nesse sentido, para Lênin o abstencionismo parlamentar, a negação de participação nos processos eleitorais, constitui uma doença infantil que deve ser superada pelos comunistas. Segundo sua análise “A infantilidade de "negar" a participação no parlamentarismo consiste, exatamente, em que com esse método tão "simples", "fácil" e pseudo-revolucionário querem "resolver" a difícil tarefa de lutar contra as influências democrático-burguesas no seio do movimento operário e, na realidade, a única coisa que fazem é fugir de sua própria sombra, fechar os olhos diante das dificuldades e desembaraçar-se delas apenas com palavras”.
É seguindo a tradição do marxismo revolucionário que, no primeiro turno das eleições de 2010, lançamos o chamado a votar criticamente no PSTU, e em outro nível no PCO. Estas são organizações que se mantiveram independentes da burguesia. Porém, chamamos voto critico nestas organizações por avaliarmos que existem debilidades em suas propostas. Nossas críticas a estas organizações foram extensamente desenvolvidas em uma série de artigos. No segundo turno, por não ter se colocado nenhuma organização que defendam um programa socialista e de independência de classe, chamamos o voto nulo. O PCB (Partido Comunista Brasileiro), por outro lado, optou por apoiar a candidatura de Dilma Rousseff e do PT. Pretendemos agora demonstrar como esta constituiu uma estratégia equivocada, que em determinada medida contribuiu para debilitar a luta pela auto-organização e pela emancipação da classe trabalhadora.
O programa bolivariano do PCB é anticapitalista e antiimperialista?

“Aqueles que não se atrevem a mencionar as tarefas revolucionárias em alto e bom som jamais terão coragem de realizá-las”. Leon Trotsky. Pela Quarta Internacional, 1935.

A partir destes elementos iniciais colocados por Marx, Lênin e Trotsky abriremos a polemica com o PCB (Partido Comunista Brasileiro). Inicialmente tomaremos para análise o “Programa do PCB para as eleições de 2010”, que consta no site do partido.  Adiantaremos ao leitor que o programa distancia-se muito da perspectiva dos revolucionários debatidos anteriormente, abrindo mão inclusive do principio de independência de classe, capitulando ao chavismo e governos “pós-neoliberais”. Trata-se de um programa para governar um país capitalista, que, embora mova-se um pouco mais à esquerda em seu projeto, de forma alguma constitui um programa para derrubar o capitalismo.
Logo de inicio, cabe observar a caracterização que fazem das classes dominantes brasileiras. O programa professa existir uma fração da burguesia que defende “um Estado promotor de políticas compensatórias e incentivador de um “desenvolvimentismo” capaz de acelerar o crescimento capitalista e pretensamente resolver as desigualdades sociais através do ciclo virtuoso da produção, emprego, consumo”. Esta caracterização que fazem da candidata apresentada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), por sua vez, contribui para que o partido termine por encarar a candidatura de Dilma como “um mal menor” para o proletariado brasileiro (seguindo esta mesma lógica, no segundo turno, o PCB vai compor a “ala envergonhada” de apoio a Dilma, colocando como saída a consigna abstrata de “derrotá-la nas ruas”). Mesmo sabendo que tal candidatura não pode resolver as demandas das trabalhadoras e trabalhadores e brasileiros, abre-se mão da independência de classe do proletariado em relação à burguesia e seus candidatos.
Esta fração da burguesia brasileira, articulada ao redor de Dilma, este “mal menor”, segundo a visão do PCB, seria contraposta à burguesia neoliberal representada pelo PSDB, “os que defendem a ampliação das políticas neoliberais, com mais retirada de direitos dos trabalhadores, mais privatização, mais dependência do Estado ao capital financeiro internacional”. Esta contraposição entre o “mal maior” e o “mal menor” leva o PCB orientar o proletariado a ceder apoio à fração da burguesia representada por Dilma e o PT.
A estratégia do seguidismo político em relação às classes dominantes não fica restrita as fronteiras nacionais. Pois também em suas posições internacionais, o PCB tampouco prima pela independência de classe. Neste terreno o PCB levanta a política de apoio aos governos “pós-neoliberais” de Evo Morales (que se caracteriza por ter tinturas frente-populista) e, sobretudo o bonapartismo (hoje já debilitado) de Hugo Chávez. O PCB se inspira em seus projetos para elaborar seu próprio programa em âmbito partidário nacional. Com isso o partido abre mão da estratégia de independência do proletariado em relação a frações das classes dominantes. Pretende-se com esta base, com melhoras progressivas, desenvolver a democracia burguesa.
Certamente existem distinções qualitativas entre o que representa Dilma e o PT no Brasil e o que é o chavismo. O apoio à Dilma é fruto da lógica reformista de adesão ao “mal menor”. Porém, o apoio do PCB ao chavismo se dá porque o governo de Hugo Chávez é tomado como base para o projeto estratégico do PCB. Cabe a nos aqui colocar alguns elementos que contribuam para desmistificar o governo Chávez. Este apesar de ter tido tensões com o imperialismo, sobretudo na era Bush, de ter feito algumas expropriações (em que a patronal recebeu ricas indenizações) e da retórica socialista governa por meio de plebiscitos e referendos, utilizando-se de uma espécie de bonapartismo sui generis enquanto constrói um curioso “socialismo com empresários”. Para isso, Chávez ora se apóia nas classes dominantes, hora volta-se para as massas, apoiando-se nas Forças Armadas, para regatear com o imperialismo, sem romper efetivamente com o mesmo. Para verificar a centralidade que o PCB atribui ao modelo chavista em sua própria estratégia basta conferirmos seu programa nas eleições de 2010:
No plano político, os exemplos dos governos progressistas da América Latina, eleitos com o apoio de movimentos populares organizados e impulsionados por eles, têm demonstrado que há alternativas reais ao capitalismo e ao imperialismo capazes de elevar, de fato, o nível de qualidade de vida e de participação política da classe trabalhadora.
Tomando o chavismo como modelo, o PCB não se propõe ao combate imediato à propriedade burguesa, do patronato e dos ricos, que subalterniza o proletariado. Não busca atuar a partir da perspectiva revolucionária e insurrecional de tomada dos meios de produção, cassação e extirpação de todas as frações das classes dominantes. Trata-se segundo o programa, de uma “Campanha Movimento do PCB, estruturada na perspectiva de contribuir para a organização da Frente Anticapitalista e Antiimperialista”. Porém, efetivamente, o governo Chávez não pode de fato ser considerado verdadeiramente como anticapitalista, pois setores ligados ao petróleo e às grandes montadoras lucraram muito nem seus governos, chegando a ser conhecidos como “boliburguesia”. Também, não pode nem sequer ser considerado como um governo verdadeiramente antiimperialista, como ficou expresso em sua total paralisia frente ao golpe militar em Honduras em 2009.
Nesse sentido o PCB busca construir um chavismo abrasileirado, e para isso encobre os processos repressivos desencadeados por Chávez para conter o proletariado venezuelano. O governo Chávez, por sustenta-se sobre frações da burguesia venezuelana, não pode permitir que o proletariado do país se auto-organize e confronte-se com seus patrões e sua burguesia, levando suas demanda as ultimas conseqüências. Cada vez que o proletariado se levanta, Chávez se vê obrigado a sair em defesa de seus empresários aliados, como foi no caso da repressão desencadeada sobre os trabalhadores da Sanitários Maracay, em abril de 2007, momento em que o governo Chávez exigia que a fábrica fosse devolvida aos patrões. Também foram reprimidos os petroleiros da PDVSA, no dia 6 de agosto de 2007, contando inclusive com a prisão dos dirigentes sindicais Juan Cahuao, Jairo Ollarves, Aulio Soto e Francisco Villalobos. Defendendo intransigentemente os empresários aliados, Chávez, por intermédio da Guarda Nacional, atacou sistematicamente as manifestações dos trabalhadores, que lutavam por melhores condições de vida e trabalho, como se fossem “sabotadores” ou “contra-revolucionários”. A mesma política anti-proletária foi levada a cabo em relação aos trabalhadores da siderúrgica Sidor (Siderúrgica del Orinoco). Em março de 2008, os trabalhadores da Sidor desencadearam um processo grevista que durou quatro dias, mas tiveram que pagar por isso. Estes foram reprimidos com bobas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Na ocasião foram realizadas cinqüenta e três (53) prisões. Ou seja, o socialismo do século XXI de Chávez, construído com o empresariado e o patronato, e que é tomado como estratégia pelo PCB, é um governo que protege os patrões e reprime trabalhadores.
A gana do PCB por administrar o Estado burguês, o comitê de negócios da burguesia, é reafirmada logo em seguida quando diz: “O programa aponta para a construção de uma ordem institucional e política própria dos trabalhadores, capaz de impulsionar a criação de uma nova cultura proletária e popular e de contribuir para colocar o bloco proletário em movimento na luta contra a ordem conservadora”. A tarefa primeira é chegar ao poder por meio dos votos, com um programa democrático-burguês. Vejamos como o PCB, por meio da via eleitoral burguesa, pretende aplicar tal modelo no Brasil:
O PCB luta pela inversão da base do poder político atual – lastreado no domínio econômico dos grandes grupos capitalistas –, pela construção da democracia direta dos trabalhadores, com o fortalecimento do poder popular e a reformulação do sistema partidário-eleitoral atual.  
Propomos a instituição de novas formas de representação direta dos trabalhadores – o Poder Popular –, que viabilizarão a mais ampla liberdade de opinião, com a participação de movimentos organizados e partidos políticos.  
Entendemos ser necessárias: a reforma do sistema de representação político / institucional / partidário / eleitoral vigente, com a proposição de um Congresso Nacional unicameral, com o fim do Senado e a abertura das Tribunas parlamentares para organizações de trabalhadores e de lutas sociais; uma reforma eleitoral, com a adoção do financiamento público de campanha (...).
Esta consigna de Poder Popular é também inspiração direta do governo Hugo Chávez. Tal forma organizativa de inspiração chavista não resiste a uma análise minimante marxista. Mesmo os "círculos bolivarianos" que seriam expressão máxima do pretenso “poder popular” chavista funcionam na verdade como meras correias de transmissão da política chavista e de seu hall de empresários e patrões junto aos setores populares. Na realidade, os círculos bolivarianos, que em tese deveriam impulsionar a auto-organização destes setores, acabam por fazer garantir o poder do presidente e de seus sócios sobre a classe trabalhadora, impedindo que estas se organizem de maneira independente do governo por suas demandas mais candentes no marco da crise capitalista. Mas o PCB não vê problema algum nestes aspectos e ainda propõem em seu programa o “fortalecimento dos instrumentos atualmente existentes, como a ALBA, Banco do Sul e Unasul”. Estes organismos não passam de pactos entre as burguesias latino-americanas para garantir seus interesses. Nada tem a ver com a necessidade histórica de unidade latino-americana dos trabalhadores e dos povos subalternizados para combater o imperialismo, e sua sócia-menor, as burguesias locais. Necessitamos construir uma unidade latino-americana que dê resposta aos interesses mais sentidos dos trabalhadores e das massas espoliadas de nosso continente, está unidade só pode ser construída em combate direto às ilusões geradas pelas unidades burguesas, como o são a ALBA e a Unasul.

Apesar das diversas revisões, o PCB nunca fez um balanço sério de seu passado

O PCB segue seu curso de conciliador histórico e, quando não encontra no país uma fração burguesa “nacionalista” e “progressista” busca-as, agora, fora do Brasil, nos governos “pós-neoliberais” de Evo Morales e Hugo Chávez. Esta capitulação à frações das classes dominantes é produto direto da estratégia do PCB. Este partido de há muito – a despeito das várias revisões teórico-políticas que tenha feito – abandonou a estratégia da revolução. Se antes, na era do PCB histórico, este partido defendia a necessidade de uma revolução burguesa, o que o levava a buscas incansáveis de caudilhos pequeno-burgueses, agora, mesmo se dizendo socialista, o PCB vestindo um velho defunto defende um curioso “socialismo”, que necessita ser construído em aliança com as frações progressistas da burguesia, num já malfadado “bloco histórico”.
O PCB passou de “coveiro das revoluções proletárias” – quando tinha peso político e social no proletariado e nas massas em todo o mundo, sobretudo até os anos 60, momento em que podia esconder sua política contrarrevolucionária no biombo dos estados operários (essencialmente a URSS) – para se tornar um recriador das revoluções burguesas dirigidas por um pactuante “bloco histórico”. Em síntese, o PCB não rompeu seu curso histórico, mas adaptou-se à degeneração pró-imperialista das antigas frações “progressistas” e “nacionalistas” da burguesia e da pequena burguesia.
A grande dívida que o PCB teria que saldar junto ao proletariado – ao menos como revisão histórico-política – diz respeito às incomensuráveis traições que este partido perpetrou nos momentos em que dirigiu o movimento operário. Estas traições foram levadas a cabo repetidas vezes. Por décadas o PCB conduziu o proletariado a aliar-se aos diversos “males menores” (Getúlio, Juscelino, Jango). Ainda, para não afrontar frações da burguesia, o PCB traiu inúmeras greves, abandonando a luta pela independência política diante dos golpes militares, e levando adiante suas aventuras putchistas (como a Intentona Comunista, que impôs anos de retrocesso, perseguições, prisões e mortes para os lutadores operários e políticos). Para agir de forma conseqüente, este partido, que reivindica atuação no seio do proletariado, teria que ter feito um balanço sério de seu passado, que, infelizmente, deixou marcas profundas com qualidade de retrocessos para movimento operário brasileiro[i]. O PCB busca agora, apagando seu passado de coveiro da revolução brasileira, colocar-se com protagonista da construção de uma “revolução social”, neste ínterim procura, e ao mesmo tempo, calar-se diante dos pactos efetuados com os partidos burgueses, que remontam aos tempos da transição negociada, ajudando a renegar a memória dos que tombaram diante das forças repressivas oficiais e não oficiais do Estado brasileiro e das “frações burguesas progressistas” a quem o PCB capitulou durante toda a sua história.

O PCB e o segundo turno das eleições nacionais

Durante o segundo turno das eleições brasileiras de 2010 recoloca-se no pleito duas candidaturas burguesas. A perspectiva da existência de um “mal menor” para o proletariado na figura de Dilma leva o PCB a organizar o apoio à candidatura de Dilma. Frente a tal conjuntura retomamos o principio revolucionário de não conceder nenhum apoio às candidaturas que representam o patronato e a burguesia. Não apoiamos votos nos partidos das classes dominantes, nem no PSDB nem no PT. Para nós, seguindo a tradição dos revolucionários, a única forma possível de defender a autonomia da classe trabalhadora neste momento é votando nulo. O voto nulo é o voto contra os burgueses, os patrões e seus partidos.
O PCB tomou posição oposta. Coerente com a concepção e as propostas defendidas em seu programa para o primeiro turno das eleições de 2010, volta seu apoio à fração da burguesia que entende como mais progressista. E nesse sentido que destacamos que o PCB coloca-se como a “ala envergonhada” do bloco de apoio de Dilma. Retomando sua tradição de ruptura com o marxismo e de conciliação com as classes dominantes (dogma stalinista), este partido reformista, mesmo admitindo que ambas as candidaturas representam os interesses das classes dominantes, conclamam a classe trabalhadora (em nota oficial) a “Derrotar Serra nas urnas e Dilma nas ruas” usando para esta orientação o argumento de que “com o possível agravamento da crise do capitalismo, podem aumentar os ataques aos direitos sociais e trabalhistas e a repressão aos movimentos populares”.
Esta consigna de “derrotar Dilma nas ruas” coloca-se como uma mera forma abstrata para o PCB se “desculpar” do apoio à candidatura que representa, por fim, as classes que exploram e subalternizam, política e economicamente, o proletariado. Como derrotar Dilma nas ruas se o PCB não sequer cedeu tempo em sua campanha televisiva para dar visibilidade às lutas de classe que aconteceram no país? Além disso, o PCB “esqueceu-se” da declaração de Lula, em 2010, posicionando-se favorável ao corte de pontos dos trabalhadores em luta (USP, INSS e Judiciário), que assentou menos famílias do MST, do limitadíssimo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), engavetado para sempre pela candidata eleita (ela mesma uma vítima da ditadura militar), e ainda, que Dilma posicionou-se em rede nacional contra o direito ao aborto gratuito, legal e seguro. O que por sua vez abriu as portas para o desenvolvimento de uma onda reacionarismo no país.
Certamente o PCB não esqueceu-se destes ataques aos direitos da classe trabalhadora. Porém, a capitulação às frações da burguesia e do patronato é elemento constitutivo de sua estratégia. Basta recordarmos que o PCB, em 2002 esteve na coligação com o PT. Por fim, acabou por sair do governo sem explicar o que mudou, mesmo fora do governo, não teve qualquer plano sério para “derrotar Lula nas ruas”. A cada ato, o PCB mostra que não se pauta pela organização da classe trabalhadora de forma independente para a destruição do capitalismo – única tarefa progressista diante da decadência, cada vez maior, desse regime social – e pela construção do socialismo.
Sua incapacidade de colocar-se em luta pela construção do socialismo é reafirmada em sua opção por votar em Dilma como “mal menor” e na afirmação de que “irá às ruas” apenas se “aumentar os ataques aos direitos sociais e trabalhistas e a repressão aos movimentos populares”, ou seja, se os ataques e a repressão continuarem sendo os mesmos o partido deve se manter na inércia política. Ou seja, não se trata de buscar, por meio da atuação conseqüente na luta de classes, combatendo todas as frações da burguesia e do patronato, organizando greves, piquetes e ocupações, avançar na consciência, programa e prática para a estratégia de derrubar o capitalismo, mas de “combater seus males maiores”. Teoricamente, mesmo diante da crise capitalista mundial, não se pode descartar relativo crescimento econômico que permita ao governo Dilma manter-se demagogicamente sem “aumentar” os ataques. Frente a tal cenário o que fará o PCB? E ainda, como “derrotará Dilma nas ruas” se ajudou a disseminar as ilusões nesta?
Concretamente o PCB, ao apoiar envergonhadamente Dilma, fica detrás até mesmo do Ministério Público Federal, que está processando os torturadores da ditadura militar. O partido segue com a mesma linha de conciliação de classes que fez com que fosse o principal expoente em favor da assinatura da Lei da Anistia com o regime militar na transição. Momento em que o Deputado Federal emedebista Roberto Freire, dirigente do PCB, tornou-se o responsável pelo aval desses “comunistas” pcbistas à lei que igualava os torturados aos torturadores e assassinos. Uma vergonha histórica que o PCB não fez balanço. Por uma infinidade de elementos históricos e programáticos que compõe sua estratégia de conciliação de classes, o PCB não teve qualquer problema em manter-se com Dilma, o que por sua vez faz com que o PCB assine em baixo novamente a anistia aos torturadores e assassinos da ditadura militar-burguesa. Com apoio do PCB, os torturadores, mandantes e apoiadores da ditadura militar-burguesa podem continuar vivendo tranquilos – como Romeu Tuma, que morreu há poucas semanas livre e impune.
Com tal posicionamento o PCB reafirma toda sua trajetória histórica de capitulação ao reformismo (que é reafirmada desde Julio Prestes, passando por Caio Prado Junior até os dias atuais). Como é constitutivo da lógica de tradição stalinista, o PCB capitula a conciliação de classes, atacando o principal aspecto da perspectiva marxista: o principio da autonomia da classe trabalhadora em relação às classes dominantes. Alimenta ainda a ilusão nas eleições burguesas com a palavra de ordem “Vote nos comunistas, eles farão a diferença”. Explicita-se aqui novamente seu o desvio teórico reformista, pois difunde para o proletariado que é possível chegar ao socialismo por meio do parlamento burguês. Com tudo o que está exposto, evidencia-se que seu programa não tem nada de comunista. O programa do PCB para 2010 centra-se na busca da conquista do governo, em assumir o “leme” do Estado burguês para democratizá-lo, mantendo suas bases estruturais. Os comunistas devem denunciar incansavelmente os partidos como este, que recorrentemente produzem ilusões no seio do proletariado. Não devem temer a guerra de classes, pelo contrário, devem preparar cotidianamente a classe trabalhadora para identificar e negar estas direções conciliadoras, preparando o proletariado para ser vitorioso nesta guerra e avançar na conquista e consolidação da emancipação humana, com abolição das classes sociais, do patronato e extinção do Estado e da burguesia.
O PCB desde a década de 1920 tem agido como o braço esquerdo da burguesia, ao longo das décadas vem organizando os trabalhadores para derrotas de classe. Também nas eleições de 2010 continua a alimentar a ilusão nos governos burgueses (como fez com Getúlio Vargas, João Goulart e em outro nível agora com Dilma), alega (corretamente) que a vitória da Serra traria ataques aos direitos dos trabalhadores, e acaba (equivocadamente) defendendo que forma dos trabalhadores precaverem-se destes ataques é apoiar a burguesia que circunscreve Dilma Rousseff!
A única forma de evitar retrocessos nas conquistas da classe trabalhadora, bem como a intensificação do privatismo, é com a organização da classe trabalhadora em um programa independente. Trata-se de lutar conseqüentemente contra os ataques que a burguesia e seus governos vêm desferindo contra o proletariado, bem como sua intensificação nos próximos períodos. O combate do proletariado deve ser direcionado marco da ampliação das suas conquistas, centrado na perspectiva de dar solução aos grandes males sociais que o assolam. Nesse sentido, lutamos pela revolução operária e socialista, destruição do capitalismo e seu Estado, para abrir caminho para as verdadeiras conquistas das massas, a independência nacional, o monopólio social da terra e dos meios de produção, uma democracia de massas, soviética, que pressupõe nenhuma conciliação com qualquer fração burguesa ou seus agentes políticos. Efetivamente nossa estratégia é antípoda a defendida pelas classes dominantes e seus representantes, são inconciliáveis. Para nós, fazem-se extremamente atuais as consignas elencadas por Trotski n’O programa de transição, aos revolucionários, neste momento de crise estrutural do capital, trata-se de exigir um amplo plano de obras públicas de longa duração para criar empregos e distribuir moradias para o proletariado, redução da jornada de trabalho sem redução salarial, e ainda com aumento automático dos salários em relação aos preços, divisão das terras, reestatização das empresas privatizadas e dos bancos, sobre controle dos trabalhadores etc.
Não cabe aos marxistas revolucionários a capitulação e o colaboracionismo de classe expresso nas candidaturas da burguesia e da patronal. Dilma, assim como fez Lula, governará em favor dos monopólios e não para os trabalhadores. Continuará organizando os ataques contra os trabalhadores e trabalhadoras, referendando a terceirização, os empregos precários no campo e na cidade, coadunando com a morte de milhares de mulheres em abortos clandestinos, com as péssimas condições do sistema de saúde (SUS) e das escolas públicas, legitimando o limitadíssimo estatuto da igualdade racial, impedindo ainda a reforma agrária. Por tudo isto, defendemos junto aos trabalhadores, trabalhadoras e estudantes o voto nulo. Quando não se tem partidos que representem os interesses históricos do proletariado, esta se coloca com única forma possível de manter a independência de classe, alternativa que não conduz o proletariado aos grilhões enfeitados. Pois é isto que significa o apoio aos projetos das classes dominantes. Não aceitamos ceder nenhum apoio aos algozes do proletariado. O voto nulo deve expressar a defesa dos direitos democráticos dos trabalhadores e trabalhadoras, das mulheres, dos homossexuais, do povo negro e demais setores em condição de subalternização. Estes direitos não são defendidos por nenhuma das candidaturas pró-burguesas.
O exemplo dado pelos trabalhadores e trabalhadoras da França, apoiados pelos estudantes, nos apontou os caminhos para preparar a defender nossos direitos. Sua juventude e seus trabalhadores tomaram as ruas, ocuparam escolas, organizaram piquetes em refinarias e aeroportos, e enfrentam-se decididamente com o governo de Sarkozy em defesa de seu direito à aposentadoria. Sigamos o exemplo da juventude e dos trabalhadores franceses! O que garante os direitos e as liberdades dos trabalhadores não é o parlamento, mas sim a auto-organização do proletariado por meio de seus métodos históricos de luta (paralisações, greves, piquetes, ocupações, expropriações e greve geral insurrecional). Trata-se de resgatar os sindicatos nas mãos da burocracia sindical governista e pró-patronal, transformando-os em escolas de guerra de classe. E ainda de construir um partido revolucionário como fez Lênin e Trotski.

Preparar o proletariado para o novo período de luta de classes

Com a crise do Lerman Brother, em 2008, entramos em uma nova fase da luta de classes em nível mundial. No primeiro capitulo da crise capitalista mundial, os governos imperialistas fizeram com que os Estados assumissem as dividas das grandes empresas e multinacionais. Com isso, tanto na Europa, como nos EUA, China, etc., os Estado estão endividados. Por conseqüência disso, agora os Estados necessitam aplicar planos de enxugamentos de gastos. Segue-se com isso uma série de reformas pro-capitalistas, que atacam diretamente os direitos trabalhistas e os empregos. Busca-se descarregar os efeitos da crise sobre a classe trabalhadora mundial.
No Brasil, por conta de uma série de fatores (que vão desde a conjuntura do período anterior, tangido por um ciclo de crescimento da economia mundial, passando pela diversificação das exportações brasileira, até a reprimarização da economia), a crise capitalista chegou com menos força. Ainda assim, trata-se de um país dependente da economia dos países imperialistas. Assim, também no Brasil, a crise capitalista vai cobrar seu preço, sobretudo no período pós-eleitoral. No próximo período deve-se agravar a crise fiscal do Estado, bem como a crise decorrente da dificuldade de realização dos lucros da burguesia. A tendência colocada ao país é de uma nova onda de ataques a classe trabalhadora. Desta forma, é necessário preparar, desde já, o proletariado e demais lutadores para resistirem aos ataques do Estado burguês e das classes dominantes e lutar pela construção do socialismo. Nesse sentido, os revolucionários não devem alimentar qualquer ilusão em relação ao governo de Dilma e do PT, pois são representantes diretos da burguesia, que legislam contra os interesses históricos dos trabalhadores e trabalhadoras. É necessário defender o principio marxista de que a classe trabalhadora só pode confiar em suas forças para a transformação da sociedade. Cabe aos militantes, correntes e partidos que reivindicam o socialismo, levantar uma ampla campanha contra a burguesia, o patronato e seus representantes.


terça-feira, 19 de outubro de 2010

Proxima Reunião




Convidamos tod@s interessad@s para a discussão do texto "O Programa Militar da Revolução Proletária – de V. I. Lénine e História da Revolução Russa de Leon Trotsky (do cap. III ao VII).

Reunião Aberta:

Sábado, dia 23 de outubro 2010 as 15:00 h. no saguão da FFC.
Texto no Xerox e no blog: http://www.glem-r.blogspot.com
Contato: marxistasrevolucionarios@gmail.com

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O Programa Militar da Revolução Proletária - V. I. Lénine

V. I. Lénine
Setembro de 1916



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Escrito: em alemão em Setembro de 1916.

Primeira edição: em Setembro e Outubro de 1917 no jornal Jugend-Internationale, n.° 9 e 10. Em russo foi publicado pela primeira vez em 1929 nas 2.ª e 3.ª eds. das Obras Completas de V. I. Lénine, t. 19.
Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, Edições Avante! - Lisboa, Edições Progresso - Moscovo

Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t. 30, pp. 131-143.

Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, julho 2006

Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1977.



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Na Holanda, Escandinávia e na Suíça entre os sociais-democratas revolucionários que lutam contra a mentira dos sociais-chauvinistas sobre a «defesa da pátria» na actual guerra imperialista, ouvem-se vozes em favor da substituição do velho ponto do programa mínimo da social-democracia: «milícia» ou «armamento do povo» — por um novo: «desarmamento». O Jugend-Internationale[N382] abriu a discussão sobre esta questão e no seu n.° 3 publicou um artigo da redacção a favor do desarmamento. Nas mais recentes teses de R. Grimm[N383] encontramos também, infelizmente, uma concessão à ideia do «desarmamento». Nas revistas Neues Leben[N384]e Vorbote abriu-se uma discussão.

Analisemos a posição dos defensores do desarmamento.

I
O argumento fundamental consiste em que a reivindicação do desarma­mento é a expressão mais clara, mais decidida e mais consequente da luta contra todo o militarismo e contra toda a guerra.

Mas é neste argumento fundamental que reside o principal erro dos partidários do desarmamento. Os socialistas não podem, sem deixarem de ser socialistas, ser contra toda a guerra.

Em primeiro lugar, os socialistas nunca foram e nunca poderão ser adversários de guerras revolucionárias. A burguesia das «grandes» potências imperialistas tornou-se totalmente reaccionária, e nós reconhecemos que a guerra conduzida agora por essa burguesia é uma guerra reaccionária, escravista e criminosa. Mas que se pode então dizer de uma guerra contra esta burguesia? Por exemplo, de uma guerra dos povos oprimidos por esta burguesia e dela dependentes ou coloniais pela sua libertação? Nas teses do grupo «Internacional», no parágrafo 5, lê-se: «Na era deste imperialismo desenfreado já não pode haver quaisquer guerras nacionais» — isto é evidentemente falso.

A história do século XX, este século do «imperialismo desenfreado», está cheia de guerras coloniais. Mas aquilo a que nós, europeus, opressores imperialistas da maioria dos povos do mundo, com o odioso chauvinismo europeu que nos é próprio, chamamos «guerras coloniais», são frequentemente guerras nacionais ou insurreições nacionais destes povos oprimidos. Uma das propriedades mais fundamentais do imperialismo consiste precisamente em que ele acelera o desenvolvimento do capitalismo nos países mais atrasados e com isso amplia e agudiza a luta contra a opressão nacional. Isto é um facto. E daqui decorre, inevitavelmente, que o imperialismo em muitos casos tem que gerar guerras nacionais. Junius, que na sua brochura defende as «teses» citadas, diz que na época imperialista qualquer guerra nacional contra uma das grandes potências imperialistas leva à intervenção de outra grande potência, também imperialista e concorrente da primeira, e que, deste modo, qualquer guerra nacional se transforma em imperialista. Mas também este argumento é falso. Isto pode acontecer, mas nem sempre acontece. Muitas guerras coloniais nos anos de 1900 a 1914 não seguiram este caminho. E seria simplesmente ridículo se declarássemos que, por exemplo, depois da guerra actual, se ela terminar com um esgotamento extremo dos países beligerantes, «não pode» haver «nenhuma» guerra nacional, progressiva, revolucionária, por parte, digamos, da China em aliança com a Índia, Pérsia, Sião, etc, contra as grandes potências.

A negação de qualquer possibilidade de guerras nacionais sob o imperialismo é teoricamente falsa, evidentemente errada no plano histórico e equivalente no plano prático ao chauvinismo europeu: nós, que pertencemos às nações que oprimem centenas de milhões de pessoas na Europa, na África, na Ásia, etc, nós devemos declarar aos povos oprimidos que a sua guerra contra as «nossas» nações é «impossível»!

Em segundo lugar, as guerras civis também são guerras. Quem reconhece a luta de classes não pode deixar de reconhecer as guerras civis, que em qualquer sociedade de classes representam a natural, e em determinadas circunstâncias inevitável, continuação, desenvolvimento e agudização da luta de classes. Todas as grandes revoluções o confirmam. Negar as guerras civis ou esquecê-las significaria cair num oportunismo extremo e renegar a revolução socialista.

Em terceiro lugar, o socialismo vitorioso num só país de modo algum exclui imediatamente todas as guerras em geral. Pelo contrário, pressupõe-nas. O desenvolvimento do capitalismo realiza-se de modo extremamente desigual nos diferentes países. Nem pode ser de outra forma na produção mercantil. Daí decorre a indiscutível conclusão de que o socialismo não pode vencer simultaneamente em todos os países. Ele vencerá inicialmente num só ou em vários países, continuando os restantes a ser, durante certo tempo, burgueses ou pré-burgueses. Isto deverá provocar não apenas atritos mas também a tendência directa da burguesia dos outros países para derrotar o proletariado vitorioso do Estado socialista. Em tais casos a guerra seria da nossa parte legítima e justa. Seria uma guerra pelo socialismo, pela libertação de outros povos da burguesia. Engels tinha inteira razão quando, na sua carta a Kautsky de 12 de Setembro de 1882, reconhecia expressamente a possibilidade de «guerras defensivas» do socialismo já vitorioso. Ele tinha em vista, precisamente, a defesa do proletariado vitorioso contra a burguesia dos outros países.

Só depois de termos derrubado, vencido e expropriado definitivamente a burguesia no mundo inteiro, e não apenas num só país, é que as guerras se tornarão impossíveis. E, do ponto de vista científico, seria portanto completamente incorrecto e completamente não-revolucionário se eludíssemos ou dissimulássemos exactamente o que é mais importante: o esmagamento da resistência da burguesia — o mais difícil, o que mais luta exige durante a passagem ao socialismo. Os padres «sociais» e os oportunistas estão sempre prontos a sonhar com o futuro socialismo pacífico, mas aquilo que os distingue dos sociais-democratas revolucionários é exactamente eles não quererem pensar e sonhar com a encarniçada luta de classes e com as guerras de classes para tornar realidade este futuro maravilhoso.

Não nos devemos deixar enganar por palavras. Por exemplo, a noção «defesa da pátria» é odiosa para muitos, porque os oportunistas declarados e os kautskistas encobrem e dissimulam com ela a mentira da burguesia na presente guerra de rapina. Isto é um facto. Mas disto não decorre que devamos deixar de saber meditar sobre o significado das palavras de ordem políticas. Reconhecer a «defesa da pátria» nesta guerra significa considerá-la «justa», conforme com os interesses do proletariado, e nada mais, e mais uma vez nada mais, porque a invasão não se exclui em nenhuma guerra. Seria simplesmente uma estupidez negar a «defesa da pátria» por parte dos povos oprimidos na sua guerra contra as grandes potências imperialistas ou por parte do proletariado vitorioso na sua guerra contra qualquer Galliffet de um Estado burguês.

No plano teórico seria totalmente errado esquecer que qualquer guerra não é mais do que a continuação da política por outros meios; a actual guerra imperialista é a continuação da política imperialista de dois grupos de grandes potências, e esta política é gerada e alimentada pelo conjunto das relações da época imperialista. Mas esta mesma época deve necessariamente gerar e alimentar também a política de luta contra a opressão nacional e de luta do proletarido contra a burguesia e, por isso, a possibilidade e a inevitabifidade, em primeiro lugar, das insurreições e guerras revolucionárias nacionais, em segundo lugar das guerras e insurreições do proletariado contra a burguesia, em terceiro lugar da unificação de ambas as espécies de guerras revolucionárias, etc.

II
A isto junta-se ainda a seguinte consideração geral.

Uma classe oprimida que não aspire a aprender a manejar as armas, a possuir armas, tal classe oprimida mereceria apenas ser tratada como são tratados os escravos. Pois não podemos esquecer, sem nos transformarmos em pacifistas burgueses ou oportunistas, que vivemos numa sociedade de classes e que dela não há nem pode haver outra saída que não seja a luta de classes. Em qualquer sociedade de classes, seja ela baseada na escravatura, na servidão ou, como agora, no trabalho assalariado, a classe opressora está armada. Não só o actual exército permanente, mas também a actual milícia, mesmo nas repúblicas burguesas mais democráticas, por exemplo na Suíça, são o armamento da burguesia contra o proletariado. Esta é uma verdade tão elementar que talvez não haja necessidade de nos determos nela em especial. Basta lembrar o emprego de tropas contra os grevistas em todos os países capitalistas.

O armamento da burguesia contra o proletariado é um dos factos mais consideráveis, fundamentais e importantes da moderna sociedade capitalista. E perante este facto propõe-se aos sociais-democratas revolucionários que apresentem a «reivindicação» do «desarmamento»! Isso seria uma negação total do ponto de vista da luta de classes, uma renúncia de qualquer ideia de revolução. A nossa palavra de ordem deve ser: armar o proletariado para vencer, expropriar e desarmar a burguesia. Esta é a única táctica possível para a classe revolucionária, táctica que decorre de todo o desenvolvimento objectivo do militarismo capitalista e é determinada por este desenvolvimento. Só depois de o proletariado desarmar a burguesia é que poderá, sem trair a sua tarefa histórico-universal, atirar para o ferro-velho todo o armamento em geral e, indubitavelmente, o proletariado fá-lo-á, mas só então, de modo nenhum antes.

Se a guerra actual provoca nos reaccionários socialistas cristãos e nos choramingas pequeno-burgueses apenas o horror e medo, apenas repugnância por qualquer emprego das armas, pelo sangue, pela morte, etc, nós devemos dizer: a sociedade capitalista foi e é sempre um horror sem fim. E se agora a mais reaccionária de todas as guerras prepara a esta sociedade um fim horrível, nós não temos nenhuma razão para cair no desespero. E, pelo seu significado objectivo, outra coisa não é senão uma manifestação precisamente de desespero, a «reivindicação» de desarmamento — melhor dizendo: o sonho com o desarmamento, numa altura em que diante dos olhos de todos se prepara, com as forças da própria burguesia, a única guerra legítima e revolucionária, a saber: a guerra civil contra a burguesia imperialista.

A quem diga que isto é uma teoria separada da vida, recordaremos dois factos históricos universais: por um lado o papel dos trusts e do trabalho das mulheres nas fábricas e, por outro, a Comuna de 1871 e a insurreição de Dezembro de 1905 na Rússia.

A burguesia encarrega-se de desenvolver os trusts, de empurrar as crianças e as mulheres para as fábricas, de aí as martirizar, perverter e condenar à extrema miséria. Nós não «reivindicamos» tal desenvolvimento, não o «apoiamos», lutamos contra ele. Mas como lutamos? Sabemos que os trusts e o trabalho das mulheres nas fábricas são progressivos. Não queremos andar para trás, para o trabalho artesanal, para o capitalismo pré-monopolista, para o trabalho doméstico das mulheres. Avante, através dos trusts, etc, e mais além, para o socialismo!

Este raciocínio é aplicável também, com as devidas modificações, à actual militarização do povo. Hoje a burguesia imperialista militariza não só todo o povo, mas também a juventude. Amanhã talvez comece a militarizar as mulheres. Nós devemos dizer a este propósito: tanto melhor! Rápido para a frente! Quanto mais rápido, mais nos aproximamos da insurreição armada contra o capitalismo. Como podem os sociais-democratas deixar-se amedrontar pela militarização da juventude, etc, se não esquecem o exemplo da Comuna? Isto não é uma «teoria separada da vida», não é um sonho, mas um facto. E seria na verdade muito mau se os sociais-democratas, apesar de todos os factos económicos e políticos, começassem a duvidar de que a época imperialista e as guerras imperialistas devem conduzir inevitavelmente à repetição de tais factos.

Um observador burguês da Comuna escrevia em Maio de 1871 num jornal inglês: «Se a nação francesa fosse constituída só por mulheres, que terrível nação seria!» As mulheres e as crianças com mais de 13 anos de idade lutaram durante a Comuna juntamente com os homens. Não poderá ser de outra forma também nos futuros combates pelo derrubamento da burguesia. As mulheres proletárias não contemplarão passivamente como a burguesia bem armada metralhará os operários mal armados ou desarmados. Elas pegarão em armas, tal como em 1871, e, das actuais nações amedrontadas -ou melhor: do actual movimento operário, desorganizado mais pelos oportunistas do que pelos governos — surgirá, indubitavelmente, mais cedo ou mais tarde, mas de modo absolutamente indubitável, uma aliança internacional de «terríveis nações» do proletariado revolucionário.

Agora a militarização penetra toda a vida social. O imperialismo é uma luta encarniçada das grandes potências pela partilha e redistribuição do mundo, por isso deve conduzir inevitavelmente ao reforço da militarização em todos os países, mesmo nos neutros e nos pequenos. Que farão contra isso as mulheres proletárias?? Apenas maldizer toda a guerra e tudo o que é militar, apenas reivindicar o desarmamento? Nunca as mulheres duma classe oprimida, que é efectivamente revolucionária, se conformarão com um papel tão vergonhoso. Elas dirão aos seus filhos: «Em breve serás grande. Dar-te-ão uma espingarda. Toma-a e aprende bem a manejar as armas. Esta ciência é indispensável para os proletários — não para atirar contra os teus irmãos, os operários de outros países, como se faz na actual guerra e como os traidores do socialismo te aconselham a fazer — mas para lutar contra a burguesia do teu próprio país, para pôr fim à exploração, à miséria e às guerras não por meio de votos piedosos, mas por meio da vitória sobre a burguesia e do seu desarmamento.»

Se se renunciar a fazer tal propaganda, e precisamente tal propaganda em relação à guerra actual, é melhor não dizer grandes palavras sobre a social-democracia revolucionária internacional, sobre a revolução socialista e sobre a guerra contra a guerra.

III
Os partidários do desarmamento pronunciam-se contra o ponto programático do «armamento do povo», entre outras coisas porque esta última reivindicação conduziria mais facilmente a concessões ao oportunismo. Nós analisámos acima o mais importante: a relação do desarmamento com a luta de classes e com a revolução social. Analisemos agora a questão da relação da reivindicação do desarmamento com o oportunismo. Uma das mais importantes causas da inadmissibilidade desta reivindicação consiste precisamente em que ela e as ilusões que gera debilitam e retiram força inevitavelmente à nossa luta contra o oportunismo.

Não há dúvida de que esta luta é a questão principal imediata da Internacional. Uma luta contra o imperialismo que não esteja indissoluvelmente ligada à luta contra o oportunismo é uma frase oca ou um logro. Um dos principais defeitos de Zimmerwald e de Kienthal[N385], uma das causas fundamentais do possível fracasso destes germes da III Internacional consiste exactamente no facto de a questão da luta contra o oportunismo não ter sido sequer colocada abertamente, não falando já da sua resolução no sentido da necessidade da ruptura com os oportunistas. O oportunismo venceu — temporariamente — no seio do movimento operário europeu. Em todos os grandes países formaram-se dois matizes principais do oportunismo: primeiro, o social-imperialismo aberto, cínico, e por isso menos perigoso, dos senhores Plekhánov, Scheidemann, Legien, Albert Thomas e Sembat, Vandervelde, Hyndman, Henderson, etc. Segundo, o encoberto, kautskiano: Kautsky—Haase e o «Grupo Social-Democrata do Trabalho»[N386] na Alemanha; Longuet, Pressemane, Mayéras, etc, na França; Ramsay MacDonald e outros chefes do «Partido Trabalhista Independente» da Inglaterra; Mártov, Tchkheídze, etc, na Rússia; Treves e outros reformistas ditos de esquerda na Itália.

O oportunismo franco é aberta e directamente contra a revolução e contra os movimentos e explosões revolucionárias que se estão a iniciar e está em aliança directa com os governos, por mais diferentes que sejam as formas desta aliança, a começar com a participação nos ministérios e a terminar com a participação nos comités industriais de guerra (na Rússia)[N387]. Os oportunistas encobertos, os kautskianos, são muito mais perniciosos e perigosos para o movimento operário, porque eles escondem a sua defesa da aliança com os primeiros com a ajuda de palavrinhas «marxistas» e palavras de ordem pacifistas que soam a plausível. A luta contra estas duas formas do oportunismo dominante deve ser travada em todos os terrenos da política proletária: no parlamento, nos sindicatos, nas greves, nas questões militares, etc. A principal particularidade que distingue ambas estas formas do oportunismo dominante consiste em que é silenciada, encoberta ou tratada com os olhos postos nas proibições policiais a questão concreta da ligação da guerra actual com a revolução e outras questões concretas da revolução. E isto apesar de antes da guerra se ter assinalado inúmeras vezes a ligação precisamente desta guerra iminente com a revolução proletária, tanto de modo não oficial, como oficialmente no Manifesto de Basileia[N388]. Mas o principal defeito da reivindicação do desarmamento consiste precisamente em que aqui se eludem todas as questões concretas da revolução. Ou será que os partidários do desarmamento são por um tipo totalmente novo de revolução desarmada?

Continuemos. Nós não somos de modo algum contra a luta por reformas. Não queremos ignorar a triste possibilidade de que a humanidade sofra, no pior dos casos, ainda uma segunda guerra imperialista, se a revolução não surgir da guerra actual, apesar das numerosas explosões da efervescência das massas e do descontentamento das massas e apesar dos nossos esforços. Somos partidários de um programa de reformas que também deve estar voltado contra os oportunistas. Os oportunistas ficariam muito felizes se nós deixássemos só para eles a luta por reformas e nos elevássemos para as nuvens de um vago «desarmamento», fugindo de uma triste realidade. O «desarmamento» é precisamente a fuga a uma detestável realidade e de modo nenhum uma luta contra ela.

Num tal programa nós diríamos mais ou menos assim: «A palavra de ordem e o reconhecimento da defesa da pátria na guerra imperialista de 1914-1916 são apenas a corrupção do movimento operário com mentiras burguesas.» Tal resposta concreta às questões concretas seria teoricamente mais correcta, muito mais útil para o proletariado, mais insuportável para os oportunistas, do que a reivindicação do desarmamento e do que a renúncia a «toda» a defesa da pátria. E poderíamos acrescentar: «A burguesia de todas as grandes potências imperialistas, da Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, Rússia, Itália, Japão e Estados Unidos, tornou-se tão reaccionária e tão penetrada da aspiração ao domínio mundial que toda a guerra por parte da burguesia destes países só pode ser reaccionária. O proletariado deve ser não só contra toda a guerra deste tipo, mas também deve desejar a derrota do 'seu' governo em tais guerras e aproveitá-la para uma insurreição revolucionária, se não tiver êxito a insurreição com o fim de impedir a guerra.»


Sobre a questão da milícia deveríamos dizer: não somos pela milícia burguesa, mas apenas pela proletária. Por isso, «nem um centavo e nem um homem» não só para o exército permanente, mas também para a milícia burguesa, mesmo em países como os Estados Unidos ou a Suíça, a Noruega, etc. Tanto mais que nós vemos nos países republicanos mais livres (por exemplo na Suíça) uma prussificação cada vez maior da milícia, especialmente em 1907 e 1911, e a sua prostituição para a mobilização das tropas contra os grevistas. Nós podemos reivindicar: a eleição dos oficiais pelo povo, a abolição de toda a justiça militar, a igualdade de direitos dos operários estrangeiros e nacionais (um ponto especialmente importante para os Estados imperialistas que, como a Suíça, exploram em número cada vez maior e de modo cada vez mais desavergonhado os operários estrangeiros, deixando-os privados de direitos), mais: o direito de, digamos, cada centena de habitantes de um dado país formar livres uniões para o estudo de toda a arte militar, com a livre escolha dos instrutores, com o pagamento do seu trabalho pelo erário público, etc. Só em tais condições o proletariado poderia estudar a arte militar efectivamente para si, e não para os seus escravizadores, e os interesses do proletariado exigem indiscutivelmente esse estudo. A revolução russa demonstrou que qualquer êxito, mesmo um êxito parcial do movimento revolucionário — por exemplo, a conquista de uma determinada cidade, de uma determinada povoação fabril, de uma determinada parte do exército —, obrigará inevitavelmente o proletariado vitorioso a realizar precisamente tal programa.

Por fim, não se pode lutar contra o oportunismo, como é evidente, só com programas, mas apenas através de uma constante vigilância para que eles sejam efectivamente postos em prática. O maior e fatal erro da fracassada II Internacional consistiu em que as palavras não correspondiam aos actos, em que se inculcava o hábito da hipocrisia e das desavergonhadas frases revolucionárias (ver a actual atitude de Kautsky e C.a para com o Manifesto de Basileia). O desarmamento, como ideia social, isto é, como ideia gerada por determinado ambiente social e que pode actuar sobre determinado ambiente social e não permanece como simples capricho pessoal, foi gerado, evidentemente, pelas condições de vida especiais, excepcionalmente «tranquilas», de alguns pequenos Estados, que durante um período de tempo bastante longo se mantiveram à margem do sangrento caminho mundial das guerras e têm esperanças de continuar à margem. Para se convencer disto basta pensar, por exemplo, na argumentação dos partidários noruegueses do desarmamento: «nós somos um pequeno país, o nosso exército é pequeno, não podemos fazer nada contra as grandes potências» (por isso também são impotentes contra a inclusão pela força numa aliança imperialista com este ou aquele grupo de grandes potências)... «queremos continuar em paz no nosso recanto perdido e continuar a nossa política de recanto perdido, reivindicar o desarmamento, tribunais de arbitragem obrigatórios, neutralidade permanente, etc.» («permanente» - talvez como a belga?).

A pequena aspiração dos pequenos Estados a ficarem à margem, o desejo pequeno-burguês de ficar o mais longe possível das grandes batalhas da história mundial, de aproveitar a sua situação relativamente monopolista para permanecer numa empedernida passividade, eis o ambiente social objectivo que pode assegurar um certo êxito e uma certa difusão à ideia do desarmamento em alguns Estados pequenos. Naturalmente que esta aspiração é reaccionária e assenta totalmente em ilusões, pois o imperialismo arrasta de uma forma ou de outra os pequenos Estados para o turbilhão da economia mundial e da política mundial.

À Suíça, por exemplo, o seu ambiente imperialista impõe objectivamente duas linhas do movimento operário: os oportunistas em aliança com a burguesia aspiram a fazer da Suíça uma união monopolista republicano-democrática para receber os lucros dos turistas da burguesia imperialista e para que esta «tranquila» situação do monopólio seja aproveitada do modo mais vantajoso, mais tranquilo possível.

Os verdadeiros sociais-democratas da Suíça esforçam-se por aproveitar a relativa liberdade e a posição «internacional» da Suíça para ajudar a estreita aliança dos elementos revolucionários dos partidos operários da Europa a vencer. A Suíça fala, graças a Deus, não «a sua própria língua», mas três línguas mundiais, e exactamente aquelas que falam os países beligerantes limítrofes.


Se os 20 000 membros do partido suíço contribuíssem semanalmente com dois cêntimos a título de «imposto extraordinário de guerra», nós receberíamos anualmente 20 000 francos, mais do que suficiente para, apesar das proibições dos Estados-Maiores, imprimir periodicamente e difundir em três línguas entre os operários e os soldados dos países beligerantes tudo aquilo que contém a verdade sobre a indignação que começa a surgir nos operários, sobre a sua confraternização nas trincheiras, sobre as suas esperanças no aproveitamento revolucionário das armas contra a burguesia imperialista dos seus «próprios» países, etc.


Tudo isto não é novo. É exactamente o que fazem os melhores jornais como La Sentinelle, Volksrecht, Berner Tagwacht[N389], mas, infelizmente, em medida insuficiente. Apenas na via de tal actividade a magnífica resolução do congresso do partido em Aarau[N390] pode tornar-se algo mais do que simplesmente uma magnífica resolução.

A questão que nos interessa agora coloca-se assim: corresponde a reivindicação de desarmamento à corrente revolucionária entre os sociais-democratas suíços? É evidente que não. Objectivamente, o «desarmamento» é o programa mais nacional, especificamente nacional, dos pequenos Estados, mas de modo nenhum o programa internacional da social-democracia revolucionária internacional.

Assinado: N. Lénine.

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Notas de fim de Tomo:

[N381] O artigo O Programa Militar da Revolução Proletária [na sua correspondência V. I. Lénine chama-lhe Entwaffnung (Sobre o Desarmamento)], foi escrito em alemão e destinado a ser publicado na imprensa dos sociais-democratas de esquerda suíços, suecos e noruegueses. Mas o artigo não foi publicado na altura. Um pouco mais tarde Lénine deu uma nova redacção ao artigo para publicá-lo em russo.

O texto alemão inicial foi publicado no órgão da União Internacional das Organizações Socialistas da Juventude Jugend-Internationale, n.° 9 e 10 de Setembro e Outubro de 1917, sob o título: Das Militärprogramm der proletarischen Revolution. (retornar ao texto)

[N382] Jugend-Internationale (A Internacional da Juventude), órgão da União Internacional das Organizações Socialistas da Juventude, que aderira à esquerda de Zimmerwald; publicou-se de Setembro de 1915 a Maio de 1918 em Zurique. (retornar ao texto)

[N383] Trata-se das teses sobre a questão militar redigidas por R. Grimm e publicadas no jornal Grütlianer, n.° 162 e 164, de 14 e 17 de Julho de 1916. (retornar ao texto)


[N384] Neues Leben (Vida Nova): revista mensal, órgão do Partido Social-Democrata da Suíça; editou-se em Berna entre Janeiro de 1915 e Dezembro de 1917. A revista propagava as ideias da direita de Zimmerwald. Desde começos de 1917 teve uma posição social-chauvinista. (retornar ao texto)

[N385] Trata-se das conferências socialistas internacionais em Zimmerwald e Kienthal (Suíça). A Conferência de Zimmerwald ou Primeira Conferência Socialista Internacional realizou-se em 5-8 de Setembro de 1915. Participaram nela 38 delegados dos socialistas de 11 países europeus. A delegação do CC do POSDR foi dirigida por V. I. Léninne.

A conferência aprovou o manifesto-apelo Aos Proletários da Europa, elaborado pela comissão, no qual se conseguiu introduzir, graças à insistência de Lénine e dos sociais-democratas de esquerda, uma série de teses fundamentais do marxismo revolucionário. Além disso, a conferência aprovou a declaração conjunta das delegações alemã e francesa, a resolução de simpatia para com as vítimas da guerra e os combatentes perseguidos por causa da sua actividade política, e elegeu a Comissão Socialista internacional.

Foi criado na conferência o grupo da esquerda de Zimmerwald, do qual faziam parte os representantes do CC do POSDR, com Lénine à frente, da direcção territorial da Sociali-Democracia do Reino da Polónia e da Lituânia, do CC da Social-Democracia do Território Letão, da esquerda sueca (S. Höglund), da esquerda norueguesa (T. Nerman), da esquerda suíça (F. Platten), do grupo "Os socialistas internacionais da Alemanha» (I. Borchardt). O grupo da esquerda de Zimmerwald travou na conferência uma luta activa contra a maioria centrista da conferência. No grupo apenas os representantes dos bolcheviques tinham uma posição consequente até ao fim.

A Conferência de Kienthal ou Segunda Conferência Socialista Internacional realizou-se de 24 a 30 de Abril de 1916. Participaram na conferência 43 delegados dos socialistas de 10 países. Na conferência estiveram presentes três representantes do CC do POSDR, encabeçados por V. I. Lénine.

Na conferência foram debatidas as seguintes questões: 1) a luta pela cessação da guerra; 2) a atitude do proletariado para com os problemas da paz; 3) a agitação e propaganda; 4) a actividade parlamentar; 5) a luta de massas e 6) a convocação do Bureau Socialista Internacional.

O grupo da esquerda de Zimmerwald, encabeçado por V. I. Lénine, ocupava na Conferência de Kienthal posições mais fortes do que em Zimmerwald. Agrupava 12 delegados, e em certas questões votavam a favor das suas propostas cerca de 20 pessoas, isto é, quase metade dos participantes na conferência. Este facto reflectia a modificação da correlação de forças no movimento operário internacional a favor do internacionalismo.

A conferência aprovou o manifesto-apelo Aos Povos Supliciados e Martirizados e as resoluções criticando o pacifismo e o Bureau Socialista Internacional. Lénine considerava as resoluções da conferência um passo cm frente na causa da coesão dos internacionalistas na luta contra a guerra imperialista.

As conferências de Zimmerwald e de Kienthal contribuíram para a união dos elementos de esquerda da social-democracia europeia ocidental, na base ideológica do marxismo-leninismo, os quais desempenharam mais tarde um papel activo na luta pela criação dos partidos comunistas nos seus países e. na formação da III Internacional, a Internacional Comunista. (retornar ao texto)

[N386] Grupo Social-Democrata do Trabalho (Arbeitsgemeinschaft, «Comunidade de trabalho»): organização dos centristas alemães, foi formada em Março de 1916 pelos deputados ao Reichstag que se separaram da fracção social-democrata do Reichstag. O grupo contava com a maioria da organização de Berlim. O Grupo Social-Democrata do Trabalho constituiu o núcleo principal do Partido Social-Democrata Independente da Alemanha formado em Abril de 1917, que defendia os sociais-chauvinistas declarados e se pronunciava pela manutenção da unidade com eles. (retornar ao texto)


[N387] Os comités industriais de guerra foram criados na Rússia em Maio de 1915 pela grande burguesia imperialista, para ajudar o tsarismo na condução da guerra. O presidente do comité industrial de guerra central era um grande capitalista, dirigente dos outubristas, A. I. Gutchkov. Tentando subordinar os operários à sua influência e infundir-lhes ideias defensistas, a burguesia decidiu organizar os «grupos operários» adjuntos aos comités e mostrar dessa maneira que na Rússia estava instaurada uma «paz de classes» entre a burguesia e o proletariado. Os bolcheviques declararam o boicote aos comités industriais de guerra e levaram-no a cabo eficazmente com o apoio da maioria dos operários.

Em consequência dum trabalho de esclarecimento realizado pelos bolcheviques, apenas em 70 comités, do número total de 239 comités industrais de guerra, regionais e locais, foram realizadas eleições para os «grupos operários», sendo eleitos representantes operários apenas em 36 comités. (retornar ao texto)

[N388] Manifesto de Basileia: manifesto sobre a guerra aprovado no Congresso socialista internacional extraordinário realizado em Basileia (Suíça) de 24 a 25 de Novembro de 1912 (ver a nota 345 do presente tomo). (retornar ao texto)

[N389] La Sentinelle (A Sentinela): jornal, órgão da organização social-democrata do cantão de Neuchâtel (Suíça); publicou-se em Chaux-de-Fonds a partir de 1890. Não se publicou de 1906 a 1910. Nos anos da guerra mundial imperialista (1914-1918) o jornal teve uma posição internacionalista.

Volksrecht (Direito do Povo): jornal diário, órgão do Partido Social-Democrata da Suíça, editado em Zurique a partir de 1898. Nos anos da guerra mundial imperialista o jornal publicou artigos dos representantes da esquerda de Zimmerwaid.

Berner Tagwacht (Sentinela de Berna): jornal, órgão do Partido Social-Democrata da Suíça, que se publicou a partir de 1893 em Berna. No início da guerra mundial imperialista publicaram-se no jornal artigos de K. Liebknecht, F. Mehring e outros sociais-democratas. A partir de 1917 o jornal começou a apoiar abertamente os sociais-chauvinistas. (retornar ao texto)

[N390] V. I. Lénine refere-se ao Congresso do Partido Social-Democrata da Suíça em Aarau, que se realizou em 20-21 de Novembro de 1915. O ponto centrai da ordem do dia do congresso era a questão da atitude da social-democracia suíça para com o agrupamento dos internacionalistas de Zimmerwald. Em torno dessa questão travou-se na social-democracia suíça uma luta entre três orientações: 1) a dos antízimmerwaldianos, 2) a dos partidários da direita de Zimmerwald e 3) a dos partidários da esquerda de Zimmerwald.

R. Grimm apresentou uma resolução na qual se propunha ao partido social--democrata suíço que este se juntasse ao agrupamento de Zimmerwald e aprovasse a linha política dos partidários da direita de Zimmerwald. Os sociais-democratas de esquerda suíços apresentaram, em nome da secção de Lausanne, uma emenda à resolução de R. Grimm. Propunha-se na emenda reconhecer a necessidade de desenvolver uma luta revolucionária de massas contra a guerra e declarava-se que só a revolução vitoriosa do proletariado podia pôr termo à guerra imperialista. Depois de a emenda da secção de Lausanne, sob a pressão de R. Grimm, ter sido retirada, foi novamente apresentada pelo bolchevique M. M. Kharitónov, que participou no congresso na qualidade de delegado com voto deliberativo, representando uma das organizações sociais-democratas suíças. R. Grimm e os seus partidários viram-se forçados, por considerações tácticas, a apoiar a emenda. O congresso aprovou por maioria de votos (258 contra 141) a emenda dos representantes da esquerda. (retornar ao texto)

[N345] O Congresso socialista internacional de Stuttgart (VII Congresso da II Internacional) decorreu de 18 a 24 de Agosto de 1907. Participaram no congresso 886 delegados, representantes dos partidos socialistas e dos sindicatos.

O congresso examinou as seguintes questões: 1) o militarismo e os conflitos internacionais; 2) relações mútuas entre os partidos políticos e os sindicatos; 3) questão colonial; 4) imigração e emigração dos operários; 5) direitos eleitorais das mulheres.

Durante o congresso V. I. Lénine realizou um enorme trabalho para unir as forças da esquerda na social-democracia internacional, lutando decididamente contra os oportunistas e revisionistas.
V. I. Lénine participou no trabalho da comissão para a questão principal: «O militarismo e os conflitos internacionais». Quando da discussão do projecto da resolução proposto por A. Bebel, V. I. Lénine, através das suas emendas, apoiadas pelos representantes da social-democracia polaca, conseguiu a sua modificação radical no espírito do marxismo revolucionário.

A aprovação da resolução «o militarismo e os conflitos internacionais» foi uma grande vitória da ala revolucionária sobre a ala oportunista no movimento operário internacional.

O Congresso socialista internacional de Copenhaga (VIII Congresso da II Internacional) reaíizou-se de 28 de Agosto a 3 de Setembro de 1910. Participaram no congresso 896 delegados. Com o objectivo de unir os marxistas revolucionários na arena internacional, Lénine realizou durante o congresso uma reunião com os sociais-democratas de esquerda que participavam no congresso.
Na resolução «Tribunais de arbitragem e desarmamento» respeitante à questão da luta contra a guerra, o congresso reafirmou a resolução do Congresso de Stuttgart (1907) «O militarismo e os conflitos internacionais», que incluía as emendas propostas por V. I. Lénine e R. Luxemburg, que exigiam que os socialistas de todos os países aproveitassem a crise económica e política provocada pela guerra para derrubar a burguesia. A resolução do Congresso de Copenhaga obrigava também os partidos socialistas e os seus representantes nos parlamentos a exigirem dos seus governos a redução dos armamentos, a solução dos conflitos entre os Estados por meio do tribunal de arbitragem e apelava para que os operários de todos os países organizassem protestos contra a ameaça de guerra.

Congresso de Basileia: congresso socialista internacional extraordinário realizado em Basileia em 24 e 25 de Novembro de 1912. O congresso foi convocado para solucionar a questão da luta contra o perigo da guerra mundial imperialista, perigo que aumentou ainda mais depois do início da primeira guerra balcânica. No congresso participaram 555 delegados. No dia da abertura do congresso realizou-se uma concorrida manifestação anti-militarista e um comício internacional de protesto contra a guerra.

Em 25 de Novembro foi aprovado no congresso, por unanimidade, o manifesto sobre a guerra. O manifesto prevenia os povos sobre o perigo da guerra mundial que se avizinhava. Mostrava os objectivos espoliadores da guerra que os imperialistas preparavam e exortava os operários de todos os países a travar uma luta decidida pela paz, contra o perigo da guerra, a «contrapor ao imperialismo capitalista a força da solidariedade internacional do proletariado». Caso surgisse a guerra imperialista, o manifesto recomendava aos socialistas que utilizassem as crises económica e política provocadas pela guerra para lutar pela revolução socialista.

Os dirigentes da II Internacional (Kautsky, Vandervelde e outros) votaram no congresso pela aprovação do manifesto contra a guerra. Porém, uma vez iniciada a guerra mundial imperialista, eles deixaram no esquecimento o Manifesto de Basileia, assim como outras resoluções dos congressos socialistas internacionais sobre a luta contra a guerra, e passaram-se para o lado dos seus governos imperialistas. (retornar ao texto)

O processo revolucionário que culmina no golpe de 64 e as bases para a construção de um partido revolucionário no Brasil

O processo revolucionário que culmina no golpe de 64 e as bases para a construção de um partido revolucionário no Brasil

Edison Salles e Daniel Matos

Introdução
“O essencial é que estas reformas de base substituam a revolução. Estamos falando de reformas de base, mas devemos ter em mente que isso é uma forma de evitar a revolução que se avizinha”. (Antonio Queiroz do Amaral, intelectual que colaborou com o golpe) [1]

Ao longo de sua história, a classe operária latino-americana, com suas ações independentes de grande magnitude, aportou com importantes tradições para o movimento operário mundial. A revolução boliviana de 1952 e sua derrota parcial do exército pelas dinamites dos mineiros, assim como a Assembléia Popular que surgiu neste país na década de 70, como exemplo embrionário de um organismo de tipo soviético... os Cordões Industriais no Chile dos anos 70 com seu exemplo de auto-organização proletária ligado a um profundo processo de ocupações de fábrica sob controle operário... a semi-insurreição na cidade de Córdoba na Argentina em 1969 e as coordenadoras inter-fabris que se desenvolveram neste país na década de 70 como embriões de duplo poder...
No Brasil, a classe operária, se por um lado esteve aquém no protagonismo de grandes ações independentes ou na formação de organismos de tipo soviético, construiu dois grandes partidos com enorme influência de massas: o PCB e o PT.Mesmo que essa enorme energia tenha sido desviada para a conciliação de classes, inicialmente pelo stalinismo e posteriormente pela burocracia lulista, tais experiências demonstram que o proletariado brasileiro chegou, uma e outra vez, à conclusão da necessidade de expressar politicamente o seu peso social, e pôde transformar tal necessidade em força material.
Com o presente artigo buscamos contribuir com os elementos que faltaram, e ainda faltam, para que o proletariado brasileiro possa transformar essa capacidade de expressão política na sua efetiva emancipação social, e para tal partimos de uma reflexão sobre as vias e os instrumentos através dos quais a classe operária historicamente precisou e precisa constituir sua independência política com relação à burguesia, no sentido mais profundo que este termo assumiu em mais de 150 anos de luta do movimento operário internacional contra a exploração e a opressão capitalista.
***
O processo da luta de classes que culmina no golpe de 1964 se insere numa situação política mundial marcada por uma contradição entre os inúmeros processos revolucionários e de libertação nacional nas colônias e semicolônias e o bloqueio da revolução nos países centrais imperialistas.
À saída da 2ª Guerra mundial, o stalinismo estabelece um pacto (Pactos de Yalta e Postam, pelos nomes das cidades em que foram assinados) com o imperialismo no qual dividem o mundo em “zonas de influência”. A burocracia soviética e os PCs em todo o mundo vão estabelecer uma relação de colaboração e competição (Guerra Fria) com o imperialismo [2]. Nos países atrasados, vão se constituir em num instrumento das burguesias “nacionais”, e por esta via do imperialismo, para conter e desviar os processos revolucionários; ao mesmo tempo em que alentam lutas por reformas colocando-as a reboque das direções “nacionalistas” burguesas.
A enorme destruição de forças produtivas durante a guerra assentou as bases para um “boom” econômico que, apesar de não ter um caráter orgânico como na primeira fase de livre competição do capitalismo, adquiriu índices de crescimento historicamente inéditos.
Além disso, pelo fato de Japão e Europa saírem destruídos da 2ª Guerra, os EUA vão encontrar “caminho livre” para se projetar como potência hegemônica em nível mundial.
Este conjunto de fatores estabeleceu um relativo equilíbrio capitalista a partir de 1949 – ano que marca a derrota dos processos revolucionários que percorreram os países centrais europeus imediatamente após o término da guerra. Nos anos que seguem esta etapa da luta de classes mundial, o ascenso revolucionário das massas nas colônias e semi-colônias e nos Estados Operários deformados combinou-se com um predominante conformismo social nos países imperialistas, “bloqueando” a influência dos processos revolucionários que se desenvolviam nos país atrasados sobre o centro do sistema capitalista. A relação de forças em nível mundial vai sofrer uma nova inflexão apenas em 1968, quando o “Maio Francês” e o “Outono Quente” italiano vão inaugurar uma nova etapa, ao mesmo tempo em que o boom econômico do pós-guerra já se esgotava, e os imperialismos competidores dos EUA já haviam minimamente recobrado suas forças.
Esta situaçãomundial não excluiu que, por uma determinada combinação de fatores – cracks econômicos, enorme pressão revolucionária das massas e intervenção do imperialismo – em alguns países as direções nacionalistas burguesas e pequeno-burguesas ou até mesmo stalinistas fossem além do que desejavam no sentido da expropriação da burguesia para não serem superadas pelas massas, como por exemplo ocorreu na China, na Iugoslávia e posteriormente em Cuba.
Às vésperas do golpe militar de 1964, a Revolução Cubana de 1959 – a primeira revolução socialista da América Latina – apesar de golpear fortemente o imperialismo e influenciar em importante medida as massas oprimidas no mundo, em especial as latino-americanas, termina contraditoriamente fortalecendo o poderoso aparato que combatia a revolução em nível internacional: a burocracia do Kremlin e os PCs em todo o mundo [3].
***
Atualmente, costuma-se dizer nos meios marxistas que criticar a “clássica” interpretação stalinista-evolucio nista da formação do capitalismo no Brasil - de um país que começa feudal e deveria passar pelas mesmas etapas do desenvolvimento dos países europeus - seria como “chutar um cachorro morto”. Também costuma-se definir que a grande inflexão no pensamento marxista brasileiro, quando pela primeira vez foi realizada uma crítica “global” às teses stalinistas, foram as elaborações de Caio Prado Jr. desde seu clássico “A formação do Brasil contemporâneo”, de 1942. No entanto, essa visão não corresponde aos fatos, e para se sustentar é obrigada a ocultar a originalidade das análises históricas dos trotskistasMá rio Pedrosa e Livio Xavier, fundadores da Liga Comunista Internacionalista, que já no início da década de 30 desenvolveram o essencial das teses sobre a relação entre a burguesia brasileira com o imperialismo e o latifúndio, as quais Caio Prado posteriormente virá a conhecer. A ignorância de muitos que poderiam argumentar que o intelectual dissidente do stalinismo não conhecia as elaborações trotskistas por serem estas demasiado marginais não resiste à prova histórica, e para demonstrá-lo está o intercâmbio de cartas entre Caio Prado e Lívio Xavier já em 1933 [4], e por isso tampouco pode eximir a falta de honestidade intelectual do historiador paulista, que naqueles anos lutava sob a bandeira do stalinismo organizando a Aliança Nacional Libertadora em São Paulo.
A insistência – por parte do conjunto da academia e da esquerda – em negar o papel dos trotskistas na interpretaçãomarxista da formação capitalista do Brasil, seja por ignorância ou pelo argumento da “marginalidade”, encontra seu fundamento último tanto em resquícios da perseguição inquisitória que em seu apogeu o stalinismo desferia contra o trotskismo, como emrazões políticasmais diretamente “pragmáticas”. Emprimeiro lugar, para a LCI, a análise marxista do capitalismo brasileiro era inseparável do programa da revolução proletária. Em segundo lugar, mas não menos importante as idéias e a prática de Trotsky incomodam profundamente todo o tipo de “marxismo” que busca refugiar-se na academia ou encontrar pretextos para a conciliação de classes. Para os “marxistas” que não querem lutar pela revolução ou que ainda procuram “aliados” na burguesia, foram e continuam sendo muito mais “cômodas” as teses de Caio Prado.
Ora, deixadas de lado as censuras burguesas e stalinistas ou as autocensuras carreiristas, o que o exame histórico aponta é que os primeiros trotskistas brasileiros já haviam mostrado, trinta anos antes do período em que focamos aqui nossas atenções; que desde a primeira chegada dos portugueses o Brasil viveu, através de sua vinculação com a metrópole, os diversos estágios de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Até inícios do século XIX, sua posição de colônia fornecedora de matérias primas, minérios e produtos agrícolas servia para abastecer o capitalismo comercial mercantilista; assim como depois de 1808 – com a revolução industrial percorrendo a Europa e modificando radicalmente as relações sociais de produção até então existentes, foi conduzido pela mão da coroa portuguesa para a hegemonia econômica da Inglaterra – que nesse momento vivia o apogeu do capitalismo industrial de livre-concorrê ncia. Mostravam os pioneiros do trotskismo no Brasil como a partir de meados do século XIX, a influência da Inglaterra sobre o país viria a aumentar no ritmo da expansão da fase imperialista do capitalismo, quando se formaram os primeiros grandes monopólios e o mundo colonial começou a ser visto não mais como mero fornecedor de matérias primas, mas como potencial mercado consumidor para os produtos industrializados.
O capitalismo brasileiro tem portanto origem colonial, vinculado à economia capitalista européia em suas diversas fases, num sistema baseado sobre a mão de obra escrava e destinado à exportação de produtos agrícolas. Sua economia original não era nemfeudal, nemescravista, nempropriamente capitalista, mas uma singular combinação desses elementos. Já desde os primórdios, o atrelamento ao imperialismo e a dependência com relação ao aparelho do Estado se tornam cada vez mais características profundas da burguesia, e a forma e o grau com que tais elementos se combinam nos interesses particulares de cada setor burguês foi, não poucas vezes, o motor fundamental de suas divisões internas. Nas palavras dos trotskistas:
A burguesia brasileira nasceu no campo, não na cidade. [5] (...) A urgência e penúria do mercado interno constitui um dos pontos nevrálgicos da instabilidade econômica e política do Brasil. Para o desenvolvimento dos mercados internos todos os meios são bons e umgoverno forte e centralizado é condição essencial. A penetração imperialista é um revulsivo constante que acelera e agrava as contradições econômicas e as contradições de classe. O imperialismo altera constantemente a estrutura econômica dos países coloniais e das regiões submetidas à sua influência, impedindo o seu desenvolvimento capitalista normal, não permitindo que esse desenvolvimento se realize de maneira formal nos limites do Estado. Por essa razão, a burguesia nacional não tem bases econômicas estáveis que lhe permitam edificar uma superestrutura política e social progressista. O imperialismo não lhe concede tempo para respirar e o fantasma da luta de classe proletária tira-lhe o prazer de uma digestão calma e feliz. Ela deve lutar em meio ao turbilhão imperialista, subordinando sua própria defesa à defesa do capitalismo. Daí, sua incapacidade política, seu reacionarismo cego e velhaco e - em todos os planos - a sua covardia. Nos países novos, diretamente subordinados ao imperialismo, a burguesia nacional, ao aparecer na arena histórica, já era velha e reacionária, com ideais democráticos corruptos. A contradição que faz com que o imperialismo - ao revolucionar de modo permanente a economia dos países que lhe são submetidos - atue como fator reacionário em política encontra a sua expressão nos governos nos fortes e na subordinação da sociedade ao poder executivo. (...) Além disso, as exigências do desenvolvimento industrial obtêm, como condição essencial, o apoio direto do Estado: a indústria nasce ligada ao Estado pelo cordão umbilical. [6]
Nas análises de Pedrosa e Xavier, entre outros, encontram-se também importantes indicações para o estudo que de outromodo teve de tomar rumos muito mais tortuosos, desde a real situação existente no campo brasileiro, passando pela necessária crítica à concepção pecebista do “passado feudal”. Seus acertos fundamentais, fruto de uma compreensão verdadeiramente dialética da formação social brasileira, ficam mais evidentes quando acompanhamos hoje o modo como, pouco a pouco, os mais sérios dos estudos sobre a questão agrária foram desvendando, nas distintas formas de exploração realmente existentes (parceria, cambão, etc), a articulação concreta que a história preparou entre a desagregação da produção do período colonial baseada no trabalho escravo e a consolidação de relações de assalariamento tipicamente capitalistas na região. O que ficou demonstrado de maneira cada vez mais categórica foi que o grande capital monopolista se mostrou perfeitamente capaz de adaptar-se aos diversos regimes de trabalho existentes no campo brasileiro, e mais, que a exploração capitalista se beneficia de todos eles e os aplica de maneira combinada, sempre de maneira a maximizar a exploração da força de trabalho e a obtenção de lucros a partir do monopólio da terra. Longe, portanto, da idéia de um capitalismo que se desenvolve “chocando-se” com uma estrutura “feudal” pré-existente, a qual ele estivesse destinado a eliminar [7].
Essas concepções, presentes em diversos documentos da LCI, e as quais caberia é claro desenvolver nos mais variados sentidos, aparecem na obra de Caio Prado Jr, e várias das melhores partes dos seus trabalhos estão dedicadas a expandir e concretizar certas definições que estão apenas em germe naqueles documentos.
Bem entendida, a posição defendida pelo intelectual Caio Prado Jr., não representava na época a que se refere este artigo (anos 1950 e 1960), um setor político relevante nos embates dentro do PCB; porém ela adquire grande importância atualmente, uma vez que suas posições serviram como referência nas décadas seguintes para uma grande parcela do contingente de militantes e de intelectuais que procuraram uma referência alternativa para diferenciar- se das posições históricas de um PCB já então em franca decadência. E de fato, de todas as dissidências do stalinismo brasileiro, nenhuma alcançou a influência assumida por Caio Prado.
As teses do historiador paulista conseguiram servir a este propósito, pois procuraram estabelecer uma crítica radical e pela esquerda às concepções históricas do PCB, caracterizadas por ele como “dogmáticas” e “vazias”, que conduziu a uma “prática oportunista”. Caio Prado aparece como um crítico radical do PCB, contestando com agressividade várias das teses consagradas sobre a burguesia nacional. Através de uma análise rigorosa do processo de formação estrutural da burguesia, o historiador desenvolverá a tese da inexistência do passado feudal, da origem agrária da burguesia, de seu atrelamento estrutural com o imperialismo, do grande papel dos vestígios do período escravista e inclusive da sua relação com a superexploração capitalista (através dos mecanismos de rebaixamento salarial, etc).
Porém, criticando a visão tradicional veiculada pelo PCB que não passava da contraposição formal e mecânica entre uma burguesia industrial nascente e uma oligarquia agrária “feudal”, Caio Prado não quis chegar às conclusões programáticas que advinham de sua análise, para o qual seria necessário ser conseqüente com a dialética entre a desigualdade do desenvolvimento histórico e a combinação de seus diferentes estágios em países como o Brasil, e com a inserção dessa dialética na luta de classes internacional.
Assim sendo, jamais alcançou a conclusão fundamental sobre a necessidade da revolução proletária, e como pressuposto básico da sua estratégia a necessidade, em todas as etapas da luta de classes, de uma política proletária independente; e no entanto essa conclusão deriva de sua própria análise, quando Caio Prado traz ao primeiro plano o enorme peso da herança do passado colonial em todos os aspectos da sociedade brasileira, e os meios pelos quais esse mesmo peso se perpetuou, diversificando suas formas aparentes, através dos distintos períodos de modernização da economia do país até hoje.
Ao contrário, toda a crítica caiopradiana às “concepções a priori” sobre a burguesia e sobre a revolução brasileira desemboca numa visão que é, em primeira e última instância, reformista. O maior exemplo disso é a própria Revista Brasiliense, grande projeto editorial de Caio Prado, fundada em agosto de 1955, a qual se organizou precisamente a partir de um grupo de intelectuais impactados por sua tese “Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira”. Ao longo dos números da revista, que será editada até 1964, vai se delineando todo um projeto nacional-desenvolvi mentista, com grande ênfase na tarefa histórica de formação de técnicos e pesquisadores, impulso à indústria, superação das desigualdades regionais do país, etc.Mais tarde, no livro “A Revolução Brasileira”, escrito em 1966, Caio Prado defende a tese de que a revolução que se colocava para o Brasil era apenas um processo de grandes transformações econômicas e sociais, explicitamente separado da idéia de ruptura com a dominação política burguesa mediante a tomada do poder pelos trabalhadores.
Paralelamente a isso, sua argumentação conduz a esvaziar o potencial revolucionário das massas brasileiras e de suas demandas. Sobre a questão agrária, em particular, ao mesmo tempo em que prega o desenvolvimento do capitalismo no campo e a melhoria das condições de vida dos trabalhadores agrícolas, Caio Prado simplesmente descarta a demanda por reforma agrária como parte do programa revolucionário no Brasil. Em suas palavras,
A reivindicação pela terra se liga entre nós, quando ocorre, a circunstâncias muito particulares e específicas de lugar e momento. E tem sua solução, por isso, em reformas ou transformações também de natureza muito particular e específica. Não se pode legitimamente generalizá-la para o conjunto da economia agrária brasileira, como expressão de contradição essencial e básica. [8]
Sobre a parte “nacional” do programa pecebista, Caio Prado Jr. irá defender a concepção de que, ao invés de uma “revolução antiimperialista” defendida pelo PCB e que a burguesia nunca iria apoiar pelos motivos expostos, o que se tratava era de lutar por uma “política nacionalista”, que os trabalhadores deveriam defender e a qual seria apoiada “espontaneamente” pelos eventuais setores da burguesia que estivessem dispostos a fazê-lo, sem necessidade de uma política de alianças específica e “pré-estabelecida”. Ao mesmo tempo, tal política nacionalista deveria ser entendida como “condição precípua” para conquistar um “real desenvolvimento econômico”. Nesse sentido estaria, por exemplo, o apoio veemente prestado por ele à Lei de Remessas de Lucros proposta por Goulart, e cuja aprovação pelo Senado em 1962 foi festejada como um passo para a “verdadeira independência econômica” do Brasil.
Finalmente, para tentar resgatar o “sentido progressista” do desenvolvimento capitalista do Brasil, Caio Prado faz uma diferenciação entre o processo de proletarização do europeu, que teria se dado como queda, e o do brasileiro, que se daria como ascensão. Suas palavras sobre a “integração da massa trabalhadora” no “conjunto” da sociedade brasileira são reveladoras:
Enquanto a supressão do tráfico [negreiro] punha termo ao mais grave fator de perturbação do processo de integração social da nacionalidade brasileira (...) o afluxo de trabalhadores europeus e a abolição da escravidão significariam na sua expressão mais ampla e profunda o início da integração da massa trabalhadora no conjunto da sociedade brasileira, na qual não passara anteriormente de setor marginal e sem outra função e expressão que satisfazer as necessidades de energia física aplicada ao trabalho e à produção (...) Superava-se assim, definitivamente, a natureza e estrutura colonial da sociedade brasileira, abrindo caminho para a sua completa integração nacional. [9]
Frente à realidade de um capitalismo que se mostrou, justamente ao contrário, estruturalmente incapaz de “integrar” o conjunto da força de trabalho disponível à atividade econômica, Caio Prado apresenta, no mínimo, uma visão excessivamente otimista do caráter do desenvolvimento burguês no Brasil, delineando as concepções nacional-desenvolvi mentistas que farão dele um dos principais ideólogos do que viria a ser futuramente o petismo com sua pretensa “superação” do stalinismo.
Como tentamos demonstrar ao longo deste artigo, a “dissidência stalinista caiopradiana” vai terminar cumprindo um papel funcional ao domínio burguês na medida em que sua sofisticação no plano teórico servirá como uma “cobertura de esquerda” para a mesma prática política concreta de conciliação de classes do velho stalinismo e como obstáculo para a política de independência de classe e a estratégia da revolução proletária. Não é por acaso que, em 1966, ano em que escreveu “A Revolução Brasileira”, o crítico Caio Prado, em coro com o PCB, se mostra extremamente pessimista em relação à capacidade das massas brasileiras de protagonizar uma revolução social para derrubar a burguesia do poder, e trata de diminuir e esconder todo o processo revolucionário que culminou no golpe de 64. Trata-se do seguinte mecanismo: como a burguesia e os militares “nacionalistas e democráticos” janguistas e brisolistas terminaram passando de malas e bagagens para o golpismo pró-imperialista ou acovardaram- se frente ao “fato consumado”, era quase uma necessidade justificar este movimento (para o qual foi extremamente útil a tese da relação orgânica da burguesia com o latifúndio e o imperialismo) , mas ao mesmo tempo era necessário concluir que o pré-64 não deu origem a uma revolução por uma espécie de “debilidade estrutural das massas” e não pela traição do PCB, pois do contrário só haveria uma conclusão possível: a necessidade de lutar pela construção de um partido revolucionário sobre as botas do stalinismo, para dirigir a revolução proletária. É neste marco que no pós-64, tanto nos meios acadêmicos como nos meios políticos, surge uma profusão de trabalhos teóricos que tiram da marginalidade as teses originalmente elaboradas pelos trotskistas dos anos 30 (obviamente que sem nunca mencioná-los) , inclusive enriquecendo- as e munindo-as de maiores evidências empíricas, mas entretanto, aprofundando ainda mais o movimento já iniciado por Caio Prado, ou seja, desprovendo- as de todo o conteúdo revolucionário.
[1] Citado em Antonio Rago Filho, A Ideologia 1964, p. 72.
[2] Nos países centrais, como a exemplo da França, Itália e Grécia, os PCs vão chamar os operários a entregarem as armas com as quais resistiram ao fascismo de volta para a burguesia, aceitar taxas exorbitantes de exploração para reconstruir o capitalismo e posteriormente vão defender reformas nos marcos do “Estado de bem-estar”.
[3] É neste marco que se insere a célebre frase de Fidel Castro: “Não façam da Nicarágua uma nova Cuba”, num momento em que a Nicarágua vivia um agudo processo revolucionário.
[4] Ver “Marxismo próprio”, por Lincon Secco, professor de história da USP, publicado na Folha de São Paulo, 4 de fevereiro de 2007.
[5] Na Contracorrente da História - Documentos da Liga Comunista Internacionalista 1930 – 1933, organizado por Fúlvio Abramo e Dainis Karepovs. Trecho do “Projeto de teses sobre a situação nacional”, Editora Brasiliense, 1987
[6] Ibidem. Trecho do Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil, de M. Camboa (pseudônimo de Mario Pedrosa) e L. Lyon (pseudônimo de Lívio Barreto Xavier), Publicado em La Lulle de Classes, número 28/29, fevereiro-març o de 1931.
[7] A análise científica da situação no campo brasileiro, seja no interior nordestino, seja nos estados do Centro-Sul, mostra essa combinação de diversos modos de organização do trabalho e diversos meios de pagamento. Assim, não apenas numa mesma família, mas às vezes no caso de um único indivíduo isolado, o trabalho no campo era freqüentemente dividido entre culturas de grãos, mandioca etc (para consumo próprio e venda por baixos preços através de mecanismos primitivos como o “mangaio”) e outras culturas ligadas à produção industrial, sobretudo o algodão e a cana. Ao mesmo tempo, era muito comum que algum membro da família se assalariasse, ou ao menos em trabalhos temporários requisitados pela indústria agrícola em expansão, enquanto o restante da mesma família permanecia ligado ao regime de trabalho anterior. Em geral, nesses casos, a entrada proveniente do salário servia ao pagamento do aluguel das terras e outras despesas de monta, enquanto o cultivo rudimentar garantia a sobrevivência diária. Do ponto de vista das grandes e médias fazendas, o mesmo raciocínio se aplica: um número significativo delas possuía, em grau ainda maior do que hoje, ao mesmo tempo diversos tipos de trabalhadores, desde arrendatários a parceiros, diaristas permanentes, diaristas eventuais e várias outras combinações.
[8] Caio Prado Jr., A Revolução brasileira, São Paulo, Editora Brasiliense, 1966.
[9] Ibidem.
PARTE I

Os sujeitos
“Não tinha nada de social nem de econômico, era o anticomunismo, era a posição exacerbada deles, ideológica também. Isso realmente deu coesão às Forças Armadas, quando nós sentimos o processo subversivo atingir o sargento, as nossas unidades, as nossas organizações” (coronel Moraes Rego) [1]
“Nós os sargentos e oficiais progressistas, autênticos nacionalistas, pegaremos em nossos instrumentos de trabalho e faremos as reformas juntamente com o povo, e lembre-se os senhores reacionários que o instrumento de trabalho do militar é o fuzil” (intervenção do subtenente Gelsy Rodrigues Correa no comício organizado pela CGT em 11 de maio de 1963).


1. O “FATOR” PCB
Para precisar o papel cumprido pelo PCB na etapa de enfrentamento aberto, é útil recapitular brevemente a trajetória percorrida pelo partido nos anos anteriores, desde os fins da Segunda Guerra Mundial, quando chegou a alcançar uma posição proeminente entre as massas em todo o Brasil, especialmente entre 1945 e 1946.
Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o “Partidão” desempenhou nesse momento um papel duplo: por um lado, colocava-se como portador das reivindicações econômicas e democráticas que explodiam em greves de norte a sul do país, lutando para se mostrar como representação política do proletariado que recém terminava de se colocar como ator central na política nacional, e aproveitando as condições dadas pela crise do Estado Novo. Por outro lado, desempenhava um papel contra-revolucioná rio consciente, como agência de Moscou, aproveitando o grande prestígio que a vitória da URSS contra Hitler havia dado aos PCs de todo o mundo, para implementar a linha de colaboração com o imperialismo, segundo o esquema de divisão do mundo em “zonas de influência”, definida nos acordos de Yalta e Potsdam. Isso significava, no plano nacional, um alinhamento irrestrito com Vargas, desde quando este passa em 1942 a integrar o bloco dos Aliados, encabeçado por EUA e URSS.
São os tempos em que o lendário Luiz Carlos Prestes, maior líder popular do país depois de Vargas, recém saído da cadeia, do alto dos palanques exortava os milhares e dezenas de milhares de trabalhadores e camponeses a “evitar agitações”, “apertar os cintos”, “passar fome se for preciso”, tudo isso para “combater o fascismo”, que seria, na retórica stalinista, o único beneficiário da desestabilização do regime. Na verdade, o sentido traidor de uma tal orientação só pode ser entendido tendo em vista que o enorme ascenso grevístico, primeiro de suas proporções na história do país, havia sido preparado nos anos anteriores pelos ritmos de trabalho extenuantes impostos pela burguesia, a pretexto do esforço de guerra e sob a guarda do Estado Novo varguista. Assim, a linha do “apertem os cintos” era a resposta do PCB, que jogava com as ilusões democráticas das massas ao mesmo tempo em que buscava conter a explosão do descontentamento operário, quando as massas se rebelaram contra tais condições e buscaram reivindicar sua parte no crescimento econômico alcançado pelo país neste período.
Através de campanhas de filiação massiva, de acordo com relatos da época, o partido nesse período organizava reuniões em clubes com todos os operários de tal ou qual fábrica para discutir problemas cotidianos, e, enseguida de um breve discurso de algum dirigente exaltando o papel do PCB na luta pela democracia e por melhores condições de vida para o povo, era realizada a filiação de todos os que se mantivessem presentes, fossem dezenas, centenas ou inclusive milhares de uma só vez. Repetindo esse método, o Partidão chegou em clima de euforia a contabilizar a cifra de 200 mil afiliados, o que se revertia em uma pressão das massas sobre a militância do partido que gerava constantes crises entre as bases e a direção do PCB, o que levou a que alguns intelectuais viessem a caracterizar a existência de “dois PCs”.
O caráter oportunista – e portanto superficial – de sua construção ficou demonstrado pela sua incapacidade de lutar contra o giro bonapartista do regime que em 1947 o pôs na ilegalidade, fechou suas sedes e imprensa, e cassou seus parlamentares em todo o país.
Depois disso, e como resposta à intensa repressão governamental, o PCB – mantendo integralmente seu caráter contra-revolucioná rio e de agente incansável da conciliação de classes – assumirá umdiscurso “insurreicionalista”, quer dizer, atravessará os anos seguintes pregando um constante apelo ao “levantamento armado” contra os governos de plantão (tanto contra Dutra quanto posteriormente contraVargas) , caracterizando- os indistintamente como governos de traição nacional e entrega ao imperialismo norte-americano, recusando-se a atuar na estrutura sindical oficial (onde estavam as massas) e chamando a construção de sindicatos paralelos, etc. Entretanto, essa nova fase era apenas uma máscara de “esquerda” para a mesma estratégia de conciliação com a burguesia. O PCB, ao mesmo tempo em que se isolava das massas, chamava a formar uma “Frente de Libertação Nacional” com setores da burguesia oposicionista que só existiamemsua imaginação, para “derrubar” os setores burgueses realmente existentes. Ou seja, a surrada estratégia de “revolução por etapas”, nos velhos moldes do que foi defendido pelo partido desde os anos 1930 e que, como veremos, continuaria pautando sua ação nos embates seguintes da luta de classes.
A partir da segunda metade do governo de Vargas, o PCB se relocaliza e inicia o processo de enraizamento no movimento operário que lhe dará o papel de destaque no futuro ascenso operário e de massas que até então apenas se esboçava. Para os fins deste artigo, basta dizer que o novo giro era produto do choque da orientação anterior com a própria realidade, choque esse que se dava por distintas vias, seja pelo isolamento a que o partido chegou, seja pela clara (inclusive para as massas) diferença entre os governos de Dutra e o governo eleito de Vargas com respeito a suas relações recíprocas com o imperialismo e com o movimento operário, seja pela pressão existente no meio sindical para que os militantes pecebistas atuassem em frente única com os sindicalistas trabalhistas (getulistas) . Esses elementos pesaram internamente no partido, e fizeram com que, primeiro em 1952 e logo mais profundamente em 1954, a linha “esquerdista” do Manifesto de Agosto de 1950 fosse abandonada. A “Resolução Sindical” de 1952, a greve dos 300 mil de 1953 em São Paulo e o suicídio de Vargas, seguido do IV Congresso do partido no ano seguinte, irã marcar esse processo de substituição da linha anterior por uma outra muito mais abertamente colaboracionista com a burguesia – o que, a rigor, só terminará de se consolidar plenamente em 1958 – após uma série de crises que iremos desenvolver a seguir. Ao mesmo tempo, buscando capitalizar o ascenso operário em curso, o PCB desenvolve um trabalho paciente e “orgânico” em setores estratégicos da classe operária, conquistando ao longo dos anos posições chave no movimento sindical, a despeito do partido estar na ilegalidade já desde 1947.
Ligado a esse movimento, o PCB já em 1955 fará parte da base de apoio a Juscelino Kubitschek – líder do principal partido da grande burguesia e dos latifundiários, o PSD – e irá se posicionar ao longo de seu governo de maneira similar à do próprio vice-presidente João Goulart (do PTB), sustentando o governo e ao mesmo tempo assumindo a postura de “oposição dentro do bloco governista”.
É nessa localização que o PCB irá vivenciar as sucessivas crises após o XX Congresso do PC da URSS (PCUS), conforme discutiremos abaixo; do mesmo modo, é sobre essa base que o partido participará do ascenso operário que se ergue comvigor crescente na segundametade dos anos 1950, emmeio ao clima geral de renovação política e cultural que o desenvolvimentismo entreguista de JK promove no país.
O XX Congresso do PCUS e suas conseqüências: crise e divisões no stalinismo brasileiro
Em fevereiro de 1956 reuniu-se o XX Congresso do PC da União Soviética, no qual o novo secretário geral Nikita Kruschev apresentou seu “relatório secreto” sobre os crimes de Stálin. Reconhecendo pela primeira vez oficialmente várias das inúmeras denúncias apresentadas pelo trotskismo acerca das práticas criminosas de Stálin à frente do PCUS e da URSS, o informe de Kruschev atua como detonador para uma crise generalizada nos PCs de todo o mundo, inclusive o PCB. Os “erros” apontados por Kruschev — “culto à personalidade” de Stálin, autoritarismo, burocratismo, ruptura da “legalidade socialista” — estariam muito longe de representar um verdadeiro acerto de contas com o passado, porém isso não impediu que seu relatório tivesse um efeito devastador, pois sobretudo com ele era rompida a atmosfera de monolitismo e ausência completa de crítica no interior dos PCs, o que abriu brechas inclusive para o questionamento do programa histórico do PCB, tanto pela direita como pela esquerda.
No interior do PCB, enquanto o Comitê Central tentava adiar o inevitável debate entre os quadros e a base do partido, logo se instalou a confusão e as discussões se impuseram inclusive na própria imprensa partidária, ainda antes de a direção resolver sair de sua paralisia e tentar encaminhar o debate, coisa que tardou vários meses para acontecer. Para além de um grave desgaste daqueles que vinham compondo o núcleo central de direção do PCB desde a década de 1940, e da desmoralização e do abandono de inúmeros militantes das fileiras partidárias, especialmente intelectuais e jornalistas, o tortuoso processo de crise interna terminou por sedimentar três tendências mais ou menos definidas. Em primeiro lugar, surge a corrente renovadora, composta principalmente por quadros de relativo destaque nos organismos partidários, que tem seu principal expoente em Agildo Barata, então dirigente do trabalho sindical do PCB. Esta corrente responde à crise com uma crítica aos métodos burocráticos empregados na condução do partido, e defendendo posições mais abertamente nacionalistas burguesas, rompendo inclusive formalmente com o “marxismo” stalinista. Em resposta à corrente capitaneada por Agildo, toma corpo a corrente conservadora, formada pelo núcleo central que dirigiu o partido no período precedente, com Prestes, João Amazonas, Maurício Grabois, Carlos Marighella e Diógenes Arruda, entre vários outros. Como o nome indica, congrega os principais setores atacados pelas críticas das bases e se caracteriza por uma postura defensiva com respeito aos “princípios” stalinistas e à trajetória do partido até ali; são os principais responsáveis pelo atraso nos debates, tentando mesmo impedi-los de se desenvolver, o que lhes valeu no início a alcunha de “fechadistas”. Finalmente, entre as duas correntes “extremas”, forma-se um centro pragmático, capitaneado num primeiro momento por dirigentes como Giocondo Dias, Mário Alves e Jacob Gorender, entre outros. Sua postura básica é conciliatória, tentando promover os debates necessários para a superação da crise, porém impondolhes os limites e controles julgados convenientes.
A dinâmica da crise interna se resume então a dois momentos: uma primeira fase dos debates, quando a aliança entre conservadores e pragmáticos consegue isolar os “renovadores” e impor-lhes a alternativa entre a cisão e a expulsão; e uma segunda fase em que o centro pragmático se volta contra os conservadores, atraindo uma boa parcela tanto dos “renovadores” derrotados quanto importantes setores dos “conservadores” dispostos, como o próprio Prestes, assim como mais tarde o guerrilheiro Carlos Marighella, a acompanhar a evolução política ditada pela burocracia soviética a partir de Moscou. Esta evolução conduziria, como sabemos hoje, ao “eurocomunismo” e à social-democratização completa da maioria dos PCs em todo o mundo. É nessa segunda fase que são derrotados os membros mais inflexíveis da ala defensora do velha ortodoxia stalinista (em oposição à “desestalinização” de Krushev), encabeçada por João Amazonas e Maurício Grabois, a qual será primeiro deslocada para posições de menor influência na estrutura partidária e, após um processo de luta interna, excluída em 1961, formando o PCdoB em fevereiro de 1962 [2].O centrão que assume a direção do PCB desde 1957, chefiado por Prestes, Giocondo Dias, Jacob Gorender e os demais, consolidará a guinada à direita através de um novo programa aprovado em 1958 (conhecido como “Declaração de Março de 1958”), e que constituirá a orientação básica com a qual o stalinismo brasileiro irá chegar ao processo revolucionário aberto em 1961, tema central deste artigo.
2. A QUESTÃO AGRÁRIA E AS LIGAS CAMPONESAS
A colocação histórica do problema agrário no Brasil se dá concretamente por meio das diferentes formas de concentração da terra; dos velhos latifúndios aos grandes monopólios capitalistas, a estrutura agrária atravessou as diversas fases do desenvolvimento econômico brasileiro conservando essa sua grande característica principal—a enorme concentração das terras. Esse fato, motivo de vergonha histórica para as classes dominantes brasileiras e cuja dura realidade apenas seus intelectuais mais cínicos e reacionários são capazes de contestar, constitui o verdadeiro palco para o caráter recorrente dos conflitos e lutas sociais no campo e o fundamento para a dependência estrutural da economia nacional em relação ao capital estrangeiro.
As contradições no campo brasileiro eram aceleradas pela combinação entre êxodo rural devido à industrialização acelerada e a degradação das condições de vida no meio rural – expulsão dos camponeses de suas terras – ligado à expansão dos métodos de produção capitalistas no campo, disputa entre o plantio e a criação de gado que se valoriza muito com o adensamento populacional das grandes cidades. De conjunto, todo esse processo, acrescido da expansão da produção açucareira no Nordeste – que tinha um fator adicional na retirada de Cuba do mercado internacional – empurrava a classe capitalista do campo contra os trabalhadores rurais.
Em resposta a isso, a luta de classes irá atingir no campo um patamar inédito na história do país, em particular no fervilhante início dos anos 60, muito embora este seja talvez um dos aspectos menos conhecidos do problema.
Num momento em que os camponeses pobres constituíam dois terços da força social do país, a mobilização dos camponeses e trabalhadores rurais em todo o Nordeste acendeu a chama da revolução social — e deslocou o foco das atenções do imperialismo norte-americano para a região como em nenhum outro momento [3].
O ascenso camponês na década de 50
No início da década de 50, os primeiros conflitos que se desenvolveram no campo apresentaram um caráter basicamente pontual e localizado, mesmo quando possuíam alto grau de radicalidade. Dentre estes, os que mais se destacaram foram a guerrilha de Porecatu (em 1950, nas divisas dos estados de São Paulo e Paraná), a revolta de Dona Noca (no interior do Maranhão, em 1951) e a implantação do Território Livre de Tromba- Formoso em 1953, o mais importante deles. Tromba-Formoso abrangeu uma área de 10 mil quilômetros quadrados ao norte de Goiás, há 250 quilômetros de Brasília, onde se estabeleceu um governo paralelo, baseado em comitês políticos e milícias armadas e promoveu, em toda a região ocupada, uma reforma agrária. A chamada “República deTromba-Formoso” formulou uma constituição própria que definia o Estado de Tromba- Formoso como popular e socialista. Após 1964, seus líderes se evadiram, ocultando um importante arsenal de armas e munições numa gruta chamada Vereda do Exu, na Serra da Cana Brava, posteriormente encontrado e apreendido pelos órgãos de segurança nacional em 1969.Tanto na guerrilha de Porecatu como emTromba-Formoso o PCB atuou e exerceu importante influência política.
Os militantes do PCB, apoiando-se sobre os resquícios das chamadas “Ligas Camponesas” – que em 1946 eles impulsionaram em várias partes do país, mas que foram reprimidas em 1947 antes de ganharem uma influência de massas – recomeçaram, a partir de 1953, a impulsionar novas tentativas de organização dos camponeses pobres. Neste mesmo ano foi realizada, simultaneamente em São Paulo, Paraíba e Ceará, a 1ª Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas. E, em agosto de 1954, em Limoeiro, Pernambuco, o 1º Congresso Nordestino de Trabalhadores Rurais (preparatório regional para a 2ª Conferência Nacional). No Congresso de Limoeiro, tropas da polícia cercaram o local do encontro para impedir sua realização.Mas os participantesmobili zaramcentenas de camponeses armados de foices e enxadas e invadiram a cidade obrigando o recuo da polícia e garantindo a realização do evento. Meses depois, realizou-se em São Paulo a 2ª ConferênciaNacional de Lavradores eTrabalhadores Agrícolas, que contou coma participação de 308 representantes de 16 estados e decidiu criar aUnião dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), dirigida centralmente pelo PCB.
Em 1955, no interior de Pernambuco, no Engenho da Galiléia, vai ser fundada uma associação rural que entra para a história conhecida com Liga Camponesa da Galiléia.Oconflito teminício a partir da recusa dosmoradores da Galiléia em pagar um aluguel (foro) maior ao proprietário das terras ou a acatarem a ordem de despejo em massa emitida por este. A partir deste momento desenvolve-se um longo processo de resistência, que combinava a utilização do Código Civil em defesa dos moradores, com a ação política nas cidades e a resistência à repressão no campo, culminando na desapropriação do terreno votada pela Assembléia Legislativa do Estado em 1959.
Em fins dos anos 1950, as Ligas Camponesas contavam com 35 mil associados em Pernambuco e 70 mil em todo o Nordeste. A ULTAB, com peso nos estados do Centro-Sul, possuía no mesmo período uma débil penetração no Nordeste, precisamente até o ano de 1963.
Já no segundo semestre de 1963, segundo registro em arquivos do Exército brasileiro, as Ligas Camponesas atingiam 18 dos 22 estados brasileiros existentes à época, com 218 Ligas no total concentradas sobretudo no Nordeste, mas também em estados importantes do centro sul, segundo os números que seguem: 64 ligas em Pernambuco, 15 na Paraíba, 12 no Maranhão, 10 no Ceará e 9 na Bahia, 15 em São Paulo, 14 no Rio de Janeiro, 12 em Goiás e 11 Espírito Santo. Em seu momento de auge, as Ligas afirmavam contar com 500 mil afiliados, e um número ainda maior de simpatizantes, que apenas não se filiavam ao movimento devido à perseguição criminosa exercida pelos latifundiários.
Um velho dirigente das Ligas, de origem do pecebista, Clodomir de Morais, enumerava assim os principais acontecimentos da luta no campo no período inicial dos 60 (os setores dirigentes de cada processo):
(...) a grande marcha de camponeses sobre Brasília (Ligas de Formosa e Tabatinga); levantamento armado de camponeses de Jales, São Paulo (Ultab); a guerrilha camponesa de Prado, Bahia (Ultab); invasão do campo de treinamento guerrilheiro das Ligas, Divinópolis (Goiás), por fuzileiros navais e pára-quedistas do Exército; choque armado entre camponeses domunicípio de Pato Branco, e a polícia do Paraná (Ultab); rebelião de camponeses armados de Tocantinópolis, Goiás (Ligas); choques armados entre policiais e camponeses na região de Sapé, Paraíba (Ligas e Ultab), em Buísque, Pernambuco (Ligas), em Mutum e Jaciara, Mato Grosso (Ultab).
Além disso, houve conflitos salariais importantes sobretudo entre os operários cortadores de cana. No mais importante deles, em 18 de novembro de 1963, a Federação de Sindicatos Rurais dirigida pelos padres católicos deflagrou greve estadual contra a indústria açucareira, que durou três dias; contou com adesão praticamente total de 200 mil trabalhadores rurais; conquistou aumento de 80% nos salários, gratificação anual (13º salário) e pagamento dos dias parados. Esta foi, para muitos historiadores, a maior greve no campo brasileiro ocorrida até então.
As estratégias em disputa no campo
Em seu V Congresso, em 1960, o PCB define que a luta anti-imperialista poderia levar alguns setores latifundiários a posições nacionalistas, o que exigiria uma frente única com estes setores, levando o partido a defender uma reforma agrária restrita às propriedades improductivas ou pouco cultivadas e ainda assim mediante indenização, além do loteamento de terras aos pequenos agricultores, que deveriam pagá-las através de financiamento. A direção majoritária das Ligas, por outro lado, defende o enfrentamento direto contra o latifúndio, que passa a ser sintetizado em sua consigna de reforma agrária radical (“na lei ou na marra”). Enquanto o PCB defendia um arremedo de reforma agrária passível de ser implementado no bojo das chamadas “reformas de base” de Jango, as Ligas defendiam a utilização de métodos de guerra civil no campo para impôr o fim do latifúndio.
Ao mesmo tempo, nesse período, foi estabelecida por parte da burguesia uma clara política de cooptação e institucionalização do enorme descontentamento camponês, tanto por parte do presidente Goulart como do governador de Pernambuco Miguel Arraes [4]. Este último inclusive tentou assumir, e de fato assumiu em alguns momentos, a defesa dos camponeses e trabalhadores agrícolas contra os ataques dos bandos dos latifundiários, utilizando sua polícia estadual para isso. Em todo o país, com uma política consciente e ofensiva do governo federal, o número de sindicatos rurais reconhecidos pelo Estado passou de 6 em 1961, para 60 em 1962 e 270 no início de 1963, saltando para 1300 justamente nas vésperas do golpe contra-revolucioná rio.
Nessa política, a burguesia contava com dois agentes: a Igreja Católica e o PCB, este atuando centralmente através da ULTAB, ambos trabalhando em aliança com o Ministério do Trabalho na criação dos sindicatos rurais. Por outro lado, a direção das Ligas Camponesas, sob o impulso direto da revolução cubana, se colocava à esquerda do ponto de vista da amplitude da reforma agrária reivindicada e dos métodos para conquistá-la. No entanto, apostando na estratégia da guerrilha camponesa, voltava as costas para a centralidade do proletariado na revolução brasileira, e terminava se adaptando, mesmo que criticamente, à pressão do nacionalismo burguês frente aos fatos concretos da política nacional.
Como parte da institucionalização burguesa do movimento camponês, o PCB, num pacto com o Estado, funda em fins de 1963 a CONTAG, que irá reunir em uma Confederação todos os sindicatos criados no período anterior, processo do qual as Ligas se recusaram a participar.
Pela combinação entre a brutal repressão do Estado e dos latifundiários, e a disputa com o PCB e a Igreja, as Ligas passam, a partir de meados de 1963, a perder espaço e enfrentar um processo de crise, do qual tiram a conclusão da necessidade de adotar uma forma centralizada de organização. Experiência esta que, antes mesmo de se consolidar, foi interrompida pelo golpe.
A polarização burguesa em torno da questão agrária
Evidentemente, tal desenvolvimento político não deixou de ser acompanhado e combatido pela classe dominante, tanto antes como depois do golpe de Estado. A repressão às Ligas e ao movimento dos trabalhadores do campo em geral foi brutal em todo o período, organizada tanto a partir das forças repressivas estatais como a partir dos bandos armados sustentados pelos proprietários. Além das prisões, perseguições e expulsão forçada com destruição de moradias camponesas, foram inúmeros os casos de assassinato de trabalhadores, incluindo a morte, entre abril de 1961 e janeiro de 1962, de dois principais líderes das Ligas em todo o Nordeste; Alfredo Nascimento e João Pedro Teixeira (da Liga de Sapé). Além disso, o assassinato de um jovem dirigente trotskista em Pernambuco [5] dá uma boa visão da eficácia do terror latifundiário contra os dirigentes do movimento camponês antes do golpe de 64.
Mas não era somente através da violência que a burguesia tentava responder à mobilização das massas no campo. Por sua importância histórica e por seu caráter emblemático das contradições que envolviam a questão agrária em meio ao processo que narramos, um episódio merece relevo especial: a desapropriação do Engenho da Galiléia, por expressar com particular agudeza as contradições na classe dominante. Pressionado pela luta dos camponeses da Liga da Galiléia, embrião de todo o desenvolvimento posterior das Ligas, o governador Cid Sampaio decretou a desapropriação das terras do velho engenho decadente, com pagamento de gorda indenização ao proprietário (que já não fazia uso da terra havia muitos anos) e impondo a divisão da terra em lotes sob critério de comissões estatais, transformando de imediato uma parcela daquelas famílias que vinhamlutando conjuntamente empequenos proprietários, impondo o deslocamento de uma grande maioria das mesmas famílias. Essa medida, transformada pelo mesmo Cid Sampaio em modelo para uma política burguesa de “colonização”, nada mais era do que amaneira reacionária de “atender” às reivindicações inadiáveis das massas camponesas. Com essa política, que incluía a divisão da terra em lotes administrados emseu conjunto por funcionários do Estado, comdiversas restrições ao uso, e com sua posterior venda aos camponeses beneficiados, o governo procurava atingir o duplo objetivo de, por um lado, responder cirurgicamente àquelas regiões precisas onde haviamaior luta de classes, e por outro lado, favorecer algum desenvolvimento capitalista em regiões despovoadas onde ele simplesmente não existe.
Porém nada reflete melhor o grau de acirramento dos ânimos entre as frações burguesas do que a reação do conhecido órgão da burguesia paulista, O Estado de São Paulo, frente à medida de desapropriação – realizada, lembremos, nos mais estreitos limites da lei burguesa e como parte de uma manobra para desarmar o movimento das Ligas – visão esta expressa em editorial:
Ao criticarmos, não faz ainda muitos dias, a absurda iniciativa do governador Cid Sampaio, de desapropriar as terras do Engenho Galiléia para, num ilícito e violento golpe no princípio da propriedade, distribuí-las aos empregados daquela empresa, previmos o que disso poderia resultar. A violência seria, como foi, considerada uma conquista das Ligas Camponesas, e acenderia a ambição dos demais campesinos assalariados, desejosos de favores idênticos (...) o movimento ganhará novas proporções, atingindo as classes proletárias das cidades, com invasão de oficinas, com o apossamento violento de fábricas, com assaltos a casas de residências, com depredações de bancos e estabelecimentos comerciais. A revolução é assim. E o que, com sua cegueira, o governo pernambucano incentivou, foi a revolução. [6]
Como representante da ala golpista da burguesia mais pró-imperialista, o Estadão não confiava na capacidade da ala reformista da burguesia de conter e desviar o movimento de massas com concessões e controle. De fato, da desapropriação do Engenho da Galiléia – na qual o governo de Pernambuco separou as famílias que lutaram pela terra, cobrou um preço pela mesma e estabeleceu um mecanismo de controle burocrático da produção – as Ligas Camponesas tiraram como conclusão programática a necessidade de lutar para que as terras expropriadas fossem controladas pelos próprios camponeses pobres. A experiência da Galiléia serviu como um “efeito demonstração” que fez com que as Ligas se espalhassem como rastilho de pólvora por todo o país, sobretudo no Nordeste. No entanto, essa organização, pela falta de uma direção operária revolucionária, não conseguiu acompanhar o ritmo que o enfrentamento de classes impunha, pois no mesmo período:
(...) a direita, sim, formava organizações paramilitares, dentro de uma estratégia de guerra civil, a fim de fomentar arruaças, dissolver comícios, promover sabotagens e até desencadear guerrilhas, caso as Forças Armadas se dispusessem a sustentar a implantação de uma República sindicalista no Brasil, propósito este que se atribuía a Goulart [7]. Elementos vinculados ao marechal Odílio Denys armavam os fazendeiros no sul do país, e o mesmo fazia o almirante Sílvio Heck no Estado do Rio de Janeiro e emMinas Gerais, distribuindo apetrechos bélicos, conseguidos por intermédio do governador de São Paulo, Ademar de Barros, e do jornalista Júlio Mesquita Filho, diretor de O Estado de São Paulo. Em vários pontos do território nacional havia campos de treinamento [8] para a guerrilha, montados clandestinamente, pelos militares que conspiravam contra Goulart, desde 1961. (...) Com efeito, as forças de direita, no interior, estavam armadas e adestradas para combater até mesmo o Exército. Em Goiás, os latifundiários revelaram que tinham condições de enfrentar os camponeses ‘quer com a ajuda do Exército e da Força Pública, quer sem ela’ [9]. Francisco Falcão, presidente da Associação dos Fornecedores de Cana de Pernambuco, declarou, publicamente, que não precisava da solidariedade da Associação Comercial do estado, mas, sim, dos seus recursos financeiros para comprar armas, pois o Brasil, conforme sua opinião, estava em plena guerra revolucionária [10]. Em Alagoas comerciantes e latifundiários mobilizaram um exército particular de 10.000 homens sob supervisão do próprio secretário de Segurança, coronel João Mendonça, todos treinados para sabotagem e luta de guerrilhas [11]. Dos 28 grupos empresariais organizados no estado, 22 contavam com pelo menos 150 homens e 15.000 litros de combustível cada um. Para cada metralhadora foram distribuídos 1.000 tiros. (...) A organização desse Exército clandestino, com know-how da CIA, custou cerca de Cr$ 100 milhões [12]. E em todo o Nordeste havia formações do mesmo tipo [13]. Diariamente, o piloto de um avião particular fazia vôos de reconhecimento, ao longo das divisas do Estado de Alagoas, a estabelecer contato com grupos de guerrilheiros, organizados por outros latifundiários da região [14]. [15]
3. OS MARINHEIROS COMO EXPRESSÃO MAIS AVANÇADA DO PROCESSO NAS BASES DAS FORÇAS ARMADAS [16]
A década de 50 e 60 foi marcada por um intenso processo de politização nas Forças Armadas, percorrendo desde o alto-mando até as bases e passando por toda a oficialidade – um período marcado por um importante peso dos militares na vida política nacional: a tentativa de golpe militar contra Vargas em 1953, a “Novembrada” em 1954, o peso determinante de Lott na estabilidade do governo JK e a tentativa de golpe militar em 1961. As divisões entre as distintas frações burguesas e a polarização de classes atravessavam o Exército e as demais Armas, reunindo de um lado os setores que se ligavam ao trabalhismo e apoiavam o ascenso popular e de outro os setores mais diretamente pró-imperialistas e que se ligavam à UDN. A partir de 1961, as divisões que até então se expressavam predominantemente entre setores da oficialidade e do alto-mando, passaram a se expressar também com revoltas das bases contra o alto-mando e tendências à ligação dos soldados e sub-oficiais com o movimento operário e camponês.
A “Rebelião dos Marinheiros”, expressão mais avançada do conjunto deste processo, foi um levante dirigido pela Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) que ocupou o Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara de 25 a 27 de março.
A AMFNB surgiu em 1962 no bojo da etapa revolucionária aberta após a renúncia de Jânio Quadros. Ela organizava baixas patentes (da 1ª à 4ª de um total de 16) e conseguiu o apoio das massas dos marinheiros. AMarinha estava marcada por um profundo antagonismo entre oficiais e marinheiros [17], os primeiros vindos das classes dominantes e os praças dos setores mais empobrecidos, sobretudo do campo nordestino. O Almirantado era parte integrante do golpe; os marinheiros, por outro lado, muitos deles simpáticos às Ligas Camponesas e às reformas de base, e organizavam- se como trabalhadores. Contribuía a isto também a dura opressão que sofriam: mal podiam sair dos navios, comiam em cozinhas separadas por patente, não podiam se casar, ouvir rádio, votarem e serem eleitos, e seus salários não chegavam sequer a um salário mínimo.
A AMFNB evoluiu de mero sindicato assistencialista a um sindicato com elementos de auto-organização. A primeira direção da AMFNB foram os chamados “conciliadores”. A radicalização da entidade se acentuou em 63 quando os “combativos”, com base nos setores mais proletários da Marinha (navios e centros de distribuição), conquistaram a direção. Os “combativos” foram expressão e limite do que ocorria na base. Parte de seus principais dirigentes eram militantes do PCB ou influenciados por este partido. Ainda que mais combativa, esta direção também conciliava com os oficiais, defendia que os oficiais e os marinheiros “recebessem cada um o seu”, ao mesmo tempo em que dava vazão ao desejo da base defendendo para a AMFNB um funcionamento similar aos exemplos históricos de democracia operária. Entre 63 e 64, a Associação funcionou baseada em um sistema de delegação arraigado nos setores mais proletarizados das repartições e dos navios, que passaram a participar ativamente da vida política da entidade, preenchendo a sede com centenas de ativistas envolvidos diariamente entre assembléias, reuniões, panfletagens etc.
As contradições na AMFNB traziam à tona o maior limite do processo, a direção do PCB. Com uma estratégia de seguidismo às alas janguistas da burguesia e contendo a espontaneidade das massas, o PCB impediu que se desenvolvessem as potencialidades de uma aliança mais orgânica entre os marinheiros, o movimento operário e o movimento camponês. Apesar destes limites, a AMFNB trazia à tona a espontaneidade dos marinheiros, e por esta via era prestigiosa dentro e fora da Marinha. A Tribuna do Mar, órgão da associação, ajudava a organizar as bases das outras armas. A AMFNB era produto e motor do despertar dos marinheiros. Isto se expressava, por exemplo, em como as deliberações da associação chegavam até aos navios em alto-mar em poucas horas. Segundo um de seus diretores, “os transmissores dos navios eram usados secretamente para enviar mensagens, mas como e quem fazia era um mistério (...) Sentíamos que era uma massa humana em movimento e disposta a enfrentar qualquer obstáculo que se interpusesse no seu caminho” [18].
A pressão da base também forjava uma aliança com os operários e camponeses. Os diretores mantinham contato com sindicalistas, organizavam cursos de auto-defesa para militantes camponeses das Ligas. Um diretor da AMFNB assim relata a participação da associação frente à ofensiva repressora que recaiu sobre as Ligas ao final de 1962:
A sub-sede de Brasília participou de dois episódios que acabaram custando a vida de um companheiro fuzileiro. O primeiro fato esteve relacionado com um acampamento das Ligas Camponesas em Goiás, ao norte de Brasília. O local foi detectado pelos serviços de informação e o batalhão de fuzileiros, sediado em Brasília, recebeu ordens de reprimir. A sub-sede informou a diretoria da associação e nós, imediatamente, repassamos o informe para Francisco Julião, líder das Ligas, que resolveu pedir nosso apoio. (...)Tínhamos uma grande simpatia pelas Ligas e um bom relacionamento com Julião. Traçamos um plano imediatamente. Enquanto orientávamos a sub-sede para atrasar ao máximo a operação militar, Julião e seus companheiros deveriam sair do local. Se os fuzileiros fossem obrigados a atacar o acampamento, fariam barulho, mas não atirariam nem prenderiam ninguém, apenas exortariam as pessoas do local. A sub-sede de Brasília conseguiu levar a orientação na prática e tudo saiu melhor do que planejamos, mas criou-se uma tensão dentro da corporação que extrapolou os limites de Brasília. [19]
Na Marinha e nas Forças Armadas, esta pressão da base e da situação, potencializada a partir dos elementos de auto-organização, faziam com que a associação expressasse parte do mais avançado no ascenso operário e popular: elementos embrionários de duplo poder em relação ao almirantado e aos planos golpistas.
Os próprios diretores reconheciam que eram levados pela luta de classes: “tinha a sensação de que eu não decidia nada”, e sem o controle a “diretoria era forçada a agir na defensiva” [20]. A separação entre a base e a direção ocorreu quando a intervenção da AMFNB na luta de classes foimais aguda: na “revolta dos sargentos”, na “rebelião dos marinheiros” e na resistência ao golpe.
Na “revolta dos sargentos” de 1963, a diretoria orientou a sede de Brasília a ler um apoio aos sargentos da aeronáutica e nada mais. A regional, porém, participou da tomada de prédios públicos e de um tiroteio. Temendo represálias e tentando alcançar a situação, a diretoria organizou a tomada dos quartéis e navios. Segundo relato de Capitani, um diretor, houve uma ordem da Associação para:
tomar o Quartel dos Marinheiros. (...) Conversei com todos os marinheiros de confiança (...) os sentinelas de serviço naquele horário que não forem de inteira confiança não serão acordados e deveremos substituí-los por outros companheiros (...) semelhante orientação foi dada também nos navios (...) foi a primeira experiência de ação baseada em um plano.
Um mensageiro da diretoria avisa Capitani para levantar o plano e ele e os marinheiros desorganizam a tomada do quartel,
o mais impressionante é que foi traçado, levado à prática, houve um recuo sem que o Comando do Quartel tomasse conhecimento (...) Os fatos demonstraram o quanto a marujada estava coesa e predisposta a agir em nome da Associação (...) isso só foi possível porque já havia discutido muitas vezes com meus companheiros de confiança um plano. [21]
O caráter embrionário de duplo poder de tipo soviético existente na Associação deMarinheiros se expressava na dialética entre uma organização que combinava uma direção com grande autoridade, reformista, que conciliava com o alto-mando, a oficialidade e o governo; mas que ao mesmo tempo era obrigada a aceitar métodos de auto-determinação das bases em seu funcionamento que permitiam a vazão da espontaneidade dos setores mais explorados e oprimidos das repartições e dos navios.
Em 1964, a enorme polarização nacional provocava reflexos no antagonismo entre praças e oficiais e, ao mesmo tempo, a política do PCB e do PTB reforçava o papel conciliador da diretoria da AMFNB. A base estava radicalizada, disposta a tomar em armas com os operários, resolver suas demandas por si mesma e, por outro lado, a direção conseguia ser um freio maior. A “rebelião dos marinheiros” e a tentativa de resistência ao golpe são um processo só, marcado por essas mesmas contradições.
Em março, a diretoria programou um ato-festa no Sindicato dos Metalúrgicos. O almirantado o proibiu. Sabia-se também que o almirantado queria atacar osmarinheiros. Osmarinheiros que serviamcafé ao almirantado informaram aos diretores que eles seriam presos naquele mês, como parte da preparação do golpe. No dia do ato, 25 de março, eclodiram os primeiros confrontos diretos: marinheiros presos sem justificativas; diretores da AMFNB presos; oficiais jogados ao mar pelos marinheiros; marinheiros metralhados no caminho do sindicato. O ato ocorreu e reuniu cerca de 4mil marinheiros. Desde o começo já era uma revolta.
Vários marinheiros defendiam ir à prisão para libertar à força seus companheiros. A diretoria propunha dispersar, e para isso utilizava o pretexto de que seria “cair em provocação”. Sem sucesso, até surgir uma proposta intermediária que convenceu a base: ficariam ali em vigília no sindicato em assembléia permanente até a libertação. Os Sindicatos e a população traziam comida e solidariedade; alguns marinheiros deixavam a ocupação para retornar em centenas. Sem controle, a Marinha resolveu reprimir. Enviaram a mais especial das forças: o batalhão de choque dos fuzileiros navais. O movimento conseguiu que os membros do batalhão deixassem suas armas e aderissem à assembléia. O almirantado não mandava mais. O CGT mais uma vez se limita a uma ameaça de greve geral em 28 de março se não houvesse anistia aos amotinados.
Logo, porém, a direção da AMFNB conseguiu prestar um valioso serviço à burguesia: com oposição de parte da base, aprovaram a resolução, vendida como vitória, de abandonarem a reivindicação central de liberdade imediata dos presos (que seriam libertos apenas dias depois para evitar a desmoralização do almirantado) em troca da nomeação de um ministro “nacionalista e democrático” ligado ao trabalhismo janguista. Ou seja, reconquistou a confiança dos marinheiros no governo e no Estado. Este primeiro passo ainda não resolvia o conflito e a diretoria continuou contendo os marinheiros. Capitani relata que foi
ao Clube dos Sargentos para ajudar a diretoria coordenar a enorme quantidade de marinheiros que chegavam com informações sobre os problemas de suas unidades ou em busca de orientação. A diretoria se esforçava para orientar os marinheiros e fuzileiros rebelados na sua volta à normalidade e na garantia de apoio ao novo Ministro. [22]
Apesar do desvio do levante para eleger um ministro, a base ainda se mostrava disposta a resistir ao golpe e medir suas forças e as do movimento operário com as dos oficiais e da reação. Todos, da AMFNB ao PCB e Goulart, sabiam, há muito, que ocorreria o golpe, e não tomaram medidas de defesa. Nos dias 30 e 31 ele era totalmente visível e novamente a base tentou ultrapassar a direção, e esta, forçada pela base e pela situação, também começou a agir. Os marinheiros inviabilizaram os canhões e os motores de vários navios e ficaram aguardando ordens. A AMFNB por sua vez emitiu ordens para buscar armas e obedecer aos oficiais fiéis ao governo de Goulart e surgiram milícias de marinheiros que se preparavam para prender Lacerda (governador do Rio de Janeiro e uma das principais lideranças do golpe). Aguardavam ordens de Goulart e outros “progressistas” que nunca chegaram. Preparavam-se para distribuir armas para os operários através do CGT e formar batalhões de operários e marinheiros. O CGT nunca apareceu. Depois da covardia de Goulart e dos sindicalistas, ambos contrários a resistir ao golpe com os métodos da revolução proletária, os marinheiros ficaram isolados. Decidiram não morrer lutando isolados, apesar da vontade da base em lutar até o último homem. Esta decisão mostra como, diferente do que o PCB depois procurou propagandear, não eram impacientes pequeno-burgueses. Eram, ao contrário, expressão do mais avançado. O que lhes faltava era o que faltava ao proletariado: uma direção revolucionária. Tinham disposição de lutar e, frente à covardia e capitulação de suas direções, não se propuseram a ser massacrados. Estavam em menos de 5 mil homens, com armamentos da 1ª guerra mundial, sem treinamento para enfrentamento terrestre, frente a uma força de 11 mil efetivos do Exército, melhor armados, treinados, e que ainda esperavam um reforço de mais 50 mil homens que vinham de Minas Gerais e São Paulo.
Perdidas as brechas à esquerda, a situação se fechou à direita. Morreram na praia as possibilidades de desenvolvimento do que foi um embrião de auto-organização dos marinheiros, e de sua vontade de forjar uma aliança com batalhões de operários. Os marinheiros eram vanguarda e a ditadura os tratou assim: tentou prendê-los antes do golpe, e depois dele o número de presos e desaparecidos na Marinha foi o maior das Forças Armadas.
O PCB sabia do golpe e não organizou a resistência; quando a base tentou ultrapassar os oficiais e ministros, o “Partidão” chamou a confiar neles. Desta forma, o stalinismo brasileiro arou o terreno onde os generais semearam repressão, arbítrio e sangue. Para não se culpar por este crime, o PCB culpou os marinheiros. Em 1967 afirmaram que
ações precipitadas deram pretexto aos golpistas para atrair largas parcelas da oficialidade, sob a bandeira da defesa da disciplina e da hierarquia militar (...) [um] surto de impaciência e outras manifestações de radicalismo pequeno-burguê s (...) levantamento de palavras de ordem e a preconização de meios e objetivos de luta não condizentes com o caráter do movimento nacionalista e democrático e com a correlação de forças existente. [23]
Em nome de continuar buscando “progressistas” como Jango e Brizola, negaram as demandas, a organização e sobretudo o desejo dos marinheiros de se unir com a classe operária.
Os marujos do pré-64 construíram um embrião de soviet, estiveram dispostos a se aliar aos trabalhadores contra o Estado burguês, tomar em armas e resolver por si mesmos suas demandas: são uma mostra, como expressão mais avançada do que ocorria na base das Forças Armadas, das condições existentes para resistir ao golpe militar com os métodos da revolução proletária.
4. SOBRE O PROLETARIADO E AS GREVES
Em todo o pré-1964, o nível de atividade do proletariado será um fator constante de desestabilização do regime, sobretudo com o movimento quase permanente de greves e a recusa a permitir que a patronal descarregue sobre suas costas todo o custo da enorme crise econômica. Por outro lado, a falta de uma política independente do proletariado enquanto classe repercutiu em todo o processo em seu conjunto, esboroando suas feições revolucionárias. Essa é a razão profunda para a particular dinâmica de classe que assumiu o processo político que antecedeu o golpe.
Ao longo da década de 1950, no marco do “boom” econômico do pósguerra, no qual a expansão do capital internacional se dá não só através da exportação de capitais e produtos manufaturados, mas também através da instalação de parques produtivos inteiros em grande parte do mundo semicolonial sob a égide dos grandes monopólios, o perfil industrial do Brasil sofre profundas alterações. Isso está por trás da entrada em massa de capitais para o estabelecimento do chamado “Departamento III” da economia (bens de consumo duráveis, tais como automóveis e eletrodomésticos) , gerando como nunca antes uma enorme concentração de operários emgrandes centros de produçãomodernos, como por exemplo nas automotrizes do ABC paulista.
Após 1950 há o declínio proporcional da indústria “tradicional”, como têxtil, alimentos, couro, gráfica, madeireira, tabaco, com exceção de alguns ramos que se mantiveram, tais como a produção de borracha, minério e papel. O crescimento agudo nessa fase concentra-se na indústria moderna, principalmente metalúrgica, de máquinas, automobilística, equipamentos elétricos e química. Enquanto o crescimento da indústria tradicional esteve na casa dos 0,88% ao ano, a indústria moderna crescia a 6,6%.
A década de 50 e o início dos anos 60 constituem, notadamente, uma fase de transição no perfil industrial do país: por estes anos, enquanto o setor moderno já é mais dinâmico e lucrativo, a maior concentração da força de trabalho ainda está no setor tradicional. Esta dinâmica será ainda mais aguda no que se refere à luta de classes, isto é, a preponderância dos setores modernos é ainda maior nos processos de luta, com as categorias dos metalúrgicos e dos químicos encabeçando o auge paredista de 1961-1963, em contraste com o ascenso de 1946 em que os operários têxteis estiveram à frente de uma luta grevista na qual os maiores contingentes se compunham de trabalhadores da indústria tradicional.
O interessante aqui é notar que, embora não haja uma relação mecânica e direta entre os dois processos, a profundidade da crise pré-64 foi preparada pela combinação dessas mudanças estruturais na própria estrutura de classes do país, com um padrão de atividade grevista que englobou ano após ano, cada vez um número maior de trabalhadores e processos cada vez mais concentrados nos grandes batalhões da classe operária moderna.
Durante o segundo governo Vargas, ocorreram importantes greves de massa, porém no marco de uma quantidade geral de greves pequena; com a diferença de que Vargas consegue usar a cooptação e o clientelismo como métodos preferenciais para conter as greves.
Já no período JK as greves são principalmente categoriais, e orientadas em primeiro plano para lutar contra o aumento da carestia de vida provocada pela crescente inflação [24], particularmente do setor industrial. Aqui, ao contrário do período anterior, a maioria das greves são dirigidas diretamente pelos sindicatos, e não por organismos de base como os que organizaram a greve dos 300 mil em 1953 em São Paulo. [25]
É nesse marco que a aliança de pecebistas e getulistas conquista posições em relação à burocracia sindical ligada ao PSD e à ala direita do PTB (amarela), passando a dirigir as intersindicais de caráter regional forjadas ao calor dos principais conflitos, e que seria a base do futuro Comando Geral dos Trabalhadores.
Entre 1961 e 1963, o processo dá um novo salto, quadruplicando o número de greves econômicas nos serviços e na indústria. Os grevistas chegam a 5,6 milhões, caracterizando o maior ascenso grevístico da história do país até aquele momento.
A partir de agosto de 1961 o ascenso de greves econômicas passa a se combinar também com greves políticas, como àquela que se enfrentou contra a tentativa de golpe dos ministros militares após a renúncia de Jânio Quadros. [26] Essa greve, que rapidamente se generalizou no Rio de Janeiro e na Bahia, e passou a se expandir por todo o país, adquiriu importantes elementos de espontaneidade. Ainda que, pela política do PCB, a ação das massas tenha sido contida e canalizada para a defesa da posse do vice João Goulart, a derrota dos golpistas resultou em um importante fortalecimento da subjetividade das massas operárias.
As greves gerais políticas de 5 de julho e de 15 de setembro de 1962, ao mesmo tempo em que significaram uma combinação entre as manobras de Jango em se apoiar no movimento sindical para barganhar com a UDN/PSD e as manobras do PCB para pressionar o próprio Jango, também expressavam a disposição de luta e de “fazer política” das massas operárias, e demonstravam em seus resultados a força da classe em conquistas históricas como o 13º salário. Aquelas duas greves de 1962, ao mesmo tempo em que representaram um pico na ação conjunta e organizada da classe a nível nacional, ocorreram como mobilizações controladas, organizadas pela burocracia do CGT para demonstrar seu apoio político a João Goulart e seus projetos. As direções, em primeiro lugar o PCB, faziam assim da classe operária o fiel da balança da correlação de forças entre as distintas frações das classes dominantes. [27]
Por isso, exatamente, o efeito das greves políticas para a consciência do proletariado foi contraditório: ao mesmo tempo em que foi uma demonstração material do seu poder de classe, influindo de maneira decisiva sobre as questões do momento da política nacional e aumentando assim a noção que a classe trabalhadora tinha de sua própria força;esteve, por outro lado, a serviço do apoio a um dos setores burgueses em pugna, e com isso o proletariado deixava de elevar-se à altura das tarefas imediatas que se lhe punham por diante, pois a grande questão de toda revolução era e continua sendo a possibilidade dasmassas realizaremuma ação histórica independente, e sua capacidade (consciência e direção) para fazê-lo.
A seguinte citação, extraída do livro de um dos principais dirigentes do PCB da época, é reveladora tanto da profundidade do ascenso grevista como, na frase conclusiva, do caráter “ultra-esquerdista” que o PCB atribuía às heróicas ações das massas:
Durante os anos de 1961 a 1963 ocorrem cerca de duzentas greves generalizadas ou gerais por setor, a maioria por reivindicações de ordem econômica e algumas poucas, mas significativas, de caráter político.[... ] Uma das greves mais importantes foi a que irrompeu a 6 de outubro de 1963, em São Paulo, que mobilizou cerca de 700 mil trabalhadores, 79 sindicatos e quatro federações ligadas à CNTI [...] A paralisação começou em São Paulo, entre os metalúrgicos, e se estendeu a outras categorias, espraiando-se pelo interior: Santos, Campinas, Jundiaí, ABC, Piracicaba, São José dos Campos, Ribeirão Preto, Americana,Tatuí e Guarulhos. Sua realização coincide com uma grave crise política do governo Goulart, que está sob o fogo de Carlos Lacerda, governador da Guanabara. A greve é parcialmente vitoriosa e já revela alguns aspectos da radicalização que desde 1963 vai progressivamente pesando na ação das forças democráticas. [28]
Segundo essa visão, portanto, a “culpa” pelo golpe estaria no excesso de radicalização da luta das massas, e não, precisamente, na traição das direções do PCB e CGT. A seguinte citação de Trotsky, extraída do livro Aonde vai a Inglaterra?, apesar de extensa, é interessante para contrastar com a política das direções do PCB e do CGT. Trotsky analisa a dialética existente entre a preparação da greve geral e a questão do poder político, resolvida sempre em última instância pelas armas. Assim, uma direção que faz uso da greve geral como uma mera “manobra”, sem dar-se conta da influência objetiva que a realização da greve adquire imediatamente e sem ligar a organização da greve geral com os preparativos para a conquista da base das forças armadas e para o levantamento revolucionário pela tomada do poder político, está não apenas renunciando à sua tarefa mais fundamental, mas concretamente pavimentando o caminho para as derrotas mais sangrentas.
Nas palavras de Trotsky:
Uma insurreição revolucionária triunfa quando consegue infligir uma derrota às forças mais firmes, mais resolutas e mais seguras da reação e atrair para si a simpatia do restante das forças armadas do regime. Este resultado, digamos uma vez mais, não pode ser obtido senão no caso de que as tropas governamentais titubeantes se convençam de que as massas operárias não se limitam a manifestar seu descontentamento, achando-se absolutamente decididas a derrubar o governo, custe o que custar, sem retroceder ante os meios mais desapiedados. Este sentimento é o único capaz de fazer passar as tropas vacilantes para o lado do povo. Quanto mais hesitante, titubeante e evasiva seja a política dos dirigentes da greve geral, menos vacilação haverá nas tropas, mais firmemente sustentarão o poder e mais probabilidades terá este de sair vitorioso da luta, para abater em seguida a cabeça da classe operária com as mais sangrentas repressões. Em outros termos, quando a classe operária se vê obrigada a recorrer para sua emancipação à greve geral, deve dar-se conta previamente de que isso traz consigo inevitavelmente a produção de colisões armadas e de conflitos análogos, locais e gerais; deve dar-se conta de antemão de que a greve geral só não será reprimida no caso de que se tenha dado imediatamente a resposta necessária aos fura-greves, aos provocadores, aos fascistas etc.; deve prever com antecipação que o governo cujo destino se joga lançará inevitavelmente à luta, em tal ou qual momento, suas forças armadas, e que o destino do regime e, por conseguinte, o do proletariado dependerá do resultado do confronto das massas revolucionárias com essas forças armadas. Os operários devem previamente tomar todas as medidas precisas para atrair os soldados para o lado do povo mediante uma agitação preliminar; porém também deve prever de antemão que sempre restarão ao governo bastantes soldados seguros ou quase seguros para tentar reprimir a insurreição, de modo que a questão se resolverá em última instância por um conflito armado, para o qual é necessário preparar-se segundo um plano determinado com antecedência e no qual será preciso empenhar-se com uma completa resolução revolucionária. (...) Somente a mais extrema resolução na luta revolucionária pode arrancar as armas das mãos da reação, abreviar a guerra civil e diminuir o número de suas vítimas. Se não se admite isso, não há para que tomar as armas; se não se tomam estas, impossível uma greve geral; se se renuncia à greve geral, não se pode pensar em uma luta séria. [29]
5. BONAPARTISMO, IMPERIALISMO E NACIONALISMO BURGUÊS
Também do ponto de vista das classes dominantes os anos de que tratamos foram palco de transformações de caráter estrutural. Tais transformações, que constituem o substrato material para as divisões e conflitos que permearam todo o seu comportamento político ao longo desse período, possuíam dois fatores fundamentais: de um lado, a pressão própria do ascenso das massas urbanas e rurais em todo o país; de outro, as conseqüências do novo padrão assumido pela penetração imperialista no país, que provocava um surto “industrializante” de tipo específico e uma “modernização” geral das relações econômicas no interior do país e, deste, com o mercado mundial.
De conjunto, esse processo provocava um crescente deslocamento e uma conseqüente busca de nova localização por parte do setor latifundiário agroexportador, o qual, embora até meados dos anos 1950 ainda possuísse um enorme peso na renda nacional, desde a década de 30 apresentava taxas de crescimento muito menores do que seus “rivais” industriais ligados ao grande capital financeiro estrangeiro e nacional. Este é um fator essencial das transformações da burguesia brasileira, tanto do ponto de vista sócio-econômico como do ponto de vista das relações políticas recíprocas entre seus distintos setores.
Assim, a partir do final dos anos 1950, e em meio ao processo de agitação social crescente no país, aqueles setores mais ligados ao capital imperialista e aos grandes grupos monopólicos atuantes no país começam a disputar cada vez mais abertamente a hegemonia política sobre as demais frações da classe burguesa, inclusive aquelas tradicionalmente representadas pelo PTB. Tal disputa pela hegemonia entre as distintas frações das classes dominantes, que ao mesmo tempo ajuda a entender as fortes características de arbitragem desempenhadas pelo Executivo desde os governos de Dutra e de Vargas, será uma marca determinante em todo o período crítico da situação nacional.
À medida que o peso social e econômico dos setores mais diretamente atrelados ao grande capital imperialista passa a se sobrepor de maneira esmagadora sobre as demais frações, estas últimas passarão a buscar, através da mediação de seus representantes políticos, em primeiro lugar o PTB e João Goulart, utilizar-se do apoio no movimento de massas para tentar contrapor o avanço hegemônico do grande capital ligado ao imperialismo. Ao mesmo tempo, buscam com isso garantir base social para a realização de determinadas reformas parciais que de fato lhes interessavam, no sentido da criação de condições mais favoráveis para o desenvolvimento de um capitalismo de base nacional e cuja autonomia relativa com respeito às economias imperialistas fosse levada a um nível máximo (valendo para isso inclusive a barganha com os países do chamado “campo socialista”).
Como dizia Trotsky na década de 1930:
Nos países industrialmente atrasados o capital estrangeiro cumpre um papel decisivo. Daí a relativa debilidade da burguesia nacional em relação ao proletariado nacional. Isto cria condições especiais de poder estatal. O governo oscila entre a relativamente débil burguesia nacional e o relativamente poderoso proletariado. Isto dá ao governo um caráter bonapartista sui generis. Se eleva, por assim dizer, por cima das classes. Na realidade pode governar ou bem convertendo- se em instrumento do capital estrangeiro e submetendo o proletariado com as cadeias de uma ditadura policial, ou bem manobrando com o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concessões, ganhando deste modo a possibilidade de dispor de certa liberdade em relação aos capitalistas estrangeiros. [30]
Se o pólo burguês encabeçado pela UDN civil e militar corporificava a primeira tendência descrita por Trotsky, a um bonapartismo sui generis de direita, apoiado sobre o imperialismo e as Forças Armadas, para a realização de contra-reformas de ataque direto às massas, submetendo o movimento operário e camponês mais diretamente à repressão; a fração burguesa representada por Jango, Arraes e, como variante mais radical dessa mesma tendência histórica, por Leonel Brizola, representava a segunda, isto é, uma forma de bonapartismo mais apoiada sobre o movimento de massas, porém sem romper seus laços com os latifundiários, as demais frações burguesas e com o imperialismo.
As medidas propostas por Jango com o nome de “reformas de base” são extremamente parciais e atenuadas em relação às reformas estruturais de caráter democrático-burguê s (reforma agrária, unificação nacional, reforma urbana etc.) realizadas na Europa ocidental e nos EUA e que foram a mola propulsora do desenvolvimento capitalista nestes países. Ao serem pactuadas como latifúndio e como imperialismo, as “reformas de base” não respondiam ao problema estrutural da acumulação primitiva de capital que só seria possível com uma profunda reforma agrária no país, e neste sentido não respondia ao problema estrutural da dependência em relação ao capital imperialista, pois está intimamente ligada à inexistência de capital interno capaz de desenvolver as forças produtivas de forma independente. As “reformas de base” eram atenuadas inclusive emrelação àsmedidas de governos nacionalistas burgueses latino-americanos adotadas entre as décadas de 30 e 70 na América Latina, como Perón na Argentina ou Cárdenas no México.
Em última instância, esses são os elementos que permitem configurar, com contornos cada vez mais nítidos, dois grandes campos burgueses em disputa, que respondem às duas grandes formas de bonapartismo em países semicoloniais como o Brasil. Como dizia Trotsky:
Estamos num período em que a burguesia nacional busca obter um pouco mais de independência frente aos imperialismos estrangeiros. A burguesia nacional está obrigada a flertar com os operários, com os camponeses, e temos agora o homem forte do país orientado à esquerda como hoje no México. Se a burguesia nacional está obrigada a abandonar a luta contra os capitalistas estrangeiros e trabalhar sob sua tutela direta, teremos um regime fascista, como no Brasil, por exemplo. Mas ali a burguesia é absolutamente incapaz de constituir sua dominação democrática, porque, por um lado tem o capital imperialista, e por outro, tem medo do proletariado porque a história, ali, saltou uma etapa e porque o proletariado se tornou um fator importante antes que tenha sido realizada a organização democrática do conjunto da sociedade. (…) Inclusive nestes governos semi bonapartistas democráticos, o Estado necessita do apoio dos camponeses e é graças ao seu peso que disciplina os operários. É mais ou menos o que ocorre no México. [31]
Orientando a IV Internacional sobre como atuar frente aos setores burgueses que tentam desenvolver uma política nacionalista, Trotsky escreve:
Estamos em perpétua competição com a burguesia nacional, como única direção capaz de assegurar a vitória das massas no combate contra os imperialistas estrangeiros. Na questão agrária, apoiamos as expropriações. Isso não significa, bem entendido, que apoiemos a burguesia nacional. Em todos os casos em que ela enfrenta diretamente os imperialistas estrangeiros ou seus agentes reacionários fascistas, damos a ela nosso pleno apoio revolucionário, conservando a independência íntegra de nossa organização, de nosso programa, de nosso partido, e nossa plena liberdade de crítica. O Kuomintang na China, o PRM no México, o APRA no Peru [32] são organizações totalmente análogas. É a frente popular sob a forma de um partido. (...) Corretamente considerado, a Frente Popular não tem na América Latina um caráter tão reacionário como na França ou na Espanha. Tem duas facetas. Pode ter um conteúdo reacionário na medida em que esteja dirigido contra os operários, pode ter um caráter agressivo [33] na medida em que esteja dirigido contra o imperialismo. Porém, considerando a frente popular na América Latina sob a forma de um partido político nacional, fazemos uma distinção com respeito a França e a Espanha.Mas esta diferença histórica de apreciação e esta diferença de atitude só estão permitidas com a condição de que nossa organização não participe do APRA, do Kuomintang ou do PRM, que conserve uma liberdade de ação e de crítica absoluta. [34]
Estas últimas considerações levantadas por Trotsky adquirem grande importância, pois rejeitam qualquer postura sectária e assim previnem o seu oposto, isto é, o impressionismo oportunista diante de eventuais medidas de confronto com o imperialismo que pudessem vir a ser tomada por setores da burguesia. No caso brasileiro, descrevem perfeitamente a atitude a ser tomada frente a medidas como as de Brizola, quando este “encampou” (estatizou) a companhia de energia elétrica do RS, subsidiária da AMFORP estadunidense, em 1959, assim como a telefônica gaúcha em 1961 (subsidiária da ITT, outra companhia norte-americana) . Medidas pelas quais, somadas ao desejo expresso de combater pelas armas aos golpistas, que nos levaram a identificar Brizola como a ala mais radical da corrente burguesa que tendia a um bonapartismo sui generis de esquerda.
Do outro lado, a articulação das alas encabeçadas pela UDN civil e militar com o imperialismo norte-americano é hoje comprovada por inúmeros documentos, que provam que, sobretudo através do IPES e do IBAD, o imperialismo realizou gastos sistemáticos, por um lado no trabalho de arregimentar os setores burgueses capazes de engajar-se na preparação do golpe militar, e as alas das Forças Armadas dispostas a dirigir a transformação reacionária do regime; e por outro lado, na criação de associações especiais para a infiltração de agentes pró-imperialistas nas organizações da sociedade civil, com instrumentos especializados e voltados a seus diversos segmentos: as associações populares e de mulheres, de juventude, os parlamentares, e inclusive no movimento operário e nas organizações camponesas [35]. Além disso, o contingente de militares norte-americanos no Brasil atingiu nos anos imediatamente anteriores ao golpe recordes históricos, superando inclusive os números da época da Segunda Guerra (quando a presença de bases americanas no Nordeste era oficial), atingindo cerca de dez mil pessoas, quatro mil a mais das que entraram no Brasil apenas no ano de 1963.
[1] Antonio Rago Filho, Opt. cit.
[2] Arruda Câmara iria aderir a este último após o golpe de 1964, tornando-se automaticamente um de seus principais dirigentes.
[3] Como mostram os relatos do embaixador da época e documentos recentemente liberados pela CIA.
[4] As tentativas de incorporação das demandas camponesas por parte da burguesia vinham, é claro, desde muito antes, pelo menos desde o início da década de 50.
[5] Os demais militantes trotskistas que atuavam na região foram presos em seguida – sob os governos de João Goulart e Miguel Arraes – em nome da Lei de Segurança Nacional.
[6] “Demagogia e Extremismo”, editorial Estado de São Paulo, 18.06.1960.
[7] Segundo entrevista do Marechal Odílio Denys a Moniz Bandeira em 17.11.1976, Ademar de Barros informou-lhe que este era o propósito de Goulart, que pretendia proclamá-la em 1º de maio de 1964. Segundo autores que posteriormente se tornaram trabalhistas, como Moniz Bandeira, este propósito nunca existiu.
[8] Entrevista do marechal Odílio Denys a Moniz Bandeira. Rio de Janeiro, 17.11.1976.
[9] O semanário, Rio de Janeiro, n 375, 12 a 18.05.1964, p. 5.
[10] O semanário, Opt. cit.
[11] O Globo, Rio de Janeiro, 11.04.1964, p. 10.
[12] O semanário, Opt. cit.
[13] O semanário, Opt. cit.
[14] O semanário, Opt. cit.
[15] Luiz AlbertoMoniz Bandeira, O governo João Goulart – As lutas sociais no Brasil – 1961-1964, Editora Renavan e Editora UNB, 2001.
[16] Este subtópico foi baseado no artigo “A luta de classes e os marinheiros no pré-1964: uma tentativa de resistir ao golpe”, de Leandro Ventura, publicado no Jornal Palavra Operária de janeiro-fevereiro de 2007. O artigo, por sua vez, está baseado, sobretudo, em: Avelino Capitani, A rebelião dos marinheiros, Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1997; Pedro Viegas, Trajetória Rebelde, Cortez, São Paulo, 2004; e Flávio Rodrigues, As vozes do mar, FFLCH, São Paulo, 2002.
[17] Os relatos da revolta da Chibata expressavam este antagonismo e também marcavam subjetivamente os marinheiros.
[18] Avelino Capitani, Opt. cit., p. 35.
[19] Avelino Capitani, A Rebelião dos Marinheiros, Editora Expressão Popular, 2005, p. 49-50.
[20] Avelino Capitani, Opt. cit., p. 57. Flávio Rodrigues, Opt. cit., p. 84.
[21] Avelino Capitani, Opt. cit., Editora Expressão Popular, 2005, p. 49-50.
[22] Avelino Capitani, Opt. cit., Artes e Ofícios, p. 59.
[23] Informe de Balanço do CC ao VI Congresso em PCB: vinte anos de política 1958-1979. São Paulo, LECH, 1980.
[24] Em 1959, o nível salarial geral atinge o seu pico em todo o período de 1945 a 1964, vale dizer, até o fim da ditadura que escorchou ainda mais os salários (de 1959 até 1963 os salários já tinham perdido 25% do seu poder de compra, em 1968 essa perda acumulada chegava a 59%).
[25] Dentre os principais conflitos que marcaram este ascenso nos anos 50, destacamos a “greve dos 300 mil” na qual, metalúrgicos, marceneiros, padeiros, vidreiros, têxteis e gráficos paulistas, alentados por uma forte greve têxtil vitoriosa que havia recém ocorrido no Rio de Janeiro, pararam a produção durante 27 dias lutando por aumento salarial e contra o Pacto Militar Brasil-EUA que neste então tramitava no Congresso. Como subproduto da vitória parcial desta greve, surge o Pacto de Unidade Intersindical (PUI), que chega a reunir em torno de si mais de 100 sindicatos e que vai liderar nos anos seguintes os principais processos de luta em São Paulo. Em 1960, destacam-se, pelo grau de radicalização e de politização, marcando o início de uma tendência que vai se desenvolver nos anos seguintes, a greve geral na cidade de Santos em apoio a 31 operários do Moinho Santista ameaçados de serem transferidos por perseguição política; e a chamada “greve da paridade”, encabeçada pelos trabalhadores ferroviários, marítimos e portuários em resposta a um aumento salarial restrito ao militares que havia sido aprovado no Parlamento, enfrentando diretamente os ministros do Trabalho e da Justiça. Como fruto da vitória dessa greve, surge o Pacto de Unidade e Ação (PUA), uma coordenação de sindicatos que passa a liderar os setores mais combativos do Rio de Janeiro.
[26] Os 18mil ferroviários da Leopoldina paralizaramno dia 26.No dia 27, são paralisados todos os principais bancos do país. No dia 30, constitui-se a nível nacional o organismo que ficou conhecido como “Comando Geral de Greve” (CGG). A esta altura já estavam em greve setores de metalúrgicos do Rio de Janeiro, vidreiros, operários da construção civil e comerciários de Nilópolis, operários da Cia. Nacional de Álcalis de Cabo Frio, ferroviários de Minas Gerais, da Central do Brasil do Rio de Janeiro e da Leopoldina de São Paulo, tecelões do Rio e deMinas,mineiros de Nova Lima, portuários de Santos e do Rio de Janeiro e aeroviários emvárias partes do país. No dia 2 de setembro novos setores aderemà greve, neste então já predominantemente sob direção do CGG: estivadores e portuários, que reuniam 300 mil em todo o país, dentre os quais se encontram os 100 mil Oficiais de Náutica e daMarinhaMercante.
[27] No mês de agosto de 1962, se reúne o IV Encontro Sindical Nacional, do qual participam 2.566 delegados representando 574 entidades de todo o país. É nesse encontro que se funda o CGT, como desenvolvimento do Comando Geral de Greve formado na greve pela posse de Jango em agosto de 1961 e que teve continuidade em julho, e representava um fruto direto da vitória do movimento. Foi o mais perto que a classe operária brasileira chegou de forjar uma Central Sindical Única. O CGT era composto pela articulação entre as Confederações Nacionais de Trabalhadores da Indústria, dos Transportes Marítimos, Fluviais e Aéreos, dos Trabalhadores das Empresas de Crédito e, mais tarde, dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). A única confederação que não se uniu ao CGT foi a dos Trabalhadores do Comércio. O CGT possuía assim um duplo caráter: desafiava a legislação brasileira que negava à classe operária o direito de organizar-se em Central Sindical; por outro lado, mantinha a política de conciliação de classes, o cupulismo e o burocratismo da estrutura sindical oficial, principalmente devido às suas direções, que eram compostas pelo PCB e o PTB.
[28] Moisés Vinhas, O Partidão - a luta por um partido de massas 1922-1974, Editora Hucitec, São Paulo, 1982, p. 192.
[29] León Trotsky, Aonde vai a Inglaterra?, Editora El Yunque, Buenos Aires, 1974, p. 94.
[30] León Trotsky, Escritos Latinoamericanos, “La industria nacionalizada y la administració n obrera”, 12 de maio de 1939, CEIP León Trotsky, Buenos Aires, 1999, p. 151.
[31] Ibídem, “Discussión sobre América Latina”, 4 de novembro de 1938. Entrevista. Intervenção de Trotsky na entrevista. CEIP León Trotsky, Buenos Aires, 1999.
[32] O Kuomintang era o partido nacionalista burguês chinês fundado por Sun Yat Sen e utilizado por Chiang Kai Shek. O Partido Nacionalista Mexicano foi fundado formalmente em 1928 sob o nome de Partido Nacional Revolucionário (PNR) pelo general Plutarco Elías Calles. Cárdenas, quem dirigia sua “esquerda”, o havia reorganizado em 1938 e o havia rebatizado Partido da Revolução Mexicana (PRM).
[33] Nota doTradutor: Na versão francesa, que tomamos como referência, figura o termo "agressive", cuja tradução literal é "agressivo". Utilizamos esta expressão apesar de que em outras três traduções ao espanhol deste artigo figure o termo "progressivo" .
[34] León Trotsky, Escritos Latinoamericanos, “Discussión sobre América Latina”, 4 de novembro de 1938. Entrevista. Intervenção de Trotsky na entrevista. CEIP León Trotsky, Buenos Aires, 1999.
[35] Moniz Bandeira faz um relato detalhado dessas operações, incluindo cifras revelando a dimensão dos gastos financeiros, de recursos humanos e de armamentos engajados pelo imperialismo, sobretudo através da CIA e da embaixada norte-americana, para a preparação do Golpe. Ver O governo João Goulart – As lutas sociais no Brasil – 1961-1964, Editora Renavan e Editora UNB, 2001.
PARTE II

A periodização
“ (...) apenas a opressão, por grande que seja nem sempre origina uma situação revolucionária em um país. Na maioria dos casos, para que exploda a revolução, não basta que os de baixo não queiram seguir vivendo como antes. Faz falta, além disso, que os de cima não possam seguir administrando e governando como antes.” (Lênin) [1]

Na primeira parte deste artigo buscamos aprofundar nos sujeitos políticos que compõem o processo em questão: o PCB, os camponeses, os marinheiros, o movimento operário, as classes dominantes e o imperialismo. A seguir, buscamos fazer uma periodização do conjunto do processo.
O ascenso operário e camponês na década de 50 e a abertura de uma situação pré-revolucioná ria
Após a ofensiva repressiva deflagrada pelo governo Dutra contra o movimento operário desde 1947, o processo começa, ainda no marco de uma situação não revolucionária, com o ascenso operário e camponês na década de 50.
A partir da segunda metade do governo JK, a situação da luta de classes no país vive um primeiro salto de qualidade. A crise econômica se instala de forma mais aguda, o ascenso das massas ganha um novo fôlego e a divisões entre as frações das classes dominantes se acentuam: é durante este período que caracterizamos abrir-se uma situação pré-revolucioná ria no país.
A partir de 1957 começam a reverter-se as condições econômicas que provocaram o “boom” dos “anos dourados” de Kubitschek. Em função do forte declínio da receita das exportações de café, cujos preços caíram continuamente desde 1955, e como todos os itens da conta de serviço mantiveram-se negativos, mesmo considerando o superávit na conta de capitais devido ao crescimento do fluxo de capitais internacionais para o país, a situação da balança de pagamentos adquiriu uma dinâmica catastrófica. Dinâmica esta que foi agravada pelas crescentes remessas de lucros das multinacionais instaladas no país para suas matrizes no exterior. O superávit de 194 milhões de dólares em 1956 transformou- se num déficit de 180 milhões já em 1957, que saltou para um déficit de 253 milhões em 1958. Se em 1957 esse déficit foi coberto com recursos das reservas, a utilização do mesmo mecanismo no ano seguinte as esgotariam, fazendo com que a economia do país aumentasse em grande medida sua dependência em relação aos capitais estrangeiros não só para novos investimentos mas também para minimamente garantir o pagamento das importações essenciais ao funcionamento da economia. A partir de 1959, a inflação, que ao longo da década de 50 cumpria um papel chave na acumulação capitalista, em função da crise na balança de pagamentos e das tendências de refluxo dos capitais externos para o país, sofre um salto de qualidade, fugindo ao controle. [2]
Frente a estas novas condições econômicas, acentuam-se não só as divisões entre as frações dominantes como também as greves operárias contra o aumento da carestia de vida provocada pela inflação; sendo que em 1959 ocorreram enfrentamentos físicos com a polícia e saques a depósitos e armazéns, e em 1960 as greves chegam a atingir, em distintos movimentos ao longo de todo o ano, um milhão e quinhentos mil trabalhadores.
O aumento dos conflitos no interior da aliança entre o PSD e o PTB, que se manifestava desde as eleições regionais de 1958, acentuam-se progressivamente com o PTB cada vez mais pressionado pelo ascenso das massas e o PSD cada vez mais pressionado pelo endurecimento e maior alinhamento com os EUA por parte dos setores mais altos da burguesia e do latifúndio agro-exportador.
A crise da renúncia de Jânio Quadros e a abertura de uma etapa revolucionária
O governo de Jânio Quadros significou uma tentativa de um setor da burguesia de encontrar um árbitro capaz de elevar-se por cima dos conflitos entre as classes e frações de classe, ou seja, uma tentativa de governo bonapartista mais diretamente apoiado sobre as Forças Armadas. Neste sentido, ao mesmo tempo em que buscava contentar setores udenistas e pessedistas com a implementação de um plano de ajuste monetário para conter a inflação; buscava contentar também setores petebistas e pecebistas adotando uma política externa com traços de independência em relação aos EUA (estabelecimento de comércio exterior com os Estados Operários, negativa em avalizar intervenção dos EUA em Cuba e lei que limitava a remessa de lucros para o exterior) e propondo a realização parcial e controlada de reformas estruturais como a agrária etc. Este “jogo”, que ao mesmo tempo agradava e provocava o desgaste de Jânio frente aos distintos setores sociais, esteve combinado com uma renovação do alto-mando militar na qual foram afastados os chefes nacionalistas e legalistas ligados ao juscelinismo e empossados chefes da UDN militar historicamente golpistas.
O ano de 1961 marca uma inflexão na crise econômica que vai atravessar o país, com uma queda substancial da dinâmica de crescimento que vinha se expressando ao longo de toda a década anterior; e a continuidade da inflação revela rapidamente a falência do plano de ajuste monetário implementado por Jânio, que vê desgastar-se rapidamente sua popularidade junto às massas e passa a enfrentar crescentes dificuldades para a aprovação de seus projetos no Congresso.
A renúncia de Jânio, em25 de setembro de 1961, é uma tentativa de autogolpe na qual Jânio pretendia voltar à Presidência aclamado, aomesmo tempo pelas massas e pelos setores entreguistas das Forças Armadas e do grande capital norte-americano e nacional, com autoridade suficiente para que o Congresso lhe outorgasse poderes especiais que lhe permitissemgovernar sem a necessidade do apoio da maioria dos deputados. Jânio apostava que os militares entreguistas e o grande capital iriampreferir seu projeto bonapartista à formação de uma junta militar que passasse a governar através de um golpe de Estado ou à posse do Vice-Presidente “esquerdista” João Goulart.
A maioria das frações burguesas e inclusive o governo norte-americano [3] viram em Jânio Quadros um aventureirismo demasiadamente perigoso que poderia sair de seu controle e não embarcaram no seu plano. Tampouco as massas saíram às ruas para clamar por ele. A renúncia abriu uma crise de vazio de poder na qual, durante 15 dias, nem os setores que lançaram uma ofensiva golpista para instalar o governo de uma junta militar foram capazes de assumir o poder; nem tampouco foram os setores burgueses que defendiam dar uma chance a Goulart, com poderes restringidos. O relativo vazio de poder que preencheu esta disputa deu lugar a uma particular intervenção das massas, que combinava importantes aspectos de espontaneidade na resistência à tentativa de golpe com a direção consciente do PCB e do PTB pela posse de Jango. Esta combinação adquiria um potencial tão mais explosivo quanto maior era a possibilidade de deflagração de uma Guerra Civil entre os distintos setores da burguesia e da cúpula das Forças Armadas, potencial este que adquiriu seus contornos mais dramáticos quando o III Exército (Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina) iniciou o deslocamento para o Norte em defesa de Jango e os I (Rio de Janeiro) e II (São Paulo) Exércitos iniciaram movimentações para o Sul em defesa do golpe; ainda mais sendo o III Exército a mais poderosa arma do país em número de efetivos e material bélico.
No Rio Grande do Sul, principal reduto eleitoral de João Goulart e do PTB, as massas responderam ao chamado de seu governador Brizola para resistir ao golpe com fortes elementos de espontaneidade que ameaçavam ultrapassar o controle que as classes dominantes petebistas tinham do seu “feudo”.
Nas principais cidades do estado as massas pararam para acompanhar das ruas a evolução dos acontecimentos. A Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini (sede do governo do Rio Grande do Sul), passou a ser ocupada permanentemente por milhares de pessoas, 24 horas por dia, sendo que nos momentos de maior tensão chegaram a reunirem-se ali dezenas de milhares de pessoas.
A União Estadual dos Estudantes (universitários) e a União Gaúcha dos Estudantes Secundaristas decretaram greve geral a partir do dia 26 e os estudantes passaram a formar comitês de resistência e a realizar comícios e passeatas.
Já no dia 25 surge em Porto Alegre o primeiro “Comitê de Resistência Democrática”. Nos dias seguintes, instalaram-se nos bairros, locais de trabalho e no interior mais de 400 destes comitês que foram o centro de inscrição voluntária para a resistência, totalizando, ao longo de 12 dias, mais de 100 mil inscritos entre mulheres, trabalhadores, estudantes e aposentados. Segundo o depoimento dos principais dirigentes dos comitês, compostos por líderes sindicais e profissionais liberais, ainda que os comitês contassem com a simpatia do governo, seu surgimento e seu desenvolvimento foi marcado por forte espontaneidade. Desde o dia 26, a direção dos comitês passou a publicar um jornal chamado “Resistência”, que chegou a alcançar a tiragem de 200 mil exemplares. Segundo depoimento de dirigentes dos comitês, em alguns casos houve treinamento militar de alguns batalhões operários para eventual utilização de armas, visíveis nas marchas com uniformes de trabalho pelas ruas de Porto Alegre, segurando cabos de vassouras que simulavam armas [4], apesar das “promessas” de distribuição de armamento pelos comitês não terem se concretizado.
Se por um lado Brizola demonstrava de fato disposição para resistir militarmente ao golpe [5], encabeçando as classes dominantes petebistas do RS e em conjunto com o III Exército, por outro lado teve uma política consciente para conter a intervenção das massas sob o controle do governo, da polícia, do Exército e da burocracia sindical, negando-se a distribuir armas para a população e trabalhando para conter a explosão de uma greve geral no Estado. O armamento ficou sob controle estrito do aparato de Estado, e em casos extremos de assessores políticos, jornalistas [6] e dirigentes sindicais [7] de estrita confiança do governo; ao mesmo tempo em que os dirigentes sindicais petebistas e pecebistas que formaram o “Comando Sindical Gaúcho Unificado” (CSGU) negaram-se a convocar uma greve geral, limitando-se a alertar os trabalhadores para deflagrá-la caso o Palácio Piratini fosse atacado.
Brizola rapidamente transformou- se no principal centro de referência nacional da resistência ao golpe e pela defesa da posse de João Goulart.
A greve geral política começa em diversas categorias que param sem coordenação uma com a outra, consolida-se rapidamente como uma greve geral no Rio de Janeiro e na Bahia, e continua expandindo-se por todo o país. A greve combina fortes elementos de espontaneidade das massas que paralisam seus trabalhos e saem às ruas para defender as liberdades democráticas com o chamado consciente do PTB e do PCB para defender a posse de João Goulart. Esta combinação se dá com particular espontaneidade principalmente no Rio de Janeiro, onde Lacerda deflagrou uma forte repressão sobre o movimento de massas e suas organizações.
O processo que se desenvolvia no sul do país e a greve geral se combinaram com movimentos de resistência civil e rebelião militar em outras partes do país.
Frente à ameaça de que a intervenção das massas saísse do controle, as classes dominantes se unificaram [8] em torno da implementação do regime parlamentarista antes da deflagração do confronto dos I e II Exércitos contra o III Exército. O regime parlamentarista significou um “acordo tácito” e momentâneo entre as distintas frações das classes dominantes (desde as alas janguistas até as alas golpistas) para conter a explosão das massas; pacto este no qual os golpistas, que descarregaram a repressão sobre as massas e ameaçaram instaurar uma ditadura sobre o país, terminaram em grande medida impunes.
Brizola, que em seus discursos dizia que estava preparado para marchar com 90 mil homens armados sobre Brasília para dissolver o Congresso udenista e pessedista e convocar uma Assembléia Constituinte, tratou de desmobilizar as massas gaúchas e junto com Jango aceitar a conciliação com os golpistas. O PCB tratou de desmontou a greve geral e seguiu o mesmo caminho. Juntos, ambos foram responsáveis pelo controle e pelo desvio de possíveis ações independentes das massas, canalizando a energia posta nas ruas para uma pressão institucional sobre o novo governo.
A fase mais aguda da crise se fecha. Apesar da direção burguesa do petebismo “de esquerda” e da traição do stalinismo, a crise política que circunscreveu a renúncia de Jânio Quadros abriu um novo momento da relação de forças no país. A partir deste momento, o país vive uma etapa revolucionária caracterizada pela combinação entre o agravamento das crises e oscilações tanto no nível da luta de classes, como no grau de divisões entre as classes dominantes.Mas, oscilações que mantinham um patamar mínimo de atividade das massas, ao mesmo tempo em que freqüentes novos fenômenos políticos ameaçavam abrir uma crise mais aguda, e as classes dominantes eram incapazes de se unificar minimamente em torno de uma saída mais sustentada para a situação, são fluxos e refluxos da etapa revolucionária que vai se fechar definitivamente apenas com o golpe militar de 31 de março de 1964.
O caráter de conciliação e crise do gabinete Tancredo Neves
Por constituir-se como saída emergencial em que as distintas frações dominantes se unificaram para conter a expansão da greve geral e a possível eclosão de uma guerra civil, o gabinete Tancredo Neves não foi capaz de cumprir qualquer outra tarefa, seja por temer a elevada moral das massas, seja pela inexistência de acordo entre as frações burguesas em relação aos passos a seguir. Foi um governo essencialmente de paralisia e transição, no qual os distintos das classes dominantes mediam forças e preparavam suas táticas para tentar retomar o controle da situação. Ao mesmo tempo, cresciam as greves operárias contra a carestia de vida e as ocupações de terras, ainda que desde o ponto de vista político, o PCB conduzisse estes processos para uma pressão pacífica a favor dos plenos poderes presidenciais a Jango e suas “reformas de base”. Este gabinete durou 9 meses, caindo em junho de 1962.
O gabinete parlamentarista chefiado por Brochado da Rocha: as novas demonstrações de força do proletariado e as “manobras” de Jango
Antes mesmo de completar um ano como chefe de governo, a enorme instabilidade da saída parlamentarista provocou a queda deTancredo Neves, agravando ainda mais a polarização entre as alas das classes dominantes em torno dos nomes do “desenvolvimentista” Santiago Dantas e do “conservador” Auro de Moura Andrade para assumir o posto de primeiro ministro. A maioria do parlamento estava pela posse deste último, que chegou a ser nomeado, porém não pôde assumir devido à intervenção do movimento de massas, que responde tomando as ruas de várias cidades do estado do Rio de Janeiro, e rapidamente uma greve geral política paralisou o país em apoio ao nome preferido por Jango, sendo que terminou eleito um terceiro, também apadrinhado de Jango, Francisco Brochado da Rocha.
Na verdade, tal era a situação do país que a simples ameaça de greve geral lançada em 4 de julho pelos dirigentes sindicais foi suficiente para que Moura Andrade renunciasse ao cargo, de modo que Goulart ainda tentou impedir que, no dia seguinte, em 5 de julho, o país parasse de norte a sul. Porém, os dirigentes sindicais conheciam bem o estado de ânimo dos operários brasileiros, e disseram que não podiam mais suspender a greve, literalmente sob pena de ficarem “desmoralizados”.
A greve geral foi então deflagrada, apesar da oposição de Goulart e da vacilação da direção do PCB, e contou com adesão total de trabalhadores marítimos, portuários, estivadores, aeroviários e aeronautas em todo o país. No estado do Rio e na cidade de Santos, a greve parou praticamente todas as categorias de trabalhadores, no setor industrial, público e também no comércio. O trecho a seguir, escrito logo após os acontecimentos, em 1962, dá uma dimensão das condições excepcionais do que se passava no país:
(...) a 5 de junho de 1962, asmassas saíramàs ruas emvárias cidades do Estado do Rio. Lincharamcomerciant es, expropriaramos expropriadores. Asmassas estavamdispostas a intervir, diretamente, na crise, no processo político do país. As facções das classes dominantes, que disputavam a hegemonia do Governo, trataram, assustadas, de conciliar-se, como, aliás, sempre acontece. Procuraram ocultar, reduzir as proporções do episódio, para que não servisse de estímulo, de exemplo, e não se repetisse no resto do país. A imprensa, praticamente, não se referiu aos casos do comerciante enforcado e do que teve a cabeça esmagada a golpe de pedra, porque atirou contra o povo. [9]
Durante o gabinete de Brochado da Rocha, Jango manobra com a ameaça de uma nova greve geral política e a ameaça de um golpe de Estado apoiado nas alas “nacionalistas” das Forças Armadas para pressionar o Congresso a aceitar a realização do plebiscito que reinstalaria seus plenos poderes através do presidencialismo. Em tal manobra, pedia poderes especiais ao Congresso para realizar suas “reformas de base”. Entretanto, ao mesmo tempo, negociava com a ala mineira do PSD, dirigida por Juscelino, Kubitschek (que projetava candidatar-se à presidência em 1965) um “acordo nacional” não só em torno do plebiscito, mas também para garantir uma mínima governabilidade junto ao Congresso. Acordo este que terminou atraindo inclusive setores da UDN.
A greve geral acontece no dia 15 de setembro de 1962, ainda que mais fraca que a anterior.Mas Jango já havia pactuado com o PSD o novo regime, em expresso na própria aprovação do plebiscito [10], 15 de setembro, que já trouxe consigo uma mudança no sistema de determinação do gabinete parlamentarista, no qual passa a ser o próprio Jango (e não o Congresso), quem determina o Primeiro Ministro.
A demonstração de forças da classe operária foi tamanha que a direção do CGT conseguiu impor outras conquistas, sob pena de não retomar as atividades. O presidente Goulart cedeu, e assim foram conquistadas a libertação dos grevistas presos, o apoio do governo para a sindicalização rural e a promessa de aumento do salário mínimo em janeiro de 1963.
Em setembro foi eleito o gabinete de Hermes Lima, mas na prática Santiago Dantas já se colocava à frente do novo governo, passando a articular com os EUA o que seria três meses depois o “Plano Trienal”.
Enquanto um amplo setor das classes dominantes apostava na possibilidade de disciplinar Goulart e aproveitar a autoridade do líder do PTB sobre o movimento de massas para controlar a situação; os setores golpistas, completamente céticos em relação a essa possibilidade, intensificam os preparativos para uma saída de força. Ao longo de 1962, se fortalecem o IPES e o IBAD como agências pró-imperialistas vinculadas aos militares da Escola Superior de Guerra (ESG) que militavam como um partido a serviço da propaganda, agitação e organização do golpe.
A linha de subordinação do movimento operário ao governo burguês de Goulart, implementada pela direção do CGT, não se apoiou na enorme demonstração de força das massas expressa nas duas greves gerais ocorridas para impulsionar uma política independente da burguesia, para resistir à ameaça golpista, responder às demandas democrático-estrutur ais como o problema da terra e da opressão imperialista e atender às demandas mais sentidas do proletariado. Pelo contrário, a direção do CGT dirigiu uma forte campanha de apoio a Jango e em defesa das “reformas de base” janguistas. É o que observamos no manifesto lançado pelo CGT após a vitória: “O caminho do plebiscito foi aberto e também ao presidente da República foram concedidas todas as condições para a constituição de um governo nacionalista e democrático”. A partir desse momento, isto é, desde que foi marcado o plebiscito para janeiro, as direções do CGT passam a colocar a campanha pelo voto “Não” ao parlamentarismo como centro da mobilização operária, ligando os operários à defesa das “reformas de base”.
O “Plano Trienal” de Celso Furtado e Santiago Dantas
O plebiscito vai ocorrer em 5 de janeiro de 1963. Mas este apenas consuma o processo que se iniciou com a definição do gabinete Hermes Lima, em setembro de 1962, e se consolidou com a viagem de Santiago Dantas aos EUA em dezembro deste mesmo ano: João Goulart expropriava a energia das massas e a colocava a serviço de, junto com o PSD, consolidar um novo pacto político com o governo norte-americano. Este novo pacto teve como bases estruturantes o Plano Trienal – um plano de austeridade monetária – e a indenização das empresas norte-americanas estatizadas (AMFORP e ITT) por Brizola mediante os valores exigidos pelas matrizes. Mas para que o Plano desse certo era necessário impedir que as greves continuassem pressionando pelo aumento dos salários, que serviam como pretexto para que a burguesia continuasse buscando aumentar seus lucros através do aumento dos preços, pressionando a inflação para cima. E isso só seria possível com a repressão aberta sobre as greves que continuavam crescendo em relação aos anos anteriores.
A campanha e o resultado do plebiscito mostraram não apenas o peso de Goulart sobre o movimento de massas, mas também o fato de que amplos setores burgueses e militares chegaram à conclusão, ao longo do período anterior, de que a volta do presidencialismo poderia ser uma forma mais segura de tentar conter as massas e sair dos impasses recorrentes em que os sucessivos gabinetes parlamentaristas se afundavam.
A resposta de Goulart à vitória obtida com quase noventa por cento dos votos é um verdadeiro “tapa na cara” de todos aqueles setores que insistem em embelezar o herdeiro de Vargas e suas intenções “progressistas”. É também uma resposta típica de um governo burguês que utiliza a mobilização das massas sem nunca querer romper seus laços de dependência com o imperialismo. É assim que Goulart empreende um novo giro à direita, conclamando o PSD a integrar o governo e lançando o Plano Trienal de Celso Furtado, que significava um plano de estabilização baseado no ataque às condições de vida das massas; e utilizando seu prestígio popular renovado para também fortalecer seus laços com os EUA. [11]
O movimento operário, no entanto, ao contrário de recuar, recrudesce sua mobilização com greves totais de aeroviários, estivadores e centenas de greves parciais que praticamente paralisam a economia do país na primeira metade de 1963.
Em 11 de maio de 1963, é organizado um comício com 1.500 pessoas envolvendo sargentos das três armas, membros do CGT, da FPN e da UNE. Um general da reserva (Alceu Jovino Marques) e o subtenente Gelsy Rodrigues Correa, que fez um pronunciamento radical pelas reformas de base, são presos após o evento. A essa altura a divisão entre o alto mando e a sub-oficialidade se agudiza. Gelsy afirmou então:
A elite reacionária que não abre mão de seus privilégios e que infelizmente está infiltrada em todos os setores da administração do país, como conseqüência da política de conciliação que com as forças imperialistas (..) que nos é imposta pelo atual governo, já se articula contra nós e alguns dessa elite têm a ousadia de tentar nos apresentar ao público como perturbadores da ordem.
Nesse primeiro semestre de 1963, Goulart tentava se apoiar na criação da Unidade Sindical dosTrabalhadores (UST) para diminuir o peso político do CGT. Outra manobra que ilustra sua política, para a qual nem mesmo a direção stalinista, que vinham colaborando com as suas políticas era suficientemente “confiável”. A manobra carecia, no entanto, de base política, dividido que estava o movimento sindical em torno de posições muito mais polares. Isso obriga Goulart a recuar dessa política poucos meses depois e garantir o apoio imediato das Confederações Sindicais ligadas ao CGT.
A queda do gabinete Furtado-Dantas: um primeiro “giro” de Jango para apoiar-se em maior medida sobre o movimento de massas
Em junho de 1963 eclode uma forte greve dos transportes aéreos após a demissão de um comandante que era presidente da Federação Nacional dos Aeroviários e dirigente do CGT. A demissão era política, após este haver defendido a estatização de todas as empresas brasileiras de transportes aéreos. Os trabalhadores conseguem o apoio do ministro do Trabalho (Almino Afonso) e saem vitoriosos.
No mesmo mês, Celso Furtado e Santiago Dantas renunciam após desmoralização de seu “Plano Trienal” que não conteve a inflação de mais de 25% nos primeiros cinco meses de 1963. Almino Afonso também sai. A raiz dessas mudanças está em que, se por um lado Goulart utiliza o prestígio conquistado através do plebiscito para implementar uma política de austeridade contra as massas e tentar se aproximar do imperialismo; por outro lado, justamente porque o movimento operário cumpria um papel central na sustentação de seu governo, ele não foi capaz de implementar as medidas de repressão às greves que eram necessárias para desindexar a economia (interromper a cadeia de aumento de salários e preços que pressionavam para cima a inflação), e por isso levou à falência o Plano Trienal. Jango nega-se a reprimir abertamente sua base de apoio no movimento de massas (restringindo- se a apoiar a repressão sobre setores de vanguarda), e o Plano Trienal vai à falência em meio às denúncias de Brizola contra a AMFORP e a ITT, que impediram Jango de cumprir suas promessas de indenizações às matrizes destas empresas nos EUA.
Com a falência do Plano Trienal, os preparativos para o golpe militar, tanto do ponto de vista interno quanto externo, dão um salto de qualidade. As frações golpistas da burguesia, que em 1961 eram extremamente reduzidas, ampliam-se e consolidam novas posições, avançando inclusive sobre setores até então janguistas. O imperialismo norte-americano, que nos dois anos anteriores já vinha introduzindo no país verbas para financiar as alas golpistas da burguesia, armamento e inclusive “boinas verdes”, com a falência do Plano Trienal e a queda do gabinete de Furtado e Dantas acentuam em grande medida seus distintos tipos de “ajuda” e endurecem a relação com o governo brasileiro. É aqui que acaba de se definir a posição imperialista favorável ao golpe, aplicandose a tática de acordos diretos com governos e prefeituras dispostos a colaborar com a contra-revolução.
Como resultado, ainda em junho, Goulart procura empreender um duplo movimento: põe um gabinete de centro, incluindo um grande burguês paulista e ex-governador de SP como Carvalho Pinto na pasta da Fazenda: mas passa ao mesmo tempo a apoiar-se em maior medida sobre o movimento de massas para barganhar em melhores condições com os EUA. Este “giro” se expressa na implementação de lei que restringia a remessa de lucros para o exterior por parte das multinacionais, provocando a interpelação de certa forma humilhante da embaixada norte-americana para que a lei não fosse regulamentada. Jango também instala a CPI que passaria a investigar o IBAD, e busca suspender as operações desta organização baseando-se em acusações de corrupção a parlamentares.
Nesse período, em 23 de agosto, Jango realiza um comício no centro do Rio de Janeiro em homenagem ao nono aniversário do suicídio de Getúlio Vargas junto com o CGT e outras organizações populares, reunindo cerca de 10 mil pessoas. De conjunto, a manifestação expressou a insatisfação popular que já então existia com respeito à demora do governo para implementar as reformas de base, assim como o descontentamento geral com as condições de vida que se agravavam, inclusive com a nova escalada inflacionária sobre os gêneros de primeira necessidade. No entanto, a direção do CGT, ao mesmo tempo em que buscava canalizar tal insatisfação, com faixas contendo dizeres como “Jango, o povo votou no presidencialismo, chega de vacilações” e “O povo quer reformas ou fará a revolução”, [12] não oferecia qualquer caminho independente para omovimento operário.
A rebelião dos sargentos e a greve dos 700 mil: novas demonstrações de força das massas traídas pelo PCB
A “rebelião dos sargentos” iniciou-se para garantir a posse dos sargentos nacionalistas eleitos em 1962 e proibidos de assumir por artigo da Constituição de 1946. No dia 11 de setembro o STF sanciona a proibição. No dia 12 o CGT lança manifesto chamando “estado de alerta”. No dia seguinte, explode uma sublevação de sargentos daMarinha e da Aeronáutica no Distrito Federal, que tomam o edifício do Ministério da Marinha, uma estação telefônica, a central telegráfica e os aeroportos civil e militar. O Exército do DF não adere e suas tropas de confiança conseguem retomar o ministério, com o saldo de um militar e um civil mortos.
No mês de outubro ocorre a última grande greve da classe operária urbana antes do golpe de abril. A greve dos 700 mil é resultado da unificação das campanhas salariais de diversas categorias, principalmente operários da alimentação, químicos e metalúrgicos, mas também têxteis, marceneiros, calçadistas, entre outras categorias. Era um desafio à legislação trabalhista e à tradição corporativa que impediam negociações coletivas dessa espécie.
A patronal encara o movimento, desde o começo, como uma batalha de classe. Seu órgão, a Fiesp, se recusa a negociar conjuntamente, apesar da intervenção do Ministério do Trabalho favorável à reivindicação dos trabalhadores. Como resposta ao impasse, em 29 de outubro deflagra-se a greve envolvendo cerca de 700 mil operários na capital e em 40 cidades do interior paulista. O movimento paredista englobava 80 sindicatos representando 11 categorias operárias.
Mais de mil trabalhadores são presos. Com enorme pressão da patronal e do governo paulista, no dia 31 de outubro oTribunal Regional doTrabalho (TRT) manifesta-se contrário aos trabalhadores. A greve só termina, no entanto, em 4 de novembro, com um reajuste médio de 80% para todas as categorias envolvidas na mobilização, além da garantia de liberdade para os grevistas presos.
A rebelião dos sargentos demonstrou a disposição de setores das bases da Aeronáutica e da Marinha de se enfrentarem ao alto-comando e com as instituições do regime por suas reivindicações elementares e democráticas, como o direito de votarem e serem votados. A greve dos 700 mil demonstrou a disposição da classe operária paulista em unificar suas fileiras em torno de reivindicações comuns.
O PCB foi o responsável pelo isolamento dos sargentos, impedindo que o “estado de alerta” convocado no dia 12 de setembro se transformasse em uma greve geral em solidariedade aos rebelados, e articulando o desmonte da greve junto com Goulart com a promessa de envio para o Congresso de projeto de lei regulamentando a elegibilidade dos sargentos; o que vai ser concretizado no comício de 13 de março de 1964, sob a condição de que o sargento entrasse para a reserva, conforme aceitava o próprio alto-comando das Forças Armadas. A direção stalinista impediu que a greve dos 700 mil se transformasse em uma greve geral nacional, e que elevasse seu patamar de reivindicações econômicas para um patamar de reivindicações políticas, colocando a classe operária como sujeito da resistência ao golpe militar que era preparado de forma cada vez mais explícita.
O estado de sítio: uma tentativa de um golpe bonapartista
Em outubro de 1963, Goulart tenta elevar-se sobre as distintas classes sociais e frações de classe em luta, através do pedido de estado de sítio ao Congresso, o qual deveria lhe delegar poderes especiais. Com esta medida, Jango busca fortalecer-se como árbitro dos conflitos em jogo, apoiando-se mais diretamente sobre as Forças Armadas (ou pelo menos nos setores não udenistas das mesmas). A tentativa é completamente fracassada. Desde a UDN civil e militar até Brizola ou o PCB se contrapõem ao estado de sítio ambos os lados desconfiados das intenções de Jango. O CGT chega a ameaçar a deflagração de uma greve geral em resposta a isso, caso a medida fosse decretada. Dentro das próprias Forças Armadas, Jango percebe que sua política sofreu resistências, já expressando as novas posições conquistadas pelos golpistas após sua derrota em 1961. Em duas semanas, Goulart chega duas vezes a decidir pelo estado de sítio, mas recua em ambas as oportunidades com medo de radicalizar ainda mais os ânimos à esquerda e à direita.
A política de “Frente Ampla” e a linha dos comícios: um segundo “giro” de Jango para apoiar-se em maior medida sobre o movimento de massas
Com o fracasso da tentativa de estado de sítio, Jango busca constituir uma frente (conhecida como “Frente Ampla”) que abarque desde Brizola e o PCB até setores do PSD para pressionar o Congresso a favor das chamadas “reformas de base” (neste momento ainda mais parciais, pela busca de aliança com setores do PSD); e em caso de resistência ou novas tentativas de golpe da UDN civil e militar em aliança com o imperialismo, ter base social e programa em uma eventual nova tentativa de golpe de estado bonapartista como a tentada em outubro. Esta política teve como base a plataforma que ficou conhecida como “Frente Ampla” e se apoiou na tática de comícios de massas realizados por todo o país, dentre os quais o do dia 13 de março, que foi o primeiro de grande magnitude, e cuja série culminaria com um grande comício no dia internacional do trabalhador, o 1º deMaio. Em 13 de março 200 mil pessoas lotaram a Praça da República e a Central do Brasil, no RJ. Goulart anuncia a estatização de todas as refinarias de petróleo e a desapropriação de terras à margem de estradas e açudes federais, além de medidas de reforma urbana, eleitoral e universitária.
O PCB, que desde a posse de Jango em setembro de 1961 vinha se localizando como “conselheiro pela esquerda” do governo, mas reservandose uma postura crítica que lhe permitisse manter minimamente sua autoridade junto aos setores de vanguarda da classe operária diante das políticas mais de direita de Jango, a partir de dezembro de 1963, muda qualitativamente de localização: passa a sustentar mais abertamente João Goulart, incluindo conversações diretas com o presidente e seus assessores e até mesmo uma entrevista de Prestes apresentando Jango como o futuro Fidel brasileiro. Brizola tardou a entrar na frente, e ainda assim quando o fez localizava-se com uma postura mais crítica em relação a Jango do que o PCB, o que terminou fazendo com que aglutinasse em torno de si setores do movimento operário e camponês descontentes com o nível de subordinação do PCB a Goulart.
A rebelião dos marinheiros: a última demonstração de força das massas, mais uma vez traída pelas direções
Como explicamos em maiores detalhes na parte deste artigo que trata especificamente dos marinheiros, em 25 de março de 1964, diante da prisão dos dirigentes de sua Associação, os marujos revoltados abandonaram os navios e repartições e se concentraram aos milhares no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. A única opção que as direções tiveram para conter a disposição de revolta das bases que queriam arrancar seus dirigentes da cadeia pela força foi fazer votar que os marinheiros ali concentrados se declaravam em assembléia permanente até que os presos fossem libertados. O grau de influência dos marujos se expressou no fato de que os fuzileiros navais de elite enviados para debelar a manifestação, ao chegarem à frente do sindicato, baixaram as armas e aderiram à assembléia. Aqui, mais uma vez, a direção da Associação, profundamente influenciada pelo PCB, negociou com o governo Jango algumas concessões parciais ao movimento – como a queda do ministro golpista que havia efetuado as prisões e a nomeação de um ministro ligado ao janguismo – e uma libertação paulatina dos presos que não desmoralizasse as Forças Armadas e permitisse o destencionamento gradual da situação. O PCB teve a política criminosa de deixar os marinheiros isolados, negando-se a convocar uma greve geral em solidariedade. Através do CGT, mais uma vez ameaça com greve geral em 28 de março, mas não a concretiza e em seguida recua.
O golpe: uma derrota anunciada
Em 30 de março ocorre a reunião no Automóvel Clube do Rio, na qual Goulart discursa para os sargentos. A rebelião dos marinheiros, somada ao discurso de Goulart para os sargentos é o pretexto final para o golpe militar, desencadeado entre 31 de março e 1° de abril.
Desde a derrota do golpe em 1961, a UDN civil e militar, através do complexo Ipes-Ibad, conseguiu realizar um eficiente trabalho de cooptação e corrupção não só dos altos comandos, mas também da alta e média oficialidade das Forças Armadas, utilizando tanto o financiamento norteamericano como a propaganda anticomunista. O recrudescimento da luta de classes e a opção de Goulart em apoiar-se em maior medida sobre o movimento de massas fez com que os setores das classes dominantes e das cúpulas militares, que em 1961 se colocaram contra o golpe, passassem de malas e bagagens para o udenismo golpista. A explosão inflacionária, combinada com a propaganda ideológica udenista, mobiliza um importante setor das classes médias ao redor das bandeiras contra-revolucioná rias, o que se expressou na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” que ocorreu no dia 19 de março reunindo 500 mil pessoas em São Paulo, e em 2 de abril reunindo 1 milhão no Rio de Janeiro.
Para o movimento final, em março de 1964, os EUA expediram para o Brasil, na operação que ficou conhecida como Brother Sam, um porta-aviões, destróieres de apoio, dentre os quais um com mísseis teleguiados, navios carregados de armas e mantimentos, assim como quatro petroleiros com combustível para jatos, gasolina de avião, óleo diesel e querosene; sete aviões de transporte, 110 toneladas de armas, oito aviões de caça, oito aviõestanque etc. Segundo seus próprios depoimentos, os golpistas se preparavam para uma resistência que poderia durar até 30 dias.
Quando o golpe foi deflagrado, o “dispositivo militar” de Goulart, composto pelos militares supostamente “nacionalistas”, não respondeu. Em estados onde os altos comandos ainda se mantiveram formalmente fiéis ao presidente, a alta e média oficialidade não responderam. A única exceção significativa foi o Rio Grande do Sul, onde setores importantes do III Exército se dispuseram a resistir mediante ordem do presidente, ainda que agora esta arma se encontrasse significativamente mais dividida que em 1961. O CGT convoca uma greve geral, mas seus principais dirigentes são rapidamente presos, os principais sindicatos sofrem intervenção, e apesar de terem se iniciado paralisações de protesto em algumas categorias, estas não conseguem resistir à repressão. A greve chega a ser deflagrada em algumas categorias importantes, como ferroviários de SP, portuários de Santos, ferroviários, portuários, metalúrgicos e têxteis do RJ, mas rapidamente é derrotada.
Goulart optou por acovardar-se e exilar-se no Uruguai, mesmo rumo que seguiu Brizola.
Capitani, um dos principais dirigentes da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, assim relata os últimos momentos do golpe:
As primeiras unidades de fuzileiros em retirada encontraram- se com os marinheiros reunidos no Ministério (...) O silêncio transformou- se num grito geral. – Vamos lutar, não vamos nos entregar! (...) Eram gritos misturados a um choro generalizado. Eu também estava chorando e nem percebia. Na minha frente, os marujos, chorando, gritavam: – Capitani, vamos lutar, vamos resistir, vamos morrer juntos! Subi num pequeno cepo de ferro e gritei: – Vamos lutar! Nesse momento, Aragão chegou trazendo o restante dos fuzileiros em retirada, acompanhado por um grupo de sargentos, dos quais muitos eram meus conhecidos. Percebendo o impasse, disse: – Capitani, não faça isso. Perdemos a batalha, mas não a guerra. Vai ser um massacre! – Almirante, nós vamos lutar. O grupo de sargentos rodeou-me. – Vamos até o Comando, discutimos a situação e traçamos um plano – diziam. Fui empurrado para dentro do carro, junto com Aragão. Ele e os sargentos estavam quietos, olhando para o vazio. Percebia que todos choravam e que, mesmo à beira de uma explosão emocional, a disciplina militar reprimia tudo. Sequei as lágrimas e tentei me recompor. (...) Quando chegamos ao comando do Corpo de Fuzileiros, Aragão disse: – Tu ouviste as notícias e as informações. O presidente nos abandonou. Entregou tudo, está no Uruguai ou dirigindo-se para lá. Brizola deverá acompanhá-lo em seguida. Sem o presidente é impossível qualquer resistência. Ficamos sós. Não vou te deixar sair daqui, tu vais levar todos à morte. (...) – Capitani, vai ser um banho de sangue – falou um sargento. Tentei argumentar que se começássemos um movimento poderíamos desencadear uma resistência em outros lugares. Outro sargento falou: – Não sem o presidente. O povo está desmobilizado e desorganizado. Os sindicalistas que deveriam comandar a mobilização sumiram e nem vieram buscar as poucas armas que colocamos à disposição. (...) Eles estavam certos. Perguntei: – O que vamos fazer? – Manda um bilhete, um recado para os marinheiros pedindo que voltem às suas unidades. Diz que perdemos a batalha e não a guerra – repetiu. (...) De uma janela do Corpo de Fuzileiros, vimos a massa de marinheiros, lentamente, subindo para os barcos e dispersando- se em várias direções. [13]
[1] V. I. Lenin, “La celebración del 1º deMayo por el proletariado revolucionario” (15 de junio de 1913).Obras Completas, T XIX, pág. 461 y ss. Editorial Cartago, Buenos Aires, 1969.
[2] Lúcio Flávio de Almeida, Uma ilusão de desenvolvimento, Editora da UFSC, 2006. Luiz A. Moniz Bandeira, A Renúncia de Jânio Quadros / O Caminho da revolução brasileira, Editora Brasiliense, 1976.
[3] Desde o início da crise, os Estados Unidos tinham manifestado uma posição ambígua na qual, enquanto a CIA e o Pentágono apoiavam o movimento golpista, a Casa Branca e o Departamento de Estado posicionaram- se contra, chegando a ameaçar a interrupção de qualquer ajuda financeira ao Brasil caso fosse quebrada a ordem constitucional no país.
[4] Amir Labaki, 1961: A crise da renúncia e a solução parlamentarista, Editora Brasiliense, 1986.
[5] A BrigadaMilitar do Rio Grande do Sul, uma força policial que tinha de 10 a 12 mil homens, entrou em estado de alerta. A partir do dia 26, ao redor do Palácio Piratini foram levantadas barricadas com sacos de areia e metralhadoras foram postadas nas janelas e nos telhados. Muniz também afirma que Brizola deu ordem à fábrica de revólveres Tauros para trabalhar ininterruptamente na produção de armas, inclusive metralhadoras. Luiz A. Moniz Bandeira, A Renúncia de Jânio Quadros / O Caminho da revolução brasileira, Editora Brasiliense, 1979. Amir Labaki, 1961: A crise da renúncia e a solução parlamentarista, Editora Brasiliense, 1986.
[6] Buscando “pintar” Brizola de mais “vermelho” do que de fato foi, Muniz Bandeira relata que foram distribuídos cerca de 2 mil revólveres calibre 38, cada um com uma caixa de balas, mediante assinatura de um recibo, ressaltando que desde a Revolução Mexicana de 1911 um líder burguês não distribuía armas à população como fazia Brizola naquele momento. Labaki. Por sua vez, explica que estes revólveres foram distribuídos apenas para assessores políticos e jornalistas de estrita confiança do governo, o que parece mais coerente dado seu reduzido número em relação às massas que estavam dispostas a resistir. Luiz A. Moniz Bandeira, Opt. cit.. Amir Labaki, Opt. cit.
[7] Labaki tambémrelata que, frente à possibilidade de falta de armamentos em caso de um enfrentamento militar, no prédio da secretaria do Trabalho e da Habitação, com a autorização do governo e com a participação de líderes sindicais, foram fabricadas milhares de bombas caseiras (coquetéis Molotov). Amir Labaki, Opt. cit..
[8] O Conselho das Classes Produtoras (CONCLAP), um dos principais organismos das elites mais conservadoras do país, reuniu-se e, por 31 votos contra 1, manifestou-se pela posse de Goulart. Durante a crise, com o passar dos dias, a maioria dos governadores se pronunciaram pela posse de Jango.
[9] Luiz A. Moniz Bandeira, Opt. cit..
[10] No próprio dia da greve, 15 de setembro, o Congresso marcou o plebiscito para janeiro do ano seguinte, recuando da linha anterior de fazê-lo apenas depois do governo de João Goulart, em 1965.
[11] Foi assim que, no início do mesmo ano (1963), os ministros Santiago Dantas e Roberto Campos vão a Washington e recuam da possibilidade de nova moratória sobre o FMI. Seu raciocínio, segundo revela uma troca de cartas entre ambos, é que na situação política então existente tal medida só poderia ser tomada baseando-se em forte mobilização das massas, mas que estas não aceitariam o restante do programa de austeridade governamental, o qual incluía o congelamento salarial e contingenciamento de trigo e combustível.
[12] Jornal O Estado de São Paulo, de 24/8/63.
[13] A Avelino Capitani, Opt. cit., Editora Expressão Popular, p. 82-84.
PARTE III

Programa, estratégia e partido
“Os países coloniais e semicoloniais são, por sua própria natureza países atrasados. Mas estes países atrasados vivem nas condições da dominação mundial do imperialismo. É por isso que seu desenvolvimento tem um caráter combinado: reúnem ao mesmo tempo as formas econômicas mais primitivas e a última palavra da técnica e da civilização capitalista. Isso é o que determina a política do proletariado dos países atrasados: está obrigado a combinar a luta pelas tarefas mais elementares da independência nacional e da democracia burguesa com a luta socialista contra o imperialismo mundial. As reivindicações democráticas, as reivindicações transitórias e as tarefas da revolução socialista não estão separadas na luta por etapas históricas mas surgem imediatamente umas das outras.” (Trotsky, Programa de Transição, 1938).

Os ideólogos stalinistas, assim como ex-stalinistas que não foram capazes de romper completamente com sua tradição, trataram de difundir a interpretação de que o golpe militar foi vitorioso porque as massas não foram capazes de resistir. Não só trataram de diminuir e esconder o potencial revolucionário do processo que antecedeu o golpe, mas inclusive caracterizaram as ações das massas, que se confrontavam com as classes dominantes em uma perspectiva independente, como ultra-esquerdistas e supostamente úteis à articulação do golpe. Pela inexistência de uma direção revolucionária que questionasse essa interpretação, ela influenciou profundamente as idéias da esquerda até os dias atuais, constituindo- se num obstáculo para que a vanguarda da classe operária tire conclusões revolucionárias de uma das principais experiências de luta de classes em toda a história do país.
Como buscaremos demonstrar a seguir, um balanço marxista do processo em questão não surgiu no bojo do próprio golpe, quando as direções operárias que se localizavam à esquerda do PCB, de uma forma ou de outra, terminaram adaptando-se ao nacionalismo burguês; não foram parte dos grupos guerrilheiros que se enfrentaram contra a ditadura militar, ainda que neste momento os inúmeros stalinistas renegados desgarrados da degeneração do “Partidão” e suas adjacências buscassem por distintas vias criticar sua “matriz original”; e tampouco surgiu frente ao ascenso operário de fins dos anos 70 e que percorreu toda a década de 80, nem mesmo pelas mãos das novas correntes trotskistas que nestes anos se constituíram e adquiriram influência.
1.UMA POLÍTICA OPERÁRIA INDEPENDENTE FRENTE AO GOLPE DE 64
O primeiro erro no qual em geral se recai ao analisar o golpe de 64 é separar os acontecimentos imediatamente precedentes ao dia 31 de março deste ano do período precedente. Desde o ângulo específico das vésperas do golpe, o PCB, através do CGT, de fato convocou uma greve geral, convocação esta que não foi atendida pelas massas. Mas, como procuramos demonstrar na análise do conjunto do processo, esta foi uma derrota anunciada. Para avaliar corretamente o papel cumprido pelo PCB, é necessário partir de sua atuação, como mínimo, desde o momento em que se abriu uma situação pré-revolucioná ria no país.
Pelo menos desde a posse de Jânio Quadros, em janeiro de 1961, frente aos nítidos movimentos de setores dominantes mais diretamente ligados à UDN civil e militar no sentido de preparar um golpe de Estado bonapartista de direita, já era necessário começar a organizar milícias operárias e camponesas para resistir à ameaça golpista, como fizeram as Ligas Camponesas. Da mesma forma, como meio de desmascarar frente às massas os setores supostamente “nacionalistas e democráticos” da burguesia e das Forças Armadas ligados a Jango e Brizola, era necessário exigir destes que fornecessem armas para a organização das milícias populares que deveriam resistir ao golpe. Entretanto, o PCB fez exatamente o contrário. Conseqüente com sua linha, desde 1954, de compor uma aliança estratégica com o trabalhismo, apoiou o governo de JK e assumiu de forma cada vez mais orgânica o programa das “reformas de base” e a estratégia de implementá-las pela via eleitoral, conquistando espaços no Estado burguês; além de ter atuado como “conselheiro de esquerda” do governo de Jânio.
Frente à crise nacional aberta com a renúncia de Jânio Quadros, que incluiu certo vazio de poder causado pela incapacidade dos ministros militares de consolidar o golpe, estavam colocadas as condições e a necessidade de lutar por um governo provisório das organizações operárias (intersindicais combativas, CGG) e camponesas (Ligas Camponesas, Ultab) em luta. A luta por um governo deste tipo deveria estar ligada: 1) à luta pela formação de milícias de operários junto aos sindicatos, e de camponeses, junto às Ligas para resistir ao golpe, chamando operários e camponeses a se solidarizaram com as bases das Forças Armadas rebeladas e exigindo que todo militar ou direção burguesa que se colocava contra o golpe repartisse armas à população. 2) À luta por um programa operário independente que respondesse às demandas mais sentidas pelo movimento de massas numa perspectiva independente da burguesia (tanto do programa da UDN quanto das “reformas de base” janguistas), que tivesse como pontos centrais: a expropriação do latifúndio e repartição das terras entre os camponeses pobres, principalmente das terras mais produtivas, sob controle dos próprios camponeses, com crédito barato do Estado para financiar sua produção; o reajuste automático dos salários de acordo com o aumento do custo de vida, com um salário mínimo capaz de atender as necessidades básicas de uma família; e a estatização sem indenização e sob controle dos trabalhadores das grandes indústrias e empresas de serviços essenciais à população. 3) À luta por uma Assembléia Constituinte Revolucionária, sob as ruínas do regime então vigente, da qual participassem todas as organizações operárias e camponesas, proporcionalmente ao peso social real que estas têmna sociedade, que ajudasse as massas a superar suas ilusões na democracia burguesa. 4) À luta para que se desenvolvessemconse lhos (soviets) de operários, camponeses e soldados, com delegados eleitos com mandatos revogáveis por local de trabalho, para conformar um governo baseado na democracia direta das massas.
Entretanto, o PCB atuou de modo a colocar a classe operária e o movimento camponês a reboque da burguesia janguista. O programa máximo do PCB no auge da crise foi a posse de João Goulart. Para tal, buscou uma aliança com todas as forças políticas burguesas e militares “nacionalistas” que se colocaram contra o golpe. Seu papel na greve geral que se estendia por todo o país e seu chamado à formação de “comitês de resistência democrática” nas fábricas, escolas e bairros estava a serviço desta política. No dia 1º de setembro de 1961, em pleno auge da crise, o PCB declarava:
Somente o povo unido e organizado poderá apoiar eficazmente as autoridades e as forças militares que se mantêm fiéis à democracia (...) Contra os golpistas, em defesa da Constituição e pela posse imediata de João Goulart, realizemos por toda parte comícios, manifestações e passeatas, tornemos efetiva a greve geral, paralisemos o trabalho nas fábricas, nas empresas, nas repartições e nas escolas! [1]
Junto com a burguesia e os militares “nacionalistas”, com os quais buscou se aliar pela posse de Jango, o PCB, ao desmontar a greve geral em curso, terminou atuando em favor da conciliação com os golpistas, que culminou na diminuição dos poderes de Goulart através da emenda parlamentarista. No dia 1º de setembro o PCB dizia:
Qualquer solução que restrinja ou anule os poderes do presidente significaria uma concessão inadmissível ao grupo militar reacionário, cuja intenção é manter o poder executivo sob sua tutela, pisoteando a vontade livremente expressa da nação. (...) Os comunistas denunciam energicamente à classe operária e ao povo a infame tentativa de conciliação com o grupo golpista reacionário, contida na proposta de emenda parlamentarista. [2]
Entretanto, no próprio dia da votação da emenda parlamentarista, 4 de setembro, declara:
O povo brasileiro tem justos motivos para festejar na posse do sr. João Goulart uma vitória do seu bom combate pela democracia e contra o golpe. Certamente que as massas estarão nas ruas de todo o país para festejar esse triunfo contra a reação e a ditadura. Mas também para dizer que exigem do novo governo – afastados e exemplarmente punidos os cabecilhas do golpe – uma firme política independente e progressista, de respeito às liberdades e aos direitos dos trabalhadores. [3]
Ou seja, o PCB, ao desmontar a greve geral e canalizar a energia das massas para exigir a punição dos chefes golpistas, por um governo que surgiu da conciliação com os próprios golpistas, não só participa ativa e vergonhosamente da saída parlamentarista para a crise aguda que estava aberta, mas dava seu “aval” para que as conspirações golpistas continuassem sendo articuladas impunemente.
Brizola cumpriu o eficaz papel burguês de desmobilizar as massas levantadas do Rio Grande do Sul e o III Exército que, segundo suas próprias palavras, estavam dispostos e preparados para marchar com 90 mil homens armados sobre Brasília para fechar o Congresso dirigido pela UDN e pelo PSD e convocar uma Assembléia Constituinte em 60 dias. O PCB cumpriu o eficaz papel traidor de desmontar a greve que se alastrava por todo o país. Ambos, juntos, desviaram a energia combativa das massas para uma política de pressão “pela esquerda” ao novo governo.
Com a posse de Jango, mediante a implementação do regime parlamentarista, de setembro de 1961 a março de 1964, como sintetizamos acima, o país viveu fluxos e refluxos de uma etapa revolucionária. Durante todo este período, era possível e necessário formar milícias populares para resistir ao golpe militar, alimentando a confraternização das massas com as bases das Forças Armadas rebeladas. Quanto mais avançava a preparação do golpe aos olhos de todos, mais a exigência a Jango, Brizola e os militares “nacionalistas e democráticos” para que repartissem armas ao povo, adquiria o poder de desmascarar as direções nacionalistas burguesas entre as massas. O desgaste do Congresso junto à população, emfunção da resistência à delegação de plenos poderes para JoãoGoulart ou da resistência a suas “reformas de base” colocava em primeiro plano a luta por uma Assembléia Constituinte Livre e Soberana, que discutisse os problemas estruturais do país como a reforma agrária e a dominação imperialista. Esta luta teria um enorme potencial para organizar asmassas ao redor de umprograma independente de todos os setores da burguesia, ajudando-as a perceber que o poder da burguesia reside não no parlamento e sim nas forças econômicas e militares, alentando assim o desenvolvimento de milícias populares e organismos de tipo soviético. O contínuo ascenso de greves e lutas no campo e as recorrentes rebeliões nas bases das Forças Armadas colocavam a possibilidade e a necessidade de formarem-se conselhos de operários, camponeses e soldados com delegados eleitos e revogáveis por assembléias nos locais de trabalho, levantando as bases de um governo baseado na democracia das massas.
No entanto, como demonstramos ao longo deste artigo, o PCB, durante todo este período foi um instrumento a serviço da burguesia (e por esta via do imperialismo) para conter a espontaneidade e a ação independente do proletariado, das massas camponesas e das bases rebeladas das Forças Armadas, canalizando- a para as ilusões do reformismo nacionalista burguês; e, nos momentos em que esta espontaneidade ultrapassava os limites impostos pelo PCB e explodia em ações independentes de luta de classes, a direção stalinista era o “bombeiro” da burguesia, responsável por isolar, desviar e com isto trair cada um destes processos.
Neste marco, ao avaliar a ausência de grandes derramamentos de sangue no dia 31 de março de 1964, só a mais irônica hipocrisia stalinista pôde transformar uma das maiores traições da história da luta de classes em nosso país em uma suposta “falta de disposição” das massas para resistir. O sangue que não foi derramado naquele dia, com a conivência do PCB, jorrou nos anos anteriores [4] e posteriores ao golpe, junto com o suor da hiperexploração com a qual a ditadura esmagou o proletariado e cimentou o “milagre econômico”. É nestes termos que devemos reeducar a vanguarda da classe operária brasileira.
Após o golpe, como não poderia ser diferente, não foram poucas as críticas que surgiram ao PCB, em grande parte de setores desgarrados do próprio stalinismo que rumaram para as guerrilhas, e também por setores exilados. Algumas destas críticas chegaram a abarcar aspectos importantes do que desenvolvemos aqui, como a necessidade do PCB de ter organizado a resistência armada das massas ao golpe militar, sem entretanto combinar este problema com a necessidade da independência política e organizativa em relação ao nacionalismo burguês e, obviamente, nem falar de organismos de tipo soviético. Os mesmos militantes que constituíram as guerrilhas e se organizaram em pequenos destacamentos armados isolados das massas para tentar resistir aos milicos em fins dos 60 e inícios dos 70, diante da crise da ditadura militar e das greves massivas de 78-80, não lutaram pela formação de milícias operárias ligadas aos sindicatos e às comissões de fábricas para derrubar os milicos pela via insurrecional; revelando (agora na prática, e não como “balanço crítico”) que no fundo nunca chegaram a superar a matriz stalinista, o reformismo armado destes foi apenas uma carapaça ultraesquerdista que escondia “pela esquerda” a política de conciliação de classes.
Ou seja, frente ao primeiro processo agudo da luta de classe após 1964, a “velha geração” agora “crítica” do stalinismo demonstrou na prática que não tirou as conclusões necessárias da experiência com o PCB nos anos 50-60. Mas não só ela.Tambéma “nova geração” [5] trotskista que surgia no calor deste mesmo processo – como era o caso das distintas correntes do movimento trotskista internacional (morenismo,mandelis mo e lambertismo) – semostrou incapaz de tirar essas conclusões, inclusive no que diz respeito à tradição trotskista precedente no país, repetindo muitos dos erros do passado.
Frente à crise da ditadura e as greves massivas de 78-80, nenhum destes setores foi capaz de lutar pela necessidade vital de formar milícias operárias para resistir à repressão dos milicos, exigindo da burocracia lulista que as organizasse, e com isso desmascarando- a aos olhos das massas, pois os “autênticos” temiam os piquetes e os operários armados mais do que a polícia. Nenhum setor desta “nova esquerda” lutou para que as comissões de fábricas, o fundo de greve e os comitês de bairros que surgiram após a repressão à greve de 1980 se coordenassem e se desenvolvessem como organismos de tipo soviético, como já vinha ocorrendo de forma embrionária em vários lugares, exigindo da burocracia lulista que se submetesse às decisões destes organismos, mais uma vez desmascarando- a aos olhos das massas, pois Lula declarava abertamente que estes organismos eram “perigosos” e deveriam ser “sufocados” ou “controlados”. Se não foram defendidas estas questões elementares, muito menos se travou uma luta para que as greves, que começavam por motivações econômicas e terminavam se enfrentando com o regime pelas duras leis de arrocho salarial e restrição à greve, se transformassem em greves diretamente políticas e insurrecionais pela derrubada da ditadura.
Pelo contrário, sejam os setores desgarrados do velho Partidão ou os “novos” trotskistas, todos terminaram seguindo a direção lulista que, com um programa rebaixado e corporativo, isolava os trabalhadores mais avançados e em luta do conjunto da massa de trabalhadores do país e os impedia de travar uma luta independente pela derrubada da ditadura; que em conjunto com as alas “nacionalistas e democráticas” (“autênticos” do MDB) da burguesia que pactuavam com a ditadura uma transição “lenta, gradual e segura” para o capitalismo “democrático” e que iria culminar nas famosas “Diretas Já”.
Esta tradição petista – que não tirou as conclusões programáticas e estratégicas elementares do processo revolucionário que culminou no golpe de 64 e que no ascenso dos anos 70-80 incorreu em erros semelhantes aos da história do Partidão e do posadismo nos anos 50-80 – vai marcar até hoje a vanguarda do proletariado no país.
Daí a importância de abrir este debate junto à vanguarda da classe operária brasileira.
2. O TROTSKISMO NO BRASIL DE 1952 A 1964
Após a Segunda Guerra Mundial, com Trotsky já morto desde 1940, o movimento trotskista internacional não soube responder aos enormes desafios colocados pela luta de classes. Ao contrário do que Trotsky previa, o stalinismo não saiu derrotado e nem tampouco debilitado da Segunda Guerra, e sim enormemente prestigiado por ter colaborado na derrota dos exércitos nazistas, ainda que com uma política nefasta, que incluiu um pacto com Hitler durante a primeira fase da guerra, e custou a vida de milhões de trabalhadores e camponeses soviéticos. O avanço do Exército Vermelho sobre os países do Leste europeu como resultado da guerra e sua anexação à URSS deu novo gás à economia soviética. As revoluções que eclodiram em países semi-coloniais como a Iugoslávia e a China no pós-guerra, como subproduto do enorme debilitamento dos imperialismos Japonês e Europeu no conflito, e da pressão revolucionária das massas nestes países, por terem sido dirigidas por Partidos Comunistas, aumentaram o prestígio do stalinismo em todo o mundo, agora também nas vertentes de Mao e Tito.
Frente a estas condições, surgiu dentro do movimento trotskista internacional uma corrente, dirigida porMichel Pablo (e por isso conhecida como “pablismo” ou “pablista”), que revisou profundamente aspectos fundamentais da tradição de Trotsky no plano teórico e propôs na prática a liquidação do nosso movimento.
As revisões centrais de Pablo consistiram em conceber que, com o fortalecimento do stalinismo e o avanço do modo de produção econômico planificado em nível mundial no pós-guerra, o imperialismo, para restabelecer o equilíbrio capitalista, precisaria necessariamente avançar com métodos de guerra sobre os Estados operários deformados; ao mesmo tempo em que as massas da URSS, com seu desenvolvimento econômico e cultural, exerceriam uma pressão revolucionária sobre a burocracia do Kremlin, assim como as massas dos países coloniais e semi-coloniais exerceriam uma pressão revolucionária sobre os PCs em todo o mundo. E estas condições objetivas transformavam o caráter do stalinismo, pois a burocracia contrarevolucioná ria que precisava ser derrubada pelos métodos da Revolução Política nos Estados operários deformados passaria a ser uma burocracia extremamente débil e capaz de se auto-reformar e regenerar-se rumo ao socialismo [6]. De traidor da revolução mundial o stalinismo teria se transformado em aliado desta [7]. Os PCs, que em todo o mundo constituíam um instrumento a serviço do imperialismo e das burguesias nacionais a serviço de frear a revolução, teriam se transformado em partidos capazes de regenerar-se e dirigir a revolução. Segundo Pablo,
(...) os Partidos Comunistas dos países capitalistas encontram-se conseqüentemente em condições absolutamente diferentes daquelas dos tempos pré-guerra (...) Nos países onde os PCs constituem a maioria da classe operária, eles podem, sob a pressão das massas, ser levados a adotar uma orientação revolucionária contrárias às diretrizes do Kremlin, sem abandonar a bagagem teórica e política herdada do stalinismo. [8]
Coerente com esta revisão no plano teórico, na prática, Pablo e seus seguidores passaram a adotar uma linha de adaptação e capitulação cada vez mais aberta ao stalinismo em todos os planos. Desde o ponto de vista político-organizativ o, propôs a liquidação do trotskismo através da entrada das organizações trotskistas nos PCs em todo o mundo de forma indiscriminada e por tempo indeterminado, com a estratégia de influenciar sua direção (política que ficou conhecida como “entrismo sui generis”).
O impressionismo e o oportunismo de Pablo em relação ao fortalecimento do stalinismo não lhe permitiu enxergar que a relação entre o imperialismo norte-americano e o stalinismo era extremamente contraditória. Coexistia uma relação de competição que se expressava na Guerra Fria, com uma relação de colaboração que se expressava nos acordos de Yalta e Potsdam. Nesse sentido, o stalinismo, ao mesmo tempo em que era obrigado a alentar o desenvolvimento de lutas e fazer demagogia da revolução em etapas para manter seu prestígio entre as massas, constituía-se em um dos principais instrumentos a serviço do imperialismo e das burguesias locais para conter e desviar a revolução. Isso não excluía que, como o próprio Trotsky previu em 1938 [9], sob condições excepcionais de debilidade dos imperialismos derrotados na guerra, partidos stalinistas fossem obrigados a ir mais além do que queriam na expropriação da burguesia para não serem atropelados pelas massas, como ocorreu na Iugoslávia e na China.Mas o unilateralismo de Pablo lhe fez não querer ver que o boom econômico capitalista do pós-guerra, apesar de ser parcial e não ter um caráter orgânico na medida em que se baseava na reconstrução das forças produtivas destruídas pela própria guerra, chegou a desenvolvê-las em patamares superiores aos da época de livre competição pré-imperialista, contribuindo para a estabilização dos países centrais; que a destruição dos imperialismos japonês e europeu durante a guerra permitiu que os EUA se desenvolvessem como potência hegemônica em nível mundial; e que, como explicamos acima, os novos Estados operários deformados que surgiram, apesar de estimularem as massas em outros países e debilitarem o imperialismo, fortaleciam o prestígio do stalinismo, que o utilizava a serviço de trair novas revoluções. O impressionismo e o oportunismo de Pablo lhe impediram de ver que este conjunto de fatores estabeleceu um relativo equilíbrio capitalista de 1949 a 1968.
Nestas condições, era necessário guardar a mais completa independência política e organizativa em relação ao stalinismo, construindo partidos trotskistas que se preparassem para, frente aos futuros processos revolucionários, arrancar as massas da influência do stalinismo frente a suas grandes traições [10]. Mesmo nos países em que o stalinismo, pela pressão das massas, fosse obrigado a expropriar a burguesia e planificar a economia, era necessário reservar uma imperiosa independência política e organizativa para lutar, entre outras questões fundamentais, pelo desenvolvimento de organismos de tipo soviético e pela revolução internacional; luta esta que se daria necessariamente em confronto direto com o stalinismo.
O pablismo constituiu parte do que nós da Fração Trotskista - Quarta Internacional definimos como “centrismo trotskista de Yalta” [11]. Um importante setor do movimento trotskista resistiu ao revisionismo e ao liquidacionismo pablista. Entretanto, por distintos motivos, que extrapolam os objetivos deste artigo, os demais setores do movimento trotskista também não foram capazes de responder aos desafios colocados pela nova realidade do pós-guerra, revisando e distorcendo, desde distintos pontos de vista, a tradição trotskista. De conjunto, o centrismo de Yalta, que se dividiu em várias correntes, manteve poucos fios de continuidade com a tradição de Lênin e Trotsky. Neste artigo, caracterizamos sinteticamente a corrente pablista por ser esta a que dirigiu o trotskismo no Brasil durante toda a década de 50 e 60.
A inserção do pablismo no Brasil
Assim como no movimento trotskista internacional, no trotskismo brasileiro vai haver uma importante ruptura dos fios de continuidade entre a tradição que se constitui na década de 50 e a tradição formada nos anos 30 pela LCI e pelo POL comMário Pedrosa, Lívio Xavier e Aristides Lobo. Mário Pedrosa e com ele vários dos principais quadros da antiga LCI se afastam do trotskismo por divergências em relação à natureza de classe da União Soviética e à política de defesa do Estado operário degenerado frente ao ataque imperialista, aproximando- se das posições deMax Shachtman nos EUA quando este ficou exilado neste país a partir de 1939 em função da ditadura varguista [12]. Nesse sentido, o PSR de Hermínio Sachetta, [13] organização que reivindicou o trotskismo no Brasil na década de 40, já vai conter diferenças em relação ao trotskismo dos 30, expressas não só na mudança do elenco dirigente, mas também nas publicações. Às vésperas do III Congresso da IV Internacional, que ocorreu em agosto de 1951 na Europa, uma plenária do PSR explode e seus principais dirigentes, incluindo Sachetta, deixam de militar, restando apenas 4 militantes (antes dessa explosão estima-se que o PSR tinha de 25 a 30 militantes). Não se sabe ao certo as razões da desagregação do PSR. Algumas avaliações apontam para uma aproximação de Sachetta com as idéias de Pedrosa em relação à URSS; outras apontam para divergências de Sachetta em relação ao pablismo que naquele momento já influenciava amplos setores da IV com suas teses; e outras ainda apontam para uma ligação de Sachetta com Cannon nos EUA e NahuelMoreno na Argentina [14], que também se opunham ao revisionismo e o liquidacionismo pablistas.Mas nenhuma destas se confirma claramente através dos poucos documentos disponíveis [15].
Em meados de 1952, J. Posadas, principal representante de Pablo na América Latina, dirigente do Burô Latino Americano (BLA) do Secretariado Unificado (SU) da IV Internacional e dirigente do CGI na Argentina [16], enviou Guillermo Almeyra (pseudônimoManuel) para construir um grupo no Brasil sob sua influência. Em novembro de 1952 é publicada a primeira edição do jornal Frente Operária, que vai nuclear ao redor de si o grupo de militantes que conformam o POR. A princípio, este grupo é composto por três quadros que viriam do PSR, dois que viriam do PSB e um estudante da faculdade de direito. Em 1952 saem dois números do Frente Operária. Em 1953, o periódico sai quase mensalmente. Em 1954, são publicadas duas edições. Em 1955, quatro edições. Em 1956, apenas duas. Ao longo de 1957 e 1958, saem três edições. A depender da fonte, estima-se que o POR, ao longo da década de 50, chegou a reunir entre 20 e 50 militantes. [17]
Desde sua origem, O POR já evidenciava a forte influência das idéias de Pablo. Já no jornal de agosto de 1953, Guillermo Almeyra escreve um artigo no qual evidencia-se o propósito de introduzir a política de entrismo no Partido Comunista. Neste artigo Guillermo afirma que o stalinismo fora “uma deformação transitória, uma etapa breve do movimento operário de certos países, em sua marcha vitoriosa para o socialismo mundial”, e que “tal como bactérias (...) a burocracia morre quando é posta em contato com o vento quente da luta revolucionária do proletariado” [18].
A política de entrismo sui generis no PCB
A III Conferência latino-americana do BLA, realizada no Chile em março de 1954, vota definitivamente o entrismo do POR no PCB. A resolução da Conferência afirmava: “No Brasil nossa tarefa é desenvolver, no entrismo total no PCB, o desenvolvimento da base do Partido Marxista Revolucionário”. Ao final de 1954, os delegados do POR no IV Congresso da IV Internacional realizado na França, voltaram com um ultimato para que se concretizasse a resolução política tomada na III Conferência latinoamericana. A resolução do IV Congresso dizia: “(...) no Brasil, o núcleo de nossas forças deve lançar-se a um trabalho de grande fôlego no seio da organização e do movimento de massas influenciado pelo PCB” [19]. Este Suplemento afirma que a nova tática consistia na “reunião mais eficaz possível das forças revolucionárias conscientes maiores que as nossas e formar, na fusão com elas, grandes partidos marxistas revolucionários.” [20]
No jornal do POR que implementa o “giro”, ainda emdezembro de 1954, consta o seguinte alerta: “Não pretendemos que ninguémsaia do PCB” [21]; ou, dito de forma mais clara: “o militante do PCB, evoluindo para posições marxistas leninistas da IV Internacional, não deve abandonar o PC pois este partido agrupa hoje uma parte considerável da vanguarda brasileira” [22]
Desta forma, o POR vai constituir-se num obstáculo para que a crise do PCB a partir da publicação do relatório Kruchev e do XX Congresso do PCUS, em meio ao ascenso operário e camponês de fins da década de 50, possa ser capitalizada para a formação de um partido revolucionário. Em função desta crise, segundo a avaliação de José Maria Crispim, o PCB teria sofrido uma queda de 150milmilitantes em1956 para 5 ou 10mil em1957. Segundo a avaliação de Chilcote, o PCB caiu de 100 a 130 mil militantes em 1956-57 para 50 mil em 1958. EMoisés Vinhas dá números mais próximos aos de Crispim, afirmando que o PCB teria ficado com 9 mil militantes [23].
Em 1957, frente à ruptura rumo ao nacionalismo burguês da corrente de Agildo Barata com o PCB, o POR declara:
No plano organizatório não é possível romper os laços com a base militante do PCB. Muito pelo contrário, é necessário agir no sentido de desenvolver uma tendência anti-burocrática de esquerda dentro do PCB. Sem capitular politicamente frente aos stalinistas, os elementos de oposição devem fazer tudo para permanecer dentro do PCB, para ajudar a evolução de um grande número de companheiros. (...) Não obstante as deformações de alguns grupos oposicionistas, a crise segue objetivamente o caminho de recomposição das forças do comunismo revolucionário. [24]
Tendo como pano de fundo a crise do PCB, o processo de reorganização política que se operava emsetores de vanguarda e a trágica experiência de anos de entrismo neste partido, os militantes do POR, a partir de 1958, vão expressar crises em relação à continuidade desta política. Em informe a Posadas, Gabriel Labat (pseudônimoDiego) , naquelemomento representante argentino do BLA que ajudava a construir o POR no Brasil diz:
Também é verdade outro fato que nossos camaradas da Seção Brasileira interpretam incorretamente. Eles dizem: os melhores elementos saíram do PCB (...) Nossos camaradas afirmam que é necessário um amplo agrupamento das esquerdas fora do movimento comunista, que o movimento comunista está liquidado (...) Mas esse partido liquidado, em desintegração, é hoje um centro de discussão colossal. Mas não apenas isso: é o único lugar em todo o Brasil onde se discute, de alguma forma, a necessidade de uma política independente de classe (...) Nossos camaradas afirmam que seria impossível entrar no PC, um partido que expulsa as pessoas e vive uma crise centrífuga. Algo de verdade nisso existe (...) Não podemos fazer nada no PC, nem lutar por uma tendência de esquerda, enquanto essa tendência não der um passo para frente! O que há de esquerda no comunismo? – é a pergunta que fazem os camaradas. (...) O errado no trabalho de nossos camaradas não foi a tática nem a orientação da Internacional para a situação no Brasil, nem que a Internacional não tenha compreendido suficientemente a situação do Brasil, como às vezes os camaradas afirmam. [25]
Na resposta ao informe de Gabriel, Posadas referenda todas as suas posições, defende o entrismo e reclama que a Seção Brasileira afirmava sinceramente confiar na Internacional, mas na verdade não confiava: “Sobre a crise do PC, não há nenhuma razão para supor que o PC está liquidado (...) Está longe de ter se rompido, ainda falta um processo bastante longo se é que o PC vai romper. Isto foi discutido no V Congresso Mundial e o camarada Pablo concordou conosco”. [26] Como fundamento da crise, agregase o fato de que o PCB educava seus militantes a rechaçarem qualquer tipo de relação com trotskistas, taxando-os de agentes imperialistas, chegando inclusive a constar esta orientação em seus estatutos [27].
O resultado desta crise foi que o POR passou a fazer um amálgama entre manter a política de entrismo sui generis no PCB e impulsionar uma nova tática de unificação dos pequenos grupos que participavam do processo de reorganização política que se desenvolvia à esquerda do PCB, do PTB e do PSB. Aparentemente tendo como marco inicial os preparativos para o 1º de maio de 1959, o POR passa a desenvolver um debate privilegiado com a Liga Socialista Independente (LSI) [28] e a Juventude Socialista (JS), para o qual publica um documento denominado “Teses Programáticas” para a discussão com a esquerda. O amálgama entre a velha e a nova política se expressa nas próprias teses:
O que se trata, portanto, é de proceder a um reagrupamento comunista revolucionário (...) Naturalmente o novo partido de que se necessita não é uma simples continuação do PC com seus vícios organizativos. É um novo partido em todo sentido (...) só que tal partido sairá da matriz do velho movimento comunista, como sua continuação natural, depois da crise atual. [29]
Em agosto do mesmo ano, formou-se uma Comissão pela Unificação dos Grupos Marxistas, constituída por militantes de todas as tendências. Mas o processo teve sua primeira explosão já no mês seguinte, em setembro, aparentemente em função de divergências com relação a uma candidatura eleitoral, resultando na saída do POR [30]. Em fins de janeiro de 1960, realizase uma Conferência do POR na qual se encerra a tática de buscar uma unificação com os pequenos grupos que compunham o processo de reorganização à esquerda do PCB, do PTB e do PSB e se reafirma a política de entrismo sui generis no stalinismo. [31]
No jornal Frente Operária de julho de 1960, observamos a manutenção da política anterior, incluindo seu aspecto mais sórdido, a contenção das rupturas com o PCB: “O Partido Comunista evolui objetivamente no sentido de escapar de sua velha condição de agência, no país, da política e dos interesses da burocracia soviética. Trata-se aí da conclusão lógica extrema, do processo de desestalinização que prosseguiu, apesar de tudo. (...) Deste modo o PC cai sob a influência e a pressão das diferentes forças e classes sociais do país e do exterior, que por sua vez influem no país (revolução chinesa, revolução cubana etc.). Sob esta influência e esta pressão o partido se diferencia em duas alas. O curso desta diferenciação é imprevisível. (...) Pode resultar em cisões, pela expulsão ou pela ruptura de uma ala da direção. Pode também acontecer que ambas as tendências convivam durante um período no interior do mesmo Partido, que neste caso não poderá deixar de ter um certo caráter democrático e que, devido à força da esquerda e à pressão das massas e da revolução atue como um Partido centrista, em processo de esquerdização. É também possível que a ruptura da dependência da burocracia soviética passe por uma etapa intermediária de luta de influência entreMoscou e Pequim. Em todo caso, esta luta de influências só poderá desembocar numa influência crescente da revolução e do movimento de massas. (...) São estas as razões objetivas que nos levam a ser sumamente otimistas no que se refere à crise do PC, e a prognosticar a inevitável derrota da direita. (...) Nós não estamos pela divisão do Partido e acreditamos que o melhor caminho para o desenvolvimento de uma ampla esquerda comunista marxista-revolucioná ria, com autoridade e força para intervir como direção da vanguarda operária na próxima Revolução brasileira consiste na continuação da discussão democrática no seio do Partido. [32]
Aproximadamente no mês de novembro de 1960, o POR volta a aproximar-se do processo de unificação de pequenos grupos à esquerda do PCB, que continuou se desenvolvendo apesar de seu afastamento. Neste período, constitui-se a “Frente das Esquerdas”, que passa a aglutinar a Juventude Socialista, a LSI, o POR, e militantes da JuventudeTrabalhist a, do PCB [33] e do PSB, transformando- se posteriormente em “Frente Juvenil das Esquerdas”. [34]
Entretanto, às vésperas da renúncia de Jânio Quadros, no jornal publicado na 2ª quinzena de agosto de 1961, a seguinte declaração do POR demonstra que sua participação na “Frente Juvenil das Esquerdas” não estava a serviço de construir um partido revolucionário de vanguarda sob as botas do stalinismo e sim estava subordinada à tática de entrismo sui generis:
(...) para amplos e decisivos setores da vanguarda operária, o caminho para o Partido Revolucionário corresponde ao de uma transformação, uma mudança radical no P. Comunista. (...) É preciso conduzir o trabalho dos marxistas-revolucio nários de nosso movimento no sentido de ajudar estes destacamentos decisivos da vanguarda operária a avançar pelo caminho que eles mesmos se propõem (...)”. [35]
O PROGRAMA DO POR
As conseqüências do revisionismo pablista no plano políticoprogramá tico se expressam na aberta adaptação do POR não só ao PCB, mas também diretamente ao nacionalismo burguês, ultrapassando os limites do mais elementar corte de classe. É isso que se expressa na política permanente do POR, desde sua fundação, por uma “Frente Única Anti- Imperialista” com burgueses “nacionalistas” do PTB e do PSB, contendo aspectos centrais de um programa que só poderia ser levada a cabo pela classe operária em confronto com todas as frações da burguesia.
Propomos que a Frente única do PTB, PC, PSB e POR (trotskista) , inicie a luta efetiva pela nacionalização de uma série de empresas como a Light, as Docas de Santos, aTelefônica. Que inicie a luta efetiva pela denúncia do tratado militar Brasil- Estados Unidos (...) Consideramos que uma legítima Frente Única Anti- Imperialista, não tem por que reduzir-se a medidas específicas de luta antiimperialista e que pode e deve assumir no país a luta contra o latifúndio, pela reforma agrária (...) Em outros planos, a Frente Única Anti-Imperialista deve lutar pelas liberdades democráticas, pelo direito de voto aos analfabetos e pela legalidade de todos os partidos políticos. (...) E também deve atender, como uma frente essencial de defesa do nível de vida dos trabalhadores, o aumento imediato do salário mínimo e o aumento de todos os salários, de acordo com o custo de vida e a implantação da escala móvel de salários com controle operário. (...) Se bem que consideramos que os filiados ao PC, ao PSB, ao PTB, logicamente queiram levar a discussão e a luta por este programa no interior de suas organizações e que seu objetivo será fazer com que suas direções assumam uma posição de acordo com o espírito das bases, consideramos também, pelo fato de que nenhum destes pontos esteja em discordância com o programa e os objetivos reclamados pelos dirigentes destes partidos, possam e devam constituir desde já, comitês anti-imperialistas em todas as partes, nos municípios, bairros, fábricas, sindicatos, Faculdades, com a participação dos afiliados de todos ou alguns destes partidos e iniciar imediatamente a luta por estes objetivos. A solução eleitoral que está mais de acordo com as necessidades das massas é a Frente Única eleitoral do PTB, PC, PSB e POR (trotskista) , sob a bandeira anti-imperialista (...). [36]
As demandas justas das massas levantadas pelo POR como programa – que constituíam justamente os débeis fios de continuidade do POR com a tradição de Trotsky –, dirigidos ao PTB e ao PSB, transformavam- se em seu contrário, servindo para “lavar a cara pela esquerda” da burguesia supostamente “nacionalista”.
Nestas condições, frente à crise da renúncia de Jânio, como não poderia ser diferente, o POR levanta uma política completamente capituladora ao PCB e a Brizola.No jornal Frente Operária publicado em8 de Setembro de 1961 [37], a primeira edição após a renúncia de Jânio, composta essencialmente de uma declaração assinada pelo “Burô Latino-americano da IV Internacional” em 28.06.1961, o POR não denuncia a traição já em curso pelas mãos do PCB e nem tampouco o desvio que já articulava Brizola; assim como não faz qualquer tipo de exigência à direção stalinista e nem tampouco às direções nacionalistas burguesas. Sobre estas direções, o POR se limita a dizer:
A classe operária interveio debilmente na crise, as direções operárias do PC e as direções sindicais a mantêm em passividade, enquanto Goulart não tem interesse em apelar para mobilizações independentes. (...) As massas brasileiras não foram chamadas a intervir. (...) Os sindicatos estão nas mãos dos agentes do trabalhismo e dos burocratas do PC, que se põe à disposição da atual ala burguesa da Goulart. [38]
Se não fez neste momento nem as exigências mais elementares à direção stalinista, como por exemplo a de organizar milícias de operários e camponeses para resistir ao golpe, muito menos fez a exigência de que, frente ao vazio de poder que se instalou no país, o PCB rompesse com a burguesia e lutasse por um governo provisório das organizações operárias (Intersindicais combativas, CGG) e camponesas (Ligas, ULTAB) em luta. Essa exigência era chave para acelerar a experiência das massas com a direção reformista e conciliadora do PCB e alentar as massas a buscar novas direções políticas revolucionárias. Conseqüente com as concepções que fundamentam o entrismo sui generis, não é feita qualquer menção à necessidade de construir um partido revolucionário em luta encarniçada contra o PCB, e sim apenas são ditas generalidades embelezadoras do PCB como:
Careceu de partidos de massa e de classe. (...) No Brasil as massas não podem intervir porque lhes falta uma central única operária. Os camponeses não estão organizados maciçamente em sindicatos e os operários não contam com o partido operário independente de massas. [39]
Na medida em que esta declaração do BLA não mencionava nada sobre o problema chave da divisão existente no campo entre o PCB por um lado e as Ligas Camponesas por outro, defendendo uma “reforma agrária” em geral, o POR terminava embelezando a reforma agrária contidas nas “reformas de base” janguistas que o PCB apoiava [40].
A vergonhosa capitulação ao PCB e às direções nacionalistas burguesas por parte do POR não impediu que, desde o ponto de vista da propaganda abstrata, este último defendesse políticas corretas como a necessidade de constituição de milícias operárias e camponesas que buscassem se ligar aos setores rebelados das bases das Forças armadas; o controle operário dos estoques e da distribuição, com estatização das empresas imperialistas e nacionais de interesse público, sem indenização e sob controle dos trabalhadores, com a tática de Assembléia Constituinte [41]; e a propaganda de um governo operário e camponês baseado em organismos de tipo soviético (conselhos de operários, camponeses e soldados) [42]. Entretanto, estas políticas corretas, que expressam a existência de alguns fios de continuidade com a tradição de Trotsky, ligadas à política concreta de “Frente única Anti- Imperialista” e ao entrismo no PCB, novamente se transformaram no seu contrário, servindo para “lavar a cara” pela esquerda das direções stalinistas.
Com o impacto da brutal traição do PCB, o POR, nos meses seguintes à renúncia de Jânio, vai oscilar à esquerda em sua crítica ao stalinismo:
“A relação de força é imensamente favorável às massas a partir do dia 1º de setembro. Existiam todas as condições para desconhecer o compromisso entre as facções burguesas, levar a luta contra os golpistas reacionários até o fim, desarmá-los e punilos, e estabelecer o novo governo sob a base das organizações de massa que tendiam a surgir espontaneamente (Conselhos Operários), sobre as milícias operárias e camponesas, sobre os conselhos de soldados e sargentos que estavam sublevados por todo o país, e sobre os Conselhos de Camponeses, que deveriam ter sido chamados a ocupar e defender as terras, com armas na mão... O que impediu este desenlace da crise é que as direções das massas, as direções sindicais, do PCB e os trabalhistas, em vez de organizar e impulsionar as massas trataram em todos os momentos de desarmá-las, contê-las e colocá-las a reboque de Brizola e de Jango Goulart” [43].
Entretanto, ao mesmo tempo, quando decide fazer uma exigência ao PCB, a faz indiscriminadamente ao PSB (que se transforma de um partido pequeno-burguê s em um partido proletário!) e ao PTB, borrando toda e qualquer delimitação de classe: “Os trotskistas apelam (...) para que se constitua imediatamente a “Frente Única Proletária” (PSB, PCB, POR trotskista e sindicatos) e a “Frente Única Anti-Imperialista” e a “Aliança Operário-Camponesa” para levar a luta adiante” [44].
Da capitulação ao stalinismo à capitulação ao nacionalismo burguês
Nos primeiros anos de 60, o POR volta a regularizar a publicação de seu jornal que havia se tornado bastante instável nos últimos anos da década de 50. Em 1961, saíram 15 edições. Em 1962, torna-se quinzenal, com uma edição extraordinária, totalizando 25 edições. E em 1963 são publicadas 27 edições, sendo que a partir de novembro deste ano torna-se semanal. Antes do golpe de 1964, o POR chegou a alcançar 100 militantes, expandindo-se para fora do eixo Rio/São Paulo, instalando-se no Nordeste – especialmente em Pernambuco, mas também na Paraíba e no Ceará –, e também no Rio Grande do Sul, conseguindo abrir trabalhos tanto em fábricas como nas bases do Exército e da Aeronáutica. Entre outubro de 1961 e abril de 1962, o Burô Latino-americano posadista vai romper com o Secretariado Unificado (SU) da IV Internacional de Michel Pablo e formar sua própria corrente dentro do movimento trotskista internacional. Na divisão, o POR permanece sob a direção de Posadas.
Ao longo de 1962 e 63, com a dinâmica de Brizola em localizar-se à esquerda do PCB em diversos aspectos da situação nacional, o POR vai gradualmente abandonando a linha de entrismo sui generis no PCB [45] e passando a adaptar-se agora mais direta e abertamente ao nacionalismo burguês. Em maio de 1962, Nasser publica a Carta Nacional em que propõe a formação da União Socialista [46], cujo conteúdo o POR assim analisa: “capitalismo de Estado a serviço da burguesia, sob um véu por ele denominado socialismo”, mas que ainda assim “o Egito caminha empiricamente para o socialismo” [47]. Padecendo do mesmo impressionismo e oportunismo que fez a corrente pablista se adaptar completamente ao stalinismo, Posadas, em artigo de junho de 1963, vai expressar sua total adaptação ao nacionalismo burguês de Nasser: “No Egito há um poder bonapartista mais próximo do Estado operário que do Estado capitalista” [48].
Na realidade brasileira, a caracterização e a política do POR em relação ao nacionalismo burguês vão mudar radicalmente a partir de maio de 1963, quando é publicado um extenso artigo acerca das discussões travadas no Burô Político do POR sobre a situação nacional, em caráter preparatório para seu Congresso que se aproximava [49].
Como se vê, tanto a crise social como a econômica e financeira pressionam no sentido do desenvolvimento de uma ala reformista e nacionalista radical, de tipo nasserista, que leva em seu bojo tendências ainda mais ousadas, pequeno-burguesas socializantes, objetivamente revolucionárias, que procuram apoio nas forças sociais desatadas pela crise pré-revolucioná ria para impulsionar a situação até a beira do que pode ir o capitalismo e mesmo além disso. (...) A ala esquerda do reformismo burguês se radicaliza ainda mais. Ela se constitui provisoriamente no centro para a direção e para as formas incipientes de organização das massas. Há uma importância enorme entre esta nova direção, vinda do campo do reformismo burguês e que se radicaliza e se adapta à pressão revolucionária das forças revolucionárias que atuam na sociedade e a antiga direção dos sindicatos e do PC. [50]
Em novembro de 1963, o POR se entusiasma frente a uma entrevista dada por Brizola à revista venezuelana La Espera, na qual ele teria proposto um programa de nacionalização dos bancos, expulsão do imperialismo e insurreição popular: “O programa de Brizola contém todas as contradições em que está imersa a ala nacionalista pequeno-burguesa que está destinada a desempenhar um papel de direção do processo revolucionário do país durante todo um período” [51]. Apesar de que Brizola nada fez para implementar este programa, e até mesmo desmentisse sua entrevista à revista venezuelana, o POR lançou a palavra de ordem: “Levar à prática o programa de Brizola!” [52].
Ao final de 1963, após a tentativa frustrada de implementar um estado de sítio, com a dinâmica de Goulart de buscar apoiar-se em maior medida no movimento de massas e acentuar seus traços bonapartistas de esquerda em função da pressão do imperialismo e da burguesia golpista, o POR também vai capitular abertamente não mais apenas à ala esquerda do PTB mas também ao próprio Jango:
O nacionalismo é contraditório e não vai deixar de sê-lo. Porém, um dos seus setores está chamado a desempenhar um papel bastante importante nesta fase da revolução. As coisas não podem continuar assim, alguém tem que atuar como agente histórico da revolução, para abrir as portas às mudanças revolucionárias que se impõem. Esse alguém agora não vai cair do ares. Vai surgir do nacionalismo. Não é fatalmente Brizola. Pode ser Goulart através de um golpe de estado reformista de intenção moderada. [53]
A total capitulação política a Brizola e Goulart por parte do POR não impediu que este continuasse, no plano da propaganda abstrata, a defender uma política relativamente “classista”:
Ainda nestas próximas comoções as massas não estão em condições de impor o Governo Operário e Camponês, porém, é indispensável prepará-lo pois que toda ruptura deste equilíbrio mais do que instável em que se apóia Goulart colocará a questão do poder em termos prementes e inadiáveis. O Congresso de Operários, Camponeses e Soldados, a Central única, os sindicatos, são órgãos naturais que devem disputar o poder com a burguesia. [54]
Entretanto, como temos explicado, no marco da adaptação às possibilidades bonapartistas sui generis de esquerda seja de Brizola ou de Jango, contribuía para “cobrir pela esquerda” o nacionalismo burguês frente às massas.
Ao invés de exigir das direções nacionalistas burguesas e seus militares “nacionalistas e democráticos” que repartissem armas à população para a organização de milícias de operários e camponeses e que resistissem à ameaça de golpe militar, como forma de desmascará-las frente às massas, o POR chegou ao absurdo de alimentar ilusões inclusive em um eventual golpe de Estado janguista:
Nós trotskistas, não nos colocamos contra um golpe “nasserista” como fazem setores nacionalistas, como o de Almino Afonso, que faz um centro na defesa da democracia. Não choraremos o fim das “instituições democráticas” (...) Nossa luta é para aprofundar, por meio da luta das massas, o processo da revolução. Se isto é feito em meio a golpes de Estado e a uma guerra civil, onde se defronte desde o início duas alas burguesas, não deixaremos de ver os elementos revolucionários que nela se encerram e, intervindo a fundo contra a reação e o imperialismo, continuaremos a levar a batalha pela organização e luta das massas independentemente da burguesia... . [55]
A partir de Janeiro de 1964, o POR passa a defender a formação dos “Grupos de 11 e de 5” que passaram ser organizados por Brizola. Após o golpe, integraram-se à Frente Popular de Libertação criada por Brizola no Uruguai, buscando construir núcleos desta Frente nas fábricas de São Paulo e no Porto de Santos, e passaram a distribuir o jornal nacionalista O Panfleto [56]. Em artigo de março de 1968, Posadas assim explica a política adotada emrelação ao brizolismo: “Não é novo o ‘entrismo interior’, nós fizemos isso no brizolismo. A visita, as discussões com Brizola e os brizolistas, era isto o ‘entrismo interior’, porque estávamos influindo a direção para que avance” [57].
***
Em síntese, o POR, apoiando-se sobre uma visão unilateral e distorcida da situação internacional e do stalinismo no pós-guerra, vai se adaptar programática, estratégica e organizativamente ao PCB. A partir de 1962, sem mudar a caracterização da situação mundial e sim apenas trocando o stalinismo pelo nacionalismo burguês, vai passar a adaptar-se ao PTB, ressaltando que do primeiro para este segundo momento existe um salto de qualidade: de uma direção operária reformista para uma direção diretamente burguesa. Durante todo este período, o POR conseguiu defender, no plano da propaganda abstrata, aspectos corretos de um programa e uma estratégia proletária independente, mostrando aí fios de continuidade com a tradição de Trotsky. Entretanto, no marco de sua política de conjunto, esta propaganda terminava servindo como “cobertura de esquerda” para a política de conciliação de classes e para as direções operárias reformistas e nacionalistas burguesas e pequeno-burguesas. São estas oscilações e estas duas caras de uma mesma moeda que constituem os pólos reformista e revolucionário ou oportunista e ultra-esquerdista que fazem do POR um exemplo do que definimos como centrismo trotskista de Yalta.
Esta localização do POR lhe impediu de contribuir para que os setores do movimento operário e da esquerda que evoluíampara posições revolucionárias e buscavam a tradição deTrotsky e Lênin pudessem, desde o ascenso operário e camponês da década de 50 aos momento mais agudos da luta de classes nos primeiros anos 60, avançar na construção de uma organização revolucionária de vanguarda que se constituísse como alternativa ao PCB frente a setores de massas durante o processo revolucionário que antecedeu o golpe militar. Esta possibilidade se mostra mais concreta quando verificamos que a tentativa de unificação dos grupos políticos que se colocavam à esquerda do PCB, PTB e PSB resultou na formação de uma organização política nova, que aglutinou todos eles: a POLOP (Política Operária) [58].
O potencial da POLOP ou pelo menos de setores desta se expressa na influência da tradição de Trotsky que, apesar do POR, atravessava a organização em distintos aspectos: desde a propaganda interna em que eram usadas obras como aTeoria da Revolução Permanente até em publicações de alguns de seus principais dirigentes. No manifesto “O caminho da revolução brasileira”, escrito em 1962, Moniz Bandeira, membro do Comitê Central da POLOP e dirigente da revista teórica da organização [59], define:
A lei do desenvolvimento desigual, como base de uma outra, a do desenvolvimento combinado, é que condiciona o sentido socialista da revolução brasileira. Se bem que o ponto mais explosivo, do ângulo imediato da revolução, seja o campo, sejam as regiões em que predominam formas arcaicas e relações semi-feudais e pré-capitalistas de produção, não se pode perder de vista o conjunto da economia brasileira, marcado pelo progresso industrial. (...) A revolução nos países atrasados ou pré-desenvolvidos como o Brasil, uma vez desencadeada, tende a prosseguir ininterruptamente, passando das tarefas democrático-burguesa s às medidas de caráter socialista, e só termina com a liquidação completa da sociedade dividida em classes e com o advento da nova ordem, tanto no plano nacional quanto no plano internacional. Esse caráter da revolução no Brasil deriva não só do atual estágio de sua evolução histórica, como, também, do fato de ser a economia mundial um todo, uma realidade superior, viva, potente, e não um amálgama de partículas nacionais, o que possibilita aos países atrasados queimar etapas e atingir, em curto prazo, os graus de civilização mais altos da civilização. [60]
Entretanto, para que este potencial expresso na POLOP fosse levado até o final, faltou uma direção com clareza revolucionária tanto do ponto de vista programático como estratégico e tático (no que diz respeito às grandes táticas necessárias nos momentos agudos da luta de classes). Na prática concreta, como o POR, a POLOP terminou se adaptando às alas esquerdas do stalinismo e do nacionalismo burguês. Frente à renúncia de Jânio Quadros, defendeu Brizola como expressão legítima da revolta do povo riograndense contra o golpe. De 1961 a 1964, chamava permanentemente à formação de um partido em comum com a direção do PCdoB, a mesma que esteve na cabeça de todas as traições cometidas pelo stalinismo de 1943 a 1956. Levantava uma tática de frente-única permanente com as alas esquerdas do PTB e do PSB. E nas vésperas do golpe terminou defendendo a hipótese de que Brizola pudesse se transformar em “conseqüentemente revolucionário”. Programaticamente, tinham a enorme debilidade de quase não defender a organização de milícias de operários e camponeses para resistir ao golpe.
Com isso não queremos afirmar que uma direção conseqüentemente revolucionária fosse necessariamente mudar o curso da história, conseguindo arrancar as massas da direção do PCB e dirigi-las para impedir o golpe militar ou até mesmo à tomada do poder. O que queremos sim afirmar é que, seguramente, como mínimo, a vanguarda da classe operária sairia mais fortalecida para enfrentar os 20 anos de ditadura militar que se seguiriam; e que estaria melhor preparada para se livrar das amarras da burocracia lulista frente ao ascenso operário que se iniciou no final da década de 70 e percorreu toda a década de 80.
[1] Edgard Carone, O PCB – 1943 a 1964, Editora Difel, 1982. “Novos Rumos, 01/09/1961”.
[2] Idem.
[3] Idem, “Novos Rumos, 04.09.1961”.
[4] “Essa repressão, não por acaso, concentrou-se sobre a fatia operária ‘moderna’, notadamente sobre a combativa categoria dos metalúrgicos, observando-se uma crescente espiral de violência. Assim, se em janeiro de 1962 osmetalúrgicos de Lafaiete defrontaram- se coma forte repressão policial utilizada como forma de pôr fim à sua greve, a mesma violência foi usada em setembro de 1963 para impedir que os trabalhadores da poderosa Mannesmann aderissem à greve dos metalúrgicos de Belo Horizonte. Mais significativo ainda é considerar que o ponto alto da violência contra a classe operária emMinas Gerais, acionada para terminar com a greve da Usiminas, iniciada em 7 de outubro de 1963, conduziu três dias depois, literalmente, um verdadeiro massacre dos trabalhadores daquela empresa”. Heloísa Starling, Os Senhores das Gerais, p. 233. Citado por Antonio Rago Filho, A Ideologia 1964, p.112.
[5] Que desde o ponto de vista internacional na verdade não era nada nova, pois era formada por correntes que existiam como mínimo desde a década de 50 em outros países.
[6] No artigo O novo curso pós-Stálin, escrito por Pablo, depois de enumerar as várias medidas de concessão efetuadas por Malenkov, este declara no subtítulo “Dinâmica de novo giro”: “A dinâmica de suas concessões liquida na realidade toda a herança stalinista na própria URSS, assim como em suas relações com os países satélites, com a China e com os Partidos Comunistas. Daqui para frente não será mais fácil retroceder.. . uma vez que as concessões são ampliadas, a marcha rumo à liquidação efetiva do regime stalinista ameaça tornar-se irresistível (...) Será através de uma crise aguda e uma violenta luta inter-burocrá tica entre os elementos que lutarão pelo status quo, se não para retroceder, e os mais e mais numerosos elementos arrastados pela poderosa pressão das massas” (extraído da revista Fourth International, março-abril de 1953).
[7] “(…) a política externa é a extensão da política interna (…) a nova situação restringe mais e mais a capacidade de manobras contra-revolucioná rias da burocracia (…) o efeito prático dessas tentativas (de utilizar as contradições inter-imperialistas , de ganhar o apoio de certas burguesias em países coloniais e semi-coloniais, de chegar a um acordo temporário e parcial com o imperialismo) torna-se mais e mais limitado e efêmero (…) Presa entre a ameaça imperialista e a revolução colonial, a burocracia soviética encontrou-se obrigada a aliar-se com a revolução mundial contra o imperialismo…Toda tentativa geral de usar a revolução colonial como moeda de troca nas transações com o imperialismo teve que ser abandonada”. Trechos extraídos do documento “Esboço de resolução sobre o ascenso e o declínio do stalinismo”, escrito por Pablo em 1953.
[8] Michel Pablo, Ascenso e declínio do stalinismo, 1953.
[9] “No entanto, não se pode negar categoricamente, por antecipado, a possibilidade teórica de que sob a influência de circunstâncias completamente excepcionais (guerra, derrota, crack financeiro, pressão revolucionária das massas etc.), os partidos pequeno-burgueses, incluindo os stalinistas, pudessem ir mais longe do que eles mesmos gostariam na via de uma ruptura com a burguesia”. Programa de Transição, Trotsky, 1938.
[10] A tática de entrismo utilizada por Trotsky na década de 30 baseava-se na existência de setores de massas operárias radicalizadas que giravam à esquerda e criavam alas esquerdas no interior de partidos reformistas de massas. Esta tática estava a serviço não de influenciar a direção destes partidos e sim de arrancar alas esquerdas destes para a construção de um partido revolucionário a partir de um curto período de tempo no seu interior. Ou seja, nenhuma semelhança com o entrismo sui generis de Pablo.
[11] O conceito de “centrismo” neste caso diz respeito às correntes políticas que oscilam entre a reforma e a revolução. “Trotskismo de Yalta” diz respeito às correntes domovimento trotskista que se constituíram durante o período em que vigoravam os acordos de Yalta, como explicamos anteriormente.
[12] Posteriormente, Pedrosa vai se aproximar de posições abertamente social-democratas.
[13] Sachetta era dirigente do Comitê Regional de São Paulo do PCB quando, em 1938, rompe com o stalinismo e aproxima-se do trotskismo. É no PSR que o neste então jovem Florestan Fernandes vai ter seu primeiro contato com a vida política, chegando a militar nesta organização por alguns anos.
[14] Segundo Osvaldo Coggiola, no final dos anos 40, “O POR-Moreno constitui uma efêmera tendência baseada em documentos comuns, com o POR boliviano e o PSR brasileiro, que se uniam por uma hostilidade comum aos movimentos nacionalistas de seus respectivos países (MNR boliviano, varguismo e peronismo). A aliança não dura muito tempo”. Posteriormente, não são encontrados documentos que comprovam a continuidade desta relação entre Sachetta eMoreno.Osvaldo Coggiola, Historia del trotskismo argentino (1929-1960), Centro Editor de América Latina, Buenos Aires, 1985.
[15] Murilo Leal, À esquerda da esquerda – Trotskistas, comunistas e populistas no Brasil Contemporâneo (1952-1966), Editora Paz e Terra, 2004.
[16] No III Congresso da IV Internacional, o delegado brasileiro, Felipe, votado entre os quatro que permaneceram após a Plenária de explosão do PSR, foi com mandato para votar a favor de Moreno na disputa entre este e Posadas para ver qual organização (o POR de Moreno ou o CGI de Posadas) seria representante oficial da IV Internacional na Argentina. Ainda durante a presença de Felipe na Europa, o Secretariado Internacional recebeu uma carta do Brasil destituindo- o por este ter apoiado a Posadas e não a Moreno. Murilo Leal, Opt. cit..
[17] Alguns militantes do POR desta época posteriormente tornaram-se importantes personalidades nacionais, como os intelectuais Ruy Fausto, Boris Fausto, Leôncio Martins Rodrigues, Maria Hermínia Tavares de Almeida e o escritor Antônio Callado.
[18] “A Luta por um Partido”, artigo do jornal Frente Operária, no 7, agosto de 1953.
[19] Revista Marxista Latino-americana, n.4, junho de 1956.
[20] Suplemento Especial do jornal Frente Operária, dezembro de 1954.
[21] Jornal Frente Operária, no 12, dezembro de 1954.
[22] “Nossa Integração nas massas”, jornal Frente Operária, no 12, dezembro de 1954.
[23] Murilo Leal, Opt. cit..
[24] Jornal Frente Operária, publicado entre junho e setembro de 1957.
[25] Reunião ampliada do BLA – setembro/outubro de 1958”; Brasil/Informe do camarada Diego, p. 21. Citado em Murilo Leal, Opt. cit..
[26] “Boletin Interno” do Secretariado do BLA da IV Internacional, n. 4, ano 1, novembro de 1958. Citado em Murilo Leal, Opt. cit..
[27] DoroyMassola, entãomilitante do POR, assimconta a sua experiência de entrismo no PCdoB, partido que vai ser fundado em fevereiro de 1962 a partir da ruptura de uma das “alas esquerdas” que o POR enxergava dentro do PCB no período precedente: “Uma vez convocaram a gente para uma reunião, Fábio e eu, e estava todo mundo lá, umas trinta pessoas. E o Calil Chade chegou para a gente e disse assim: ‘Olha, vocês são trotskistas, vocês estão infiltrados aqui dentro...’ – abriu o jogo – ‘é um absurdo o que vocês estão fazendo’. Esculachou, acabou com agente, acabou. A gente não tinha nem o que responder, porque era verdade. A única coisa que eu consegui falar foi que a gente não era agente do imperialismo, nada disso, muito pelo contrário, nós é que éramos os comunistas, que a gente estava tentando fazer aquilo que acreditava mesmo. Só que teve um carinha na reunião que falou assim: ‘Olha, se nós estivessemos em Cuba, se fosse numa guerrilha, vocês dois iam ser justiçados!’ Um negócio assim, acachapante. Mas si acabou o drama, pelo menos (...) Aí passou, fomos expulsos e passamos a militar na IV diretamente, sem mais problemas”. Depoimento de DorotyMassola. Citado em Murilo Leal, Opt. cit..
[28] A LSI foi o grupo político fundado por Hermínio Sachetta alguns anos após sua ruptura com o PSR.
[29] Boletim Informativo do Secretariado do BLA da IV Internacional n. 2, “Tesis programáticas de la Seción Brasileña de la IV Internacional para la discusión con grupos revolucionarios”, maio de 1959.Citado em Murilo Leal, Opt. cit
[30] Murilo Leal, Opt. cit....
[31] “Se realizo la Conferência del POR”, Boletim de Informação Internacional y Latino-americana, 2ª quinzena de março de 1960.
[32] Jornal Frente Operária, junho de 1960.
[33] Dentre estes militantes do PCB estava incluído o MCR (Movimento Comunista Revolucionário) , uma dissidência do partido.
[34] “Frente Juvenil das Esquerdas”, jornal Frente Operária, n. 45, janeiro de 1961.
[35] Jornal Frente Operária, 2ª quinzena de agosto de 1961; artigo de 18/8/61.
[36] Jornal Frente Operária, 1ª quinzena de julho de 1961.
[37] Este jornal foi publicado em forma mimeografada, pois as tipografias, em meio à crise, se recusaram a imprimir o jornal do POR, inclusive a tipografia ligada ao PCB onde eles costumavam imprimir anteriormente.
[38] Jornal Frente Operária no 54, 08/09/1961. Declaração do “Buro Latino Americano da IV Internacional”, de 28/08/61”, publicada neste jornal.
[39] Jornal Frente Operária no 54, 08/09/1961. Declaração do “Buro Latino Americano da IV Internacional”, de 28/08/61”, publicada neste jornal.
[40] Em jornais posteriores o POR vai fazer essa diferenciação.
[41] Nesta declaração publicada em 28/09/1961, o POR não especifica por qual tipo de Assembléia Constituinte lutava e por que meios esta deveria ser estabelecida, ou seja, qual seriam seus objetivos, seu sistema de eleição de deputados, sua relação com o poder constituído etc. Setores da burguesia, como Brizola, procuravam instalar uma Assembléia Constituinte controlada e restringida como mecanismo de desvio do processo de mobilização crescente das massas. Nesse sentido, era necessário explicar claramente como a luta por uma Assembléia Constituinte Revolucionária poderia estar a serviço de ajudar as massas a acelerarem sua experiência com as instituições da democracia burguesa, fazer propaganda de um programa operário independente e alentar o poder das milícias e dos conselhos operários e camponeses como única saída de fundo possível para a crise; e era necessário agitá-la como exigência às direções domovimento demassas. Comomínimo, que a defesa da Assembléia Constituinte tal como está no jornal de 08/09/61, não se diferencia da proposta que Brizola fazia neste mesmo momento. Em seu jornal publicado um mês depois o POR faz uma propaganda de Assembléia Constituinte em termos independentes da burguesia, ainda que, na política concreta, sem articulá-la como exigência ao PCB, e amalgamando- a com a política de “Frete Única Antiimperialista”.
[42] “Os sindicatos operários e as ligas camponesas devem organizar-se em milícias, apelar a soldados e suboficiais a lutar ao lado do povo para defender a expulsão do imperialismo e pelo direito de dar uma solução revolucionária para a crise social e política provocada pela burguesia brasileira” (jornal Frente Operária no 54, 08/09/1961). “O governo operário e camponês [ilegível] para passar a apoiar o poder nas organizações de massa, conselhos de operários, camponeses e soldados, estruturados verticalmente desde as fábricas, bairros e municípios até o Conselho Central dos Delegados eleitos livremente e revogáveis em cada momento” (jornal Frente Operária, 1ª quinzena de Outubro de 1961).
[43] Jornal Frente Operária, 1ª quinzena de outubro de 1961.
[44] Jornal Frente Operária, 2ª quinzena de setembro de 1961.
[45] Em junho de 1963, Posadas afirma o abandono completo da política de entrismo sui generis no PCB escrevendo artigo intitulado “A crise dos Partidos Comunistas no Brasil”: “A atitude do PCB e do PC do Uruguai, que se opõem sistematicamente às greves, estando contra elas, que se aliam a todas as tendências pequeno-burguesas e burguesas, inclusive direitistas, não são mais que atitudes contrarevolucioná rias (...) Neste sentido é necessário perder toda ilusão de poder levar a luta dentro do PC para criar correntes revolucionárias e de poder pesar sobre sua vida política”. Frente Operária, n. 98, 1ª quinzena de julho de 1963.
[46] “Todos os meios de produção devem estar nas mãos do povo. O capital privado estará igualmente nas mãos do povo, já que o socialismo científico é o único caminho que pode assegurar o nosso desenvolvimento econômico”. Trecho da “Carta Nacional” apresentada por Nasser em maio de 1962.
[47] “Egito: amarcha empírica para o socialismo”, jornal FrenteOperária, n. 71, 1ª quinzena de junho de 1963.
[48] “A revolução permanente e as tarefas da vanguarda – Intervenção do CDA. J. Posadas no Comitê Central dos trotskistas”. Citado em Murilo Leal, Opt. cit..
[49] Até aquele momento histórico, podemos encontrar vários documentos em que o POR desenvolve críticas corretas contra o nacionalismo burguês. No jornal Frente Operária de dezembro de 1961, a despeito do espírito auto-proclamató rio ao comparar-se com o PCB, o POR diz: “Diante desta onda nacionalista que procura atingir as fileiras do movimento operário, a vanguarda operária deve manterse firme nas conclusões políticas tiradas durante a última crise. Repelir o reboquismo atrás de soluções alheias e lutar pela intervenção direta das massas, não como peça de pressão mas como protagonista das transformações que amadurecem por toda parte (...) Apelamos à Frente Única das correntes operárias, e especialmente à frente única PCB-POR para a defesa das posições operárias revolucionárias em meio à confusão momentânea, e pelo triunfo das massas sobre a reação, o imperialismo e os latifundiários, como sobre o reformismo da burguesia nacionalista que nada de novo tem a oferecer ao país”.
[50] “O desenvolvimento dos elementos revolucionários da situação nacional e as perspectivas para a construção do Partido”, jornal Frente Operária, n. 90, 2ª quinzena de maio de 1963.
[51] “A Frente única antiimperialista e o programa de Leonel Brizola”, jornal Frente Operária, n. 110, novembro de 1963.
[52] Frente Operária, n. 110, novembro de 1963.
[53] “Por um nacionalismo de novo tipo”, jornal Frente Operária, n. 114, 29 de dezembro de 1963.
[54] Jornal Frente Operária, n. 105 (Edição Extra), 8 de outubro de 1963.
[55] “As tendências da atual situação”, jornal Frente Operária, n.109, 21 de novembro de 1963.
[56] “As tendências da atual situação”, jornal Frente Operária, n.109, 21 de novembro de 1963.
[57] Murilo Leal, Opt. cit..
[58] J. Posadas, “Carta à seção brasileira”, março de 1968. Citado em Murilo Leal, Opt. cit..
[59] “Já na década de 70, Moniz vai se tornar brizolista, e hoje é um típico social-democrata ideólogo da burguesia defensora do Mercosul em comunhão com a União Européia.
[60] Luiz A. Moniz Bandeira, Opt. cit., p. 161-162.
Conclusão

Oque caracterizou o processo anterior ao golpemilitar de 31 demarço de 1964 como revolucionário não foram ações diretas da classe operária em confronto com a burguesia e suas instituições; e nem tampouco formas de organização do proletariado que surgissem e se desenvolvessem em antagonismo como Estado burguês. Pelo contrário, a classe operária atuou sob a direçãomajoritária do PCB, que a colocava a reboque da burguesia janguista.
O que atribuiu um caráter revolucionário ao processo foi uma combinação entre: a) uma crise econômica que atinge o país desde os últimos anos da década de cinqüenta e que se vê enormemente agravada nos primeiros anos da década de 60, com explosão inflacionária, crise deficitária na balança de pagamentos, etc.; b) um profundo ascenso de lutas e de novas formas de organização dos camponeses pobres, marcada por uma dinâmica crescente de radicalização política que se enfrentava diretamente com a propriedade privada através da ocupação de terras e por métodos de guerra civil; c) um enorme ascenso de greves operárias e um alto grau de politização dos setores organizados do proletariado, que colaborava para a quebra permanentemente da estabilidade do regime na medida em que não permitia a implementação de um plano de austeridade para conter a inflação e atrair capitais estrangeiros; d) revoltas e rebeliões nas bases das Forças Armadas, com enfrentamento contra o alto mando e tendências à unidade com organizações operárias e camponesas; e) uma crescente divisão entre as distintas frações da burguesia e da cúpula das Forças Armadas no que diz respeito a que saída dar para a crise econômica e para o crescente nível de atividade das massas operárias e camponesas, consolidando uma ala bonapartista de esquerda e outra ala bonapartista de direita, sendo que esta última passou crescentemente a adotar métodos fascistas e de guerra civil com a colaboração estreita dos EUA, que forneciam financiamento, pessoal, material bélico e orientação política para a preparação do golpe.
Esta combinação de fatores faz com que esta seja a etapa da luta de classes mais agudamente revolucionária da história do país, inclusive se a comparamos com o ascenso operário que nos fins da década de 70 e durante os anos 80 entrou em conflito com o regime militar em desagregação, mas que, ainda que tenha expressado um maior grau de atividade e espontaneidade proletária, não contou, pelo menos não com semelhante magnitude, com os demais fatores que contribuíram para a profundidade do processo revolucionário que antecedeu o golpe.
Buscamos demonstrar que este processo oferecia condições não só para que o movimento de massas, sob direção da classe operária, resistisse à ofensiva golpista, mas também para que o proletariado se colocasse como caudilho da nação oprimida na resolução dos problemas mais estruturais do país como a reforma agrária e a espoliação imperialista.
Buscamos demonstrar que o PCB, ao colocar as massas a reboque da ala nacionalista burguesa das classes dominantes e da cúpula das Forças Armadas, impedindo o desenvolvimento de ações independentes do movimento de massas, em especial da classe operária, foi responsável por uma das maiores traições da história do movimento operário e das massas oprimidas do país; traição esta que ficou patente quando, frente à ameaça revolucionária das massas e a política contra-revolucioná ria do imperialismo e seus agentes internos, o nacionalismo burguês dividiu-se entre os que passaram de malas e bagagens para o programa da UDN civil e militar e os que sucumbiram covardemente e sem luta frente ao golpe; abrindo as portas para 20 anos de ditadura militar.
À luz deste ângulo, buscamos desenvolver qual seria o programa, a estratégia e as táticas centrais que poderiam munir o proletariado com uma política independente da burguesia para resistir ao golpe e se colocar como caudilho da nação oprimida; não só para contrastar com a política levada a cabo pelo PCB, mas para contribuir com lições que armem a vanguarda da classe operária brasileira para suas batalhas atuais e futuras.
Analisando o movimento trotskista da época em questão, buscamos explicar como se materializou no Brasil a ruptura dos fios de continuidade com o melhor da tradição revolucionária do movimento operário internacional concentradas na vida e na obra de Lênin e Trotsky; e, com isso, explicar pelo menos parcialmente porque, mais de 40 anos depois, as conclusões aqui desenvolvidas, em grande medida fundacionais para a constituição de uma direção marxista revolucionária no Brasil, ainda não haviam sido trabalhadas.
Parcialmente porque, para uma explicação integral, necessariamente teremos que nos debruçar sobre o movimento trotskista que surge em meio ao ascenso operário de fins dos anos 70 e que hoje dirige ou influencia parte importante dos setores que hoje se colocam à esquerda do governo Lula e do PT, como por exemplo o PSTU e várias correntes internas do PSOL.
Este “detalhe” não é secundário.
Como já antecipamos acima na discussão sobre programa e estratégia, se teses semelhantes às desenvolvidas neste artigo fossemumpatrimô nio orgânico dos setores do movimento trotskista que atuaram frente ao ascenso operário de 70-80 e a fundação do PT, muitos erros poderiam ter sido evitados. Guardadas as devidas diferenças, assim como o POR, apoiando-se sobre uma visão de que “tudo tendia automaticamente à revolução”, adaptou-se na prática ao stalinismo e por esta via à burguesia janguista, os trotskistas dos 70-80, com uma lógica semelhante, adaptaram-se à burocracia lulista e por esta via à “ala esquerda” da burguesia concentrada noMDB. Com o agravante de que, como vimos, esta nova “cepa” de trotskistas não lutou pelo desenvolvimento de milícias operárias e organismos de tipo soviético que unificassem a classe operária aos camponeses pobres e ao conjunto das massas oprimidas para derrubar a ditadura em chave revolucionária nem mesmo no plano da propaganda abstrata. Assim como o POR passou anos a fio atuando “dentro” do PCB - substituindo a tarefa de construção de um partido revolucionário pela tarefa de “influenciar pela esquerda” a direção deste partido enquanto esta organizava suas grandes traições -, os trotskistas dos 70-80 também passaram anos a fio dentro do PT buscando influenciar pela esquerda a burocracia lulista que se preparava para dirigir o Estado capitalista em sua forma democrático-burguesa . Como dissemos em relação aos anos 60, não defendemos a tese de que caso os trotskistas dos 70-80 tivessem aprendido comos erros do POR a história teriamudado seu curso e a ditadura teria caído por uma ação revolucionária das massas. O que sim afirmamos é que, se não tivessem se adaptado tanto à burocracia lulista, a vanguarda do proletariado estaria seguramente melhor preparada para enfrentar a ofensiva neoliberal da década de 90 e o neoliberalismo petista dos últimos anos.Mas este é, como já dissemos, tema para ser desenvolvido num próximo trabalho.
A atualidade das conclusões do processo que culminou no golpe de 64 não se mostra apenas pelas conseqüências que teria para a classe operária frente ao ascenso de 70-80. Com o desgaste do neoliberalismo e o declínio histórico da hegemonia norte-americana, direções burguesas latinoamericanas buscam hoje canalizar o descontentamento e a rebeldia das massas para uma política com traços nacionalistas, ainda que estes sejam bem mais atenuados em relação ao que foram seus pares no passado. É o que se expressa principalmente na figura de Chávez, que tem se colocado como alternativa para importantes setores das massas na região, arrastando atrás de si inclusive setores que se reivindicam trotskistas. Aqui também pretende-se repetir como farsa aquilo que no passado se configurou como tragédia. As conclusões em relação ao nacionalismo burguês que tiramos do ascenso das massas nos anos 50-60 devem servir para fortalecer a convicção de que o movimento operário precisa levantar uma política independente em relação ao chavismo, sem a qual não vai conseguir responder aos problemas estruturais que ainda atravessam os países do subcontinente, como a reforma agrária e a emancipação do jugo imperialista.

 
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