Combate Classista

Teoria Marxista, Política e História contemporânea.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Crise de acumulação, Estado e classes sociais

 

Prof. Dr. Alessandro de Moura[1]

Resumo: O objetivo do artigo é discutir a crise estrutural de acumulação do capital que se estende desde a década de 1970 como uma "longa crise" que dura até o presente momento. Esta foi aprofundada por uma nova etapa da crise iniciada em 2008 e agravada pela pandemia de 2020. Por fim abordamos o surgimento da pandemia do covid-19 no marco da produção industrial em larga escala, considerando os impactos que tal produção desencadeia sobre o meio ambiente e outras formas de vida.

Introdução

A crise dos anos 1970 decorreu do fim do boom do pós-guerra, configurando-se como uma reestruturação do capitalismo global. Dentre as medidas adotadas no pós-crise estavam o ataque às conquistas e direitos da classe trabalhadora, reestruturação produtiva e tecnológica para poupar trabalho e baixar salários, bem como a desregulamentação dos mercados financeiros e abertura comercial das economias nacionais para novos fluxos monetários internacionais. Esse processo se deu sob hegemonia do capital financeiro, sobretudo porque a crise de superprodução dificultava a ampliação da produção. Em tal cenário, de excesso de capitais em circulação que não eram investidos na esfera produtiva, ganhou corpo a financeirização progressiva. A desregulamentação ampliou as liberdades e possibilidades de valorização dos capitais, favorecendo ainda mais a financeirização. Nesse processo, foram facilitadas as fusões de plantas produtivas, de capitais financeiros e bancos, com migração de remessas monetárias para variados países em busca por novos locais de valorização a juros e onde a força de trabalho era mais abundante, barata e com menos direitos trabalhistas.

O capital financeiro global especulava com o petróleo, compra e venda de commodities, de produtos manufaturados, ações, títulos de dívidas, moedas, imóveis etc. A dificuldade de valorização na produção, com grandes somas de recursos aplicados e reaplicados na especulação, ocasionou-se um inchaço na esfera financeira e alimentando bolhas especulativas. Embora essas medidas geraram certa recuperação dos lucros, com intensificação da taxa de exploração, no entanto, tal reestruturação do capitalismo após a crise dos anos 1970, não foi capaz de resolver a situação de superprodução e nem de recuperar as taxas de acumulação anteriores à crise. Seguiram-se décadas de baixo crescimento com uma série de crises internacionais, sendo que o crescimento do PIB per capita do período 1980-2000 foi menor do que o da fase de crescimento anterior. Doravante, no início da década de 2000 se desenvolveu um novo ciclo de expansão mundial, com crescimento econômico generalizado internacionalmente que durou até 2008, para novamente desembocar em uma nova crise econômica internacional que se estende até nossos dias, sendo aprofundada pela pandemia do Covid-19.

boom do pós-guerra: o fenômeno e suas contradições

O capitalismo passou por uma importante fase de crescimento e estabilidade no pós-segunda Guerra Mundial, caracterizada pelo economista Ernest Mandel como uma “longa onda expansiva”. (MANDEL, 1990, p. 26). Fruto de um conjunto de políticas de intervenção e regulação na economia (em grande medida definido no acordo de Bretton Woods em 1944), implementaram-se políticas que visavam: baixos índices de desemprego, regulação de fluxos de capitais e controle das desigualdades econômicas, com baixa intensidade nos conflitos de classe. Esse acordo entre os países do núcleo orgânico da economia internacional foi também, em meio à guerra fria, uma forma política e econômica de contrapor à expansão da perspectiva socialista no Ocidente.

Assim, as principais potências recorreram a um misto de políticas econômicas englobando o keynesianismo para intervir na estabilidade econômica, controle e pacificação das lutas de classes. De acordo com Mandel: “Após 1945, o objetivo número 1 havia sido a estabilização social e política dos principais países capitalistas (América do Norte, Europa Ocidental, Japão): daí a orientação para o pleno emprego e utilização prioritária de técnicas keynesianas”. (MANDEL, 1990, p. 277). Centrado sobretudo nos países ricos, esse período de boom econômico no pós-guerra, marcado por crises econômicas de menor intensidade, também foi chamado “era de ouro do capitalismo”, “anos gloriosos” ou período “fordista”. (HOBSBAWM, 2001). Nesse período (1950-1973), a economia mundial cresceu a uma taxa anual em torno de 5%.

Dentro desse processo, um vigoroso fluxo de investimento americano foi destinado para a reconstrução de alguns dos países que sofreram grande destruição durante a Segunda Guerra Mundial, sobretudo: Alemanha, Japão, Itália e França. De acordo com Arrighi: “a Alemanha (Ocidental), a Itália e o Japão se moveram, naquele período, com a ajuda maciça da nova potência hegemônica (os Estados Unidos)”. (1998, p. 61). Assim, a reconstrução do pós-guerra, com forte intervenção estatal na economia, está na base daquela nova fase de crescimento. Com tal política, segundo Brenner: “a maioria das economias capitalistas avançadas experimentou índices historicamente inéditos de crescimento de investimento, produção, produtividade e salários, junto com baixos índices de desemprego e apenas breves e moderadas recessões. (BRENNER, 2003, p. 54).

Os EUA, desde a primeira Guerra Mundial, acumulavam significativa reserva de ouro, conforme apontado por Eichengreen: “os Estados Unidos tinha exportado ‘commodities’ agrícolas e produtos manufaturados em troca de ouro e divisas estrangeira. As reservas de ouro americanas haviam crescido de US$ 1,3 bilhão em 1913 para US$ 4 bilhões em 1923”. (EICHENGREEN, 2007, p. 97). Ainda, segundo o autor: “Em 1926, os EUA possuíam quase 45% do estoque mundial de ouro. Um quarto desse volume era do chamado ouro livre – ou seja, ele excedia os 40% de cobertura exigido pelas leis do padrão ouro do país”. (Idem, p. 102). Isso tornou o país o principal pilar internacional do padrão ouro. Por esses e outros motivos, no período entre guerras, os Estados Unidos passaram à frente da Grã-Bretanha, assumindo a liderança nas esferas comercial e financeira”. (EICHENGREEN, 2007, p. 130). O autor destaca ainda que: “Em 1948, os Estados Unidos detinham mais de dois terços das reservas monetárias mundiais”. (Idem, 137). Por possuir as maiores reservas de ouro e garantir a conversibilidade do dólar em ouro, a moeda americana tornava-se mais robusta. Isso fez com que as outras economias mundiais atrelassem suas moedas ao dólar. Tal composição de fatores assegurava a hegemonia mundial aos EUA, que se tornou o polo organizador dos países capitalistas em oposição a URSS e seus aliados.

Os milagres econômicos na Alemanha e no Japão no boom do pós-guerra

No caso alemão, foi fundamental o financiamento internacional para a retomada da economia, Segundo Braga: “A reconstrução tem início em março de 1948, quando os aliados ocidentais fundam o novo Banco Central, o qual emite, em junho, a nova moeda, o marco (deutscheMark). Em 1957 surge o Deutsche Bundesbank, o banco central que existe até hoje”. (BRAGA, 1999, 210). Além disso, “a Alemanha permaneceria de posse de seu ouro e de suas reservas internacionais, o que se tornou possível pelo cancelamento (write off) de 2/3 da dívida contraída com os Estados Unidos após a guerra”. (BRAGA, 1999, 210). Outro destaque foi para a derrota das políticas liberais no país, tal qual se deu no Japão no mesmo período. Com grande investimento estatal “Entre 1949 e 1959 o crescimento econômico médio anual foi mais do que o dobro do ocorrido entre 1871 e 1913”. (Idem, 211).

Nesse processo, decidiu-se pela retomada da dinâmica industrial com investimento estatal em vários setores da produção, mas também pelo fomento à iniciativa privada, na chamada “Economia Social de Mercado”, que, segundo Braga: “propunha distanciar-se tanto do intervencionismo fascista ou socialista quanto do liberalismo de mercado anglo-saxão”. (p. 211). Tal política focava-se na “competição administrável” com forte mediação estatal, mas também na “política de estabilização e medidas anticíclicas; ética e política contra o laissez-faire”. (BRAGA, 1999, p. 212). O Estado assegurava condições infraestruturais necessárias ao desenvolvimento regulado e sustentado no qual “a concorrência intercapitalista não pode ter rédeas soltas, devendo ser ‘trabalhada’ pelo Estado”. (Idem). Também buscou-se incorporar setores das lideranças sindicais para planos de seguridade social e reajustes salariais.

Destinaram-se grandes investimentos em inovação, visando o aumento da produtividade para competitividade internacional. O Estado garantia acesso ao crédito de longo prazo, para alavancar a produção, configurando uma ampla gama de subsídios industriais, tanto para os setores naval, mineração, ferro, aço, confecções, têxteis, como para setores de alta tecnologia. (BRAGA, 1999, p. 213). Segundo o autor: “A presença de empresas públicas destacou-se nos setores de transportes (ferrovias), serviços de comunicações, eletricidade, gás, água, aquecimento dos distritos, habitacional, bancos e seguradoras”. (Idem, p. 214).

Esse conjunto de políticas fortaleceu as exportações, sendo que nos anos 1950: “as trocas de bens já geravam 20% de seu Produto Nacional Bruto (...). Entre 1950 e 1990, a sua participação nas exportações mundiais cresce de 3.5% para 12,1%, comportamento que assegurou uma balança comercial permanentemente superavitária (...)”. (p. 215). Notadamente, coube destacada importância aos bancos públicos, que tinham grande participação no total de operações bancárias, sendo em “1950, 45,6%; 1960, 55,7%; 1970, 57,1%. Tais percentuais dão a dimensão da importância histórica do Estado alemão na gestão creditícia desse país”. (BRAGA, 1999, p. 216). Para o autor: “O padrão de desenvolvimento que analisamos conduziu a Alemanha até as portas do século XXI como potência econômica hegemônica no continente europeu. (Idem, p.217).

No Oriente, dentro do processo de reconstrução do pós-guerra, o Japão foi escolhido como uma potência regional que deveria emergir como exemplo do capitalismo bem-sucedido no Leste Asiático. Arrighi destacou que, durante a guerra fria, os EUA se viram diante da “necessidade de melhorar a economia japonesa de modo a transformá-la num bastião e amostra da política americana de contenção do poder comunista na Ásia”. (1998, p. 118). Por isso passou a receber vultuosos fluxos de capital externo de investimento. Foram articuladas políticas de forte intervenção estatal e modernização tecnológica. Diferentemente dos países europeus, onde se contou com maiores margens de negociação e concessões trabalhistas, no Japão foi operada uma extensa repressão ao movimento operário e sindical para impor contenção das demandas salariais. Além disso, os EUA mantiveram seus mercados disponíveis aos produtos da Ilha e pressionava constantemente seus aliados para que fizessem o mesmo.

Arrighi apontou que outro elemento importante na composição do milagre de desenvolvimento do Japão foi da ampla rede de terceirização e subcontratação de mão de obra estabelecida, com baixos salários em múltiplas camadas e diversos níveis e em forma piramidal, primários, secundários, terciário e: “até que se atinja a base da pirâmide formada por uma grande quantidade de domicílios que subcontratam operações simples”. (ARRIGHI, 1998, p. 68). Com todos esses elementos, de acordo com Krugman: “o Japão emergiu das ruínas da guerra para se tornar a segunda maior economia do mundo – crescimento per capita de 8 por cento ao ano de 1953 a 1973”. (KRUGMAN, 1999, p. 44). O desenvolvimento sustentado desse país, que se tornou um centro dinâmico, impulsionou fortemente o crescimento regional no Leste asiático[2], sendo que o Japão só entrou em processo de desaceleração na década de 1990.

A reconstrução do pós-guerra se deu de forma relativamente rápida, sobretudo porque havia tecnologia e recursos disponíveis. Mesmo com seus parques industriais e produtivos destruídos, a importação de tecnologias e maquinários permitiu veloz reinstalação da produção e comércio nos países centrais. Com isso, de países destruídos, os mesmos passaram à posição de concorrentes dos Estados Unidos no mercado mundial:

O avanço dos Estados Unidos em matéria de produtividade de trabalho foi sendo gradualmente erodido, a participação do comércio americano no mercado mundial começou a se reduzir, as exportações europeias e japonesas de capitais conseguiram pouco a pouco um avanço paralelo à progressão da exportação de seus produtos industriais e multinacionais deixaram de ser somente americanas. Tanto quanto americanas e canadenses, elas se tornaram europeias ou, mais simplesmente, alemãs, britânicas, suíças, francesas e japonesas. (MANDEL, 1990, p. 304).

Desse modo, dentro da longa fase expansiva, segundo Chesnais, “os EUA deixaram de ter uma posição industrial incontestável pelos outros países e, ao mesmo tempo, deixaram de cumprir o papel que lhes tinha sido atribuído em Bretton Woods”. (CHESNAIS, 1996, p. 250). Essa ampliação da concorrência está na base da crise de superprodução que eclodiu em 1973.

Contradições do boom: desníveis salariais e repressão

Durante a fase de crescimento foram assimilados amplos setores de trabalhadores ao mercado de trabalho, o que ocasionou a ampliação do exército ativo de mão de obra, com redução do exército de reserva desempregado. De acordo com Hobsbawm “no fim dos anos dourados havia sem dúvida mais operários no mundo, em números absolutos, e quase com certeza maior proporção de empregados em manufatura na população global do que jamais houvera antes”. (HOBSBAWM, 2001, p. 297). No entanto, essa ampliação do exército ativo de trabalhadores contava com grandes níveis de desigualdade salarial e de vínculos empregatícios. Pois, mesmo nos países mais ricos, fazia parte do exército ativo, um amplo setor de trabalhadoras e trabalhadores mal remunerados, com baixos salários, trabalho precário, insalubres, de baixa qualificação e com vínculos instáveis (sobretudo mulheres, jovens e imigrantes). Segundo Mandel:

Essas categorias eram em geral mal pagas, restringindo-se às atividades não-qualificadas ou insalubres, utilizadas marginalmente e, portanto, aptas a ser expulsas massivamente do processo de produção logo que houvesse uma virada fundamental da conjuntura. Assim, não é nada espantoso que tal expulsão se tenha efetivamente se produzido em grande escala no curso da recessão de 1974/75, levando a esses três setores do proletariado taxas de desemprego mais elevadas do que para operários e empregados masculinos adultos, autóctones e pais de família. (MANDEL, 1990, pp. 16-17).

Além da desigualdade na estrutura de empregos e salários, de acordo com Brenner (2003), “Os salários reais foram assim forçados a baixar vis-à-vis o nível de produtividade, permitindo aos fabricantes obter grandes superávits em relação a seus estoques de capitais”. Ainda, segundo o autor: “As altas taxas de lucro desse modo asseguradas abriram o caminho para as altas taxas de acumulação de capital que dirigiram o boom ao fortalecer o rápido crescimento da produtividade, do emprego e dos salários (...)”. (BRENNER, 2003, p. 48). Esse autor destacou também que a repressão às reivindicações trabalhistas e os baixos salários estavam na raiz das altas taxas de crescimento e de lucros nesse boom do pós-guerra.

Outro aspecto importante do boom foi o desenvolvimento desigual de cada potência internacional “resultante do crescimento do comércio e da divisão mundial do trabalho” (BRENNER, 2003, p. 55). Os diferentes países se apropriaram do crescimento de acordo com a sua base produtiva e mercados. De acordo com Arrighi (1998), os países que compõem o núcleo orgânico da economia mundial foram os que mais se desenvolveram no período. Mesmo na Europa, países como Espanha, Portugal, Irlanda e Grécia, não tiveram o mesmo aproveitamento do período como tiveram a França, Alemanha e Inglaterra. O Mesmo se pode dizer em relação aos países do continente africano, América Latina e outros países do Leste Asiático. Conforme salientou Hobsbawm: “Hoje é evidente que a Era de Ouro pertenceu essencialmente aos países capitalistas desenvolvidos, que, por todas essas décadas, representaram cerca de três quartos da produção do mundo, e mais de 80% de suas exportações manufaturadas”. (HOBSBAWM, 2001, p. 255).

A reconstrução do pós-guerra acirrou a concorrência internacional

A rápida reconstrução ampliou consideravelmente a produção em escala mundial nos mercados globais, capacitando importantes economias para concorrência internacional. De acordo com Arrighi: “O resultado foi uma intensificação da competição intercapitalista, que foi o aspecto mais importante da crise de sobreacumulação do final da década de 60 e início de 70”. (ARRIGHI, 1998, p. 119). Segundo Brenner, essas regiões, combinaram “técnicas relativamente avançadas com salários relativamente baixos” e reduziram “de forma drástica os custos relativos de suas produções em comparação àqueles necessários para produzir os mesmos bens na economia americana, de desenvolvimento anterior”. (BRENNER, 2003, p. 56). No contexto do início da crise internacional, os EUA mudaram sua orientação da política de incentivo ao Japão. De acordo com Arrighi (1998), até o início da crise mundial no final da década de 1960, o Japão integrou o “clube dos países ricos” como convidado dos Estados Unidos, mas: “A crise de subreacumulação do final da década de 1960 e início da década de 1970 mudou tudo isso. (ARRIGHI, 1998, p. 109). Nesse ínterim:

O governo norte-americano parou de torcer o braço de seus parceiros europeus e de seus clientes leste-asiáticos para abrir espaço para a expansão capitalista do Japão. Começou, em vez disso, a torcer o braço do governo japonês para revalorizar o yen e para abrir a economia japonesa ao comércio e capital estrangeiros. (...). (ARRIGHI, 1998, p. 109).

De acordo com os autores arrolados, essa alta competitividade entre as potências globais conduziu à crise de superprodução e vertiginosa queda da taxa de lucros e de acumulação do capital internacionalmente nas décadas que se seguiram. Segundo Brenner:

O papel fundamental da intensificada competição internacional em forçar para baixo as taxas de lucros e conduzir a um excesso de capacidade de produção no setor manufatureiro, tanto nos Estados Unidos como nas principais economias capitalistas, evidencia-se no fato de que o declínio da lucratividade esteve pesadamente concentrado no setor de manufaturados, composto em sua maioria de bens “comerciáveis” e portanto vulneráveis à concorrência internacional. (...). (BRENNER, 2003, p. 58).

Essa crise marcou o fim da fase de equilíbrios instáveis do acordo de Bretton Woods, que se somou à crise no setor de manufaturados e crise energética (com destaque para indústria automobilística, construção civil, siderurgia e petroquímica). A explosão da crise internacional deu início a uma longa fase de baixo crescimento. Assim, passou-se de uma “onda longa expansiva” para uma “onda longa depressiva” com breves períodos de retomada de crescimento. (MANDEL, 1990: ANDERSON, 1995: CHESNAIS, 1996: HARVEY, 2003).

No entanto, na contramão desse processo o Leste Asiático experimentou uma nova fase de crescimento. (ARRIGH, 1998: HARVEY, 2017: MANDEL, 1990: BRENNER, 2003). Seguindo o Japão, outros países do Leste Asiático também tiveram altos índices de crescimento: “Ao longo dos 34 anos seguintes, a renda per capita da Coréia cresceu quase 7 por cento ao ano, um aumento de nove vezes em pouco mais de uma geração. (Idem, p. 44-45). E por último: “Finalmente chega a vez da China – um bilhão de pessoas cuja renda quadruplicou em menos de duas décadas. Nunca na história humana tantas pessoas desfrutaram de um avanço tão significativo”. (KRUGMAN,1999, p. 45). A partir do final da década de 1990 a China se converteu no centro da economia asiática e de outras regiões da periferia capitalista. O crescimento do Leste asiático impediu que a crise internacional fosse ainda mais grave e entrasse em uma fase de acentuada estagnação entre 1980 e 2000. Conforme assinalado por Gonçalves: “No período de estagnação (1973-1982), após a ruptura efetiva do sistema de Bretton Woods, o crescimento da economia mundial foi determinado, em grande medida, pelo dinamismo da Ásia e, em menor medida, pela América Latina”. (GONÇALVES, 2002, p. 112).

Da desaceleração à crise de superprodução 1965-1973

 A fase inicial da crise emergiu ainda na segunda metade da década de 1960 e expressou sua magnitude no início de 1973. (MANDEL, 1990: BRENNER, 2003: ARRIGHI, 1998). O excesso de capacidade de produção manifestou-se mais gravemente no setor manufatureiro da economia mundial, como apontou Brenner: “Foi o declínio nas taxas de lucro desse setor por todas as economias capitalistas avançadas o principal responsável pela projeção da economia mundial de um longo boom num longo declínio entre 1965 e 1973”. (BRENNER, 2003, p. 59). E, como chamou a atenção Arrighi, essa “crise econômica mundial que começou no final da década de 60 e, sob formas sempre mutáveis, permanece conosco desde então”. (ARRIGHI, 1998, pp. 76-77).

Na Europa, a produção industrial caiu vertiginosamente de 1965-1968 (MANDEL, 1990). Em conjunto, segundo Brenner: “Entre 1965 e 1973, o setor manufatureiro dos Estados Unidos experimentou uma queda de 43% na taxa de lucro sobre seu estoque de capital; já os setores manufatureiros das economias do G7 juntos, representando o setor manufatureiro internacional como um todo experimentaram um declínio na lucratividade na ordem de 25%”. (BRENNER, 2003, p. 57). Ainda, de acordo com o autor; “O que impediu os fabricantes de manterem suas taxas de lucro entre 1965 e 1973 foi claramente a capacidade de elevarem os preços acima dos custos em muito mais que a metade da taxa de suas contrapartes no setor de não-manufaturados”. (BRENNER, 2003, p. 59).

Em tal quadro, os Estados e os grandes bancos, das principais potências econômicas mundiais, correram para salvar os capitalistas que eram considerados “grandes demais para falir”. (KRUGMAN, 1999: ARRIGHI, 1998, CHESNAIS, 1996). Os grandes capitalistas receberam fartos investimentos e empréstimos que lhes permitiram reconstruir monopólios comerciais, industriais e investir grandes montas de capitais no capital financeiro. Esse processo gerou o endividamento dos Estados, das empresas e das famílias que recorriam aos créditos cada vez mais abundante. Por outro lado, os médios e pequenos capitalistas acabaram enfrentando as consequências mais desastrosas da crise nos variados ramos produtivos.

Na esteira dessas disputas entre potências internacionais, os Estados Unidos, com massiva emissão de moeda, optaram pelo fim do padrão ouro com lastro no dólar[3]. Em 1971 a hegemonia estadunidense teve sua crise aprofundada: “Durante o fim de semana de 13 de agosto, a administração Nixon fechou o guichê do ouro, suspendendo o compromisso de entregar ouro a governos credores em dólares a US$ 35 por onça ou a qualquer outro preço”. (EICHENGREEN, 2007, p. 179). Era o fim do padrão ouro e do equilíbrio de Bretton Woods.  Além de romper com o padrão ouro: “O governo americano impôs uma sobretaxa de 10% sobre a importação de mercadorias para pressionar outros países a valorizar suas moedas, dessa forma poupando-se do embaraço de precisar desvalorizar o dólar”. (Idem). Posteriormente, o país acabou decidindo pela desvalorização do dólar em relação às outras moedas mundiais (como o marco alemão, o iene e a libra esterlina).

Esse conjunto de medidas fez com que os produtos americanos se tornassem mais baratos no mercado internacional, o que por sua vez, aprofundou a crise e enterrou as tentativas de regulação dos mercados. Diante dessa falência do padrão monetário internacional, os EUA decidiram também pela adoção do regime de flutuação cambial em 1973. Sobre esse aspecto, Eichengreen apontou que: “A transição para o câmbio flutuante depois do colapso do Sistema de Bretton Woods foi um salto no escuro”. (EICHENGREEN, 2007, p. 187). No final da década de 1970 o governo estadunidense deliberou ainda pela elevação da taxa de juros (1979).  De acordo com a análise de Mandel:

O desmoronamento do sistema de Bretton-Woods, a inconversibilidade do dólar em ouro e a institucionalização do sistema chamado “taxas de câmbio flutuantes” provocam perturbações incontestáveis no comércio mundial, incitando a mudança dos movimentos do comércio. Assim, os Estados Unidos deliberadamente praticaram a queda do dólar no sentido de melhorar a competitividade de seus produtos manufaturados com relação aos da Alemanha Ocidental e do Japão. A Grã-Bretanha havia feito o mesmo com a libra esterlina quando da queda monumental dessa divisa no início de 1977. O Japão não agira diferentemente em meados de 1976, época das compras massivas de matérias primas, concentradas em um breve período, fazendo cair a cotação do iene. (MANDEL, 1990, p. 79).

O colapso do sistema de Bretton Woods gerou forte pressão para o avanço da integração econômica e comercial dos países membros da Comunidade Econômica Europeia. Nesse contexto, os países da Europa buscaram criar arcabouços institucionais que tornasse possível estabilizar suas moedas umas em relação às outras. (EICHENGREEN, 2007, p. 202). Em 1972 foi criada pela CEE a Serpente Monetária Europeia (Snack), que tinha como foco limitar a flutuação de moedas na Europa. Fazia parte das preocupações do Plano buscar formas de compensar o colapso do dólar. Em 1973 foi criado o Fundo Monetário de Cooperação Europeia para operações no continente. Posteriormente, a “serpente monetária”, deu lugar ao Sistema Monetário Europeu em 1979. Valendo-se das experiencias de cooperação e integração anteriores, o Sistema Monetário Europeu buscou consolidar mecanismos de controle e maior integração econômica e política, viabilizando a estabilização das taxas de câmbio entre as moedas europeias. Por meio do Sistema foi criada a unidade monetária europeia ECU (european curricy uniti) percursor direto do euro. (MANDEL, 1990: EICHENGREEN, 2007: SOUZA, 2016).

Nesse processo de reorganização econômica e produtiva, teve grande importância a introdução de tecnologias para poupar trabalho, diminuir postos de trabalho com ampliação do exército de reserva e da produção. O objetivo central era amenizar a queda da taxa de lucros, ampliar e baratear a produção para obtenção de vantagens na competição internacional. Foi travado um combate frontal para enfraquecer os sindicatos e seu poder de pressão na valorização dos salários. Tratava-se de impor significativas derrotas às greves e manifestações operárias que limitavam a ampliação da exploração do trabalho, isso foi feito por meio de uma ostensiva repressão sindical e política, reestruturação produtiva e ampliação das demissões. Conforme resumiu Mandel:

A “função histórica” da recessão de 1974/1975, para a burguesia internacional, foi precisamente a de acabar com o “pleno emprego” como objetivo prioritário da política econômica, monetária e social” e reintroduzir um desemprego massivo permanente, para obstruir o “mercado de trabalho”. (...). (MANDEL, 1990, p. 161).

E tal contexto, Mandel destacou que: “Após 1968 e sobretudo após 1973, a prioridade absoluta se tornou a retomada da taxa de lucro, se preciso ao preço do desemprego massivo e de um agravamento das tensões sociais”. (p. 277). Dessa forma, recorreu-se às demissões massivas, que tiveram como uma de suas consequências a resistência operária, contando com um ascenso das lutas e greves políticas de massa. Hobsbawm destacou que “Entre 1973 e fins da década de 1980, o número total de pessoas empregadas na manufatura nos seis velhos países industriais da Europa caiu 7 milhões, ou cerca de um quarto, mais ou menos metade dos quais entre 1979 e 1983”. (HOBSBAWM, 2001, p. 299). Doravante, a classe trabalhadora não aceitou passivamente a retirada de seus diretos e extinção de postos de trabalho. Houve mais de uma década de enfrentamento.

Forte resistência operária ao longo da década de 1970

Ainda durante o boom do pós-guerra registrou-se a eclosão de importantes levantes e revoluções proletárias, como na Chinesa em 1949, Coreia em 1950 e Cuba em 1959, essa última na vizinhança dos EUA. Na segunda metade da década de 1960 ganhou volume de massas as lutas por direitos civis, centrada sobretudo, na luta contra o racismo e as precárias condições que vivia a população negra e imigrante. Essas lutas se combinavam com as greves dos mineiros, caminhoneiros no EUA, e os protestos contra a guerra no Vietnã, bem como as lutas estudantis em 1968 e greves operárias na Europa. Na Indonésia, Suharto, impor uma ditadura, massacrou cerca de um milhão de pessoas entre 1965-1966. (HARVEY, 2017). Esses movimentos apontavam para os pontos críticos do boom do pós-guerra.

Mandel destacou que: “O crescimento das lutas na Europa Ocidental após o maio de 68 reforçou subjetivamente a combatividade e a consciência anticapitalista dos trabalhadores de numerosos países”. (MANDEL, 1990, p. 77). No caso do Brasil, tivemos as lutas estudantis em 1968, mas também o Primeiro de maio na Praça da Sé e as greves em Contagem e Osasco no mesmo ano (MOURA, 2015). Na Argentina abriu-se um processo pré-revolucionário entre 1969-1976. (WERNER: AGUIRRE, 2007). No Chile eclodiu uma generalizada rebelião operária com os cordões industriais no início de 1970. Movimentos massivos derrubaram a ditadura de Portugal em 1974, também ocorreram revoluções na Nicarágua e no Iran em 1979. No Brasil tivemos um ascenso das lutas operárias e movimentos sociais durante o período 1978-1983. (ANDERSON, 1995: HOBSBAWM, 2001: MANDEL,1990: WERNER: AGUIRRE, 2007: MOURA, 2015). Desta forma, a crise generalizada coincidiu “com um nível excepcionalmente elevado de organização, de força numérica, de combatividade do proletariado, e ao mesmo tempo uma fraqueza política excepcionalmente pronunciada do sistema burguês”. (MANDEL, 1990, p. 77, grifos do autor).

Nesse sentido, destaca-se que, mesmo com todos os ataques ao conjunto da classe trabalhadora, houve “Nos países imperialistas, o longo período de expansão fortaleceu objetivamente o peso e a força da classe operária” (Idem). Dentro desse processo, os sindicatos e partidos operários experimentaram um grande fortalecimento ao longo do período 1945-1970, além da ampliação da classe trabalhadora e suas organizações, bem como recebeu influência da expansão do marxismo, das experiências de luta de classe e das revoluções operárias.

Esses fatores político-sociais se colocaram com entraves ao livre avanço da burguesia mundial que buscava reduzir os “custos do trabalho” com redução dos salários e direitos, “impulso característico de toda fase de crise ou recessão”. As lutas operárias se combinaram com uma série de demandas que se multiplicaram pelos países industrializados tornando-se uma torrente histórica no período 1968-1982. Como apontou Hobsbawm: “Só nas décadas de 1980 e 1990 podemos detectar sinais de uma grande contração da classe operária”. (HOBSBAWM, 2001, p. 297). Desta forma, de acordo com Mandel, passou a uma fase de “pleno emprego” para uma fase de desemprego massivo:

(...) Já na recessão de 1969/71 tínhamos contado 10 milhões de desempregados no conjunto dos países imperialistas. Durante o inverno de 1975/1976, quando o desemprego atingiu seu ponto culminante, o número total de desempregados oficialmente reconhecido no conjunto dos países imperialistas se aproxima de 17 milhões. (MANDEL, 1990, p. 15).

De acordo com Hobsbawm: “As crises econômicas do início da década de 1980 recriaram o desemprego em massa pela primeira vez em quarenta anos, pelo menos na Europa”. (HOBSBAWM, 2001, p. 297). A modernização tecnológica e industrial contribuiu diretamente nesse processo. Paralelamente, Arrighi enfatizou que houve uma corrida ao corte de custos com “substituição de fontes de mão de obra remunerada mais cara por outras mais baratas no interior de todos os estados do núcleo orgânico” da economia internacional, com destaque para “a feminização da força de trabalho remunerado”, com ampla utilização de mão de obra imigrante, “frequentemente ilegal”. De acordo com Hobsbawm: “Em 1940, as mulheres casadas que viviam com os maridos e trabalhavam por salário somavam menos de 14% do total da população feminina dos EUA. Em 1980, eram mais da metade”. (HOBSBAWM, 2001, p. 304).

Esses processos deterioraram e precarizaram sobremaneira as condições de vida e salários dos trabalhadores de forma geral, tanto no núcleo orgânico da economia mundial quanto na semiperiferia e nos países propriamente periféricos. Com o aprofundamento da crise dos anos 1970 verificou-se o marcante aprofundamento da miséria, do desemprego e das desigualdades sociais decorridas dessa fase de estagnação. Os baixos salários e altos índices de desemprego fomentaram fortemente o endividamento das famílias.

Além dos ataques aos direitos sindicais e trabalhistas, no plano da organização do trabalho introduziu-se um pacote de medidas organizacionais que foi chamado de Toyotismo, que, em oposição ao fordismo do pós-guerra, previa a lean production e just in time, com pessoal reduzido e investimento em máquinas e equipamentos eletrônicos que dispensavam trabalhadores. Ainda, introduziu-se mão de obra terceirizada em larga escala, contratos temporários que enfraqueciam a organização sindical. Nesse processo: “As legislações em torno do emprego do trabalho assalariado, que haviam sido estabelecidas graças às grandes lutas sociais e às ameaças de revolução social, voaram pelos ares, e as ideologias neoliberais se impacientam de que ainda restem alguns cacos delas”. (CHESNAIS, 1996, p. 42).

Outro aspecto importante foi a realocação de fábricas e plantas produtivas, importação de mercadorias mais baratas e amplo uso de automação e implementação de tecnologias. (ARRIGHI, 1998, p. 330: CHESNAIS, 1996: MANDEL, 1990).  A empresas multinacionais também passaram a migrar com grande facilidade em busca de mão de obra mais barata e maiores lucros. As grandes corporações, com empresas organizadas em rede, com novas formas de gerenciamento, controle e contrato de trabalhadores e empresas terceirizadas, organizaram cadeias globais de produção e distribuição. Em tal contexto, as empresas-rede que aproveitaram largamente das tecnologias desenvolvidas e compartilhadas por suas corporações, encontraram nos bolsões mundiais mão de obra de baixo custo e flexibilidade (ou ausência) na legislação social e direitos trabalhistas.

O longo ciclo de baixo crescimento e estagnação

A crise de superprodução[4] criou uma longa onda de baixo crescimento, conforme analisado por Mandel: “Entre 1974 e 1975, a crise capitalista internacional conheceu a sua primeira recessão generalizada desde a II Guerra Mundial, sendo a única, até então, a golpear simultaneamente todas as grandes potências imperialistas”. (MANDEL, 1990, p. 9). Assistiu-se então a uma “sincronização internacional dos movimentos conjunturais nos principais países imperialistas ampliou o movimento de retração da atividade econômica”. (Idem, p.11). Com isso, compôs-se o cenário da crise internacional do capital. Conforme destacou Mandel: “Em 1975, a produção industrial e o Produto Nacional Bruto recuaram com relação ao ano anterior em todos os grandes países imperialistas”. (1998, p. 15). Essa tendência de queda da taxa de acumulação se afirmou ao longo das décadas de 1980-2000.

Dentro desse ciclo de baixo crescimento e progressiva financeirização, nessas décadas seguintes, novas crises profundas eclodiram, como a crise da bolsa americana de 1987, a crise do Japão em 1990/1991, México em 1994, asiática em 1997, Rússia em 1998, Brasil em 1999, Argentina em 2000, NASDAQ em 2001 e a crise imobiliária nos EUA em 2007-2008. (MANDEL, 1990: CHESNAIS, 1996: BRENNER, 2003; CORSI, 2006: 2011: HARVEY, 2012).

O predomínio do capital financeiro sobre as economias nacionais

No início dos anos 1980, nos Estados Unidos, Reagan fortaleceu o dólar por meio do aumento dos juros, passando de 6% ao ano para 20% (isso gerou a crise da dívida na América Latina[5]). O objetivo era recompensar de forma abastada o capital financeiro, evitando fuga de capitais e atraindo capitais externos para cobrir os déficits em conta corrente. Para isso, o governo Reagan também desregulamentou os mercados financeiros e de capitais para favorecer o capital especulativo. Os juros altos acabam por conter a demanda interna, os empréstimos e as importações.

 Nessa fase de abertura[6] das economias nacionais para os fluxos de capitais internacionais, com desregulamentação financeira, os investimentos externos deveriam ter toda a liberdade para valorizar-se em qualquer terreno mundial. Esse processo, iniciado timidamente durante a década de 1960, ganhou espaço e estímulo durante a década de 1970 e consolidou-se durante a década de 1980 nas principais economias, ocasionando inchaço da esfera financeira e do capital fictício. Os grandes bancos internacionais, trustes, grandes oligopólios nacionais, continentais e mundiais foram os mais favorecidos nessa fase. Com grandes massas de recursos disponíveis, esses setores beneficiando-se largamente da mundialização financeira que foi marcada pela “desregulamentação ou liberalização monetária e financeira, a desintermediação e a abertura dos mercados financeiros nacionais”. (CHESNAIS, 1996, p. 261). O processo favoreceu o capital especulativo e capital fictício. Mandel destacou que, com isso, crescia uma:

(...) superacumulação de capitais que não são investidos produtivamente, e a razão é bastante simples. Há enormes capacidades excedentes, superproduções reais ou potenciais que pesam no mercado. Há automóveis, aviões, eletrodomésticos em demasia para que se possa produzir. (...). (MANDEL, 1990, p. 321).

Como visto, a desregulamentação ou liberalização dos mercados nacionais foi parte central da reconfiguração da regulação do período que se seguiu à dirupção da fase de Bretton Woods. Essa restruturação do capitalismo global articulou uma variada gama de elementos, que foram desde a introdução de tecnologias para ampliar a produção e poupar trabalho, desregulamentações nacionais, agigantamento da esfera produtiva e a busca por novos espaços de acumulação de capital na Ásia. Acrescentou-se a isso as novas possibilidades de valorização de capital nos antigos Estados de transição socialista no período 1989-1992. (EICHENGREEN, 2007: MANDEL, 1990, CHESNAIS, 1996, GONÇALVES, 2003).

Os grandes grupos, visando à recuperação de suas taxas de lucro, realizaram intensos e permanentes processos de fusões, incorporações e aquisições de empresas em escala mundial, o que lhes permitiu formar uma imensa massa de capitais para os Investimentos Externos Diretos no mercado internacional, que “deslanchou na década de 80, diretamente ligado ao processo de liberalização e desregulamentação”. (CHESNAIS, 1996, p. 185). Com isso, no domínio e na rivalidade internacional, reafirmou-se o predomínio dos grandes oligopólios internacionais que concentraram capitais em setores mais lucrativos da economia mundial. Essas grandes empresas, trustes e oligopólios internacionais puderam atuar com ampla margem de lucratividade nas privatizações de empresas públicas nos países em desenvolvimento, isso tudo com auxílio dos Estados nacionais e grandes bancos. Segundo análise de Arrighi: “Os governos do núcleo orgânico começaram a oferecer máxima liberdade de ação a instituições capitalistas engajadas na especulação financeira e encorajaram ainda mais essa tendência, alienando os próprios bens e receitas futuras por uma pechincha”. (ARRIGHI, 1998, p. 286).

No entanto, embora de imediato se tenha possibilitado uma certa recuperação da economia, todas essas medidas não foram capazes de recuperar as taxas de acumulação anteriores à crise. Durante a década de 1980 o crescimento mundial foi menor do que o da anterior e o crescimento da década de 1990 foi ainda menor do que o da década de 1980. A economia dos países mais ricos do mundo continuava com baixo crescimento, sobretudo por causa do baixo investimento na produção. Essa tendência fica clara no gráfico apresentado por Michael Roberts (2020):

Gráfico 1 - Taxa de crescimento do capital no G7 (em relação ao PIB)

Fonte: ROBERTS, 2020.

Com todos os impactos da crise dos anos 1970, crise de superprodução, choque do petróleo, durante a década de 1980, assistiu-se a um crescimento ainda mais lento: “Tudo incluído, o crescimento econômico na década de 1980 foi mais lento do que nos anos 1970, tão atormentado pela crise do petróleo”. (BRENNER, 2003, p. 86). Ainda, de acordo com o autor: “Durante a maior parte da década de 1980, as economias capitalistas avançadas fora dos Estado Unidos conheceram não só o aperto monetário e uma progressiva restrição do crescimento salarial, mas também um aumento desacelerado dos gastos governamentais para reduzir os custos e aumentar a lucratividade’. (BRENNER, 2003, p. 89).

Nesse ínterim, emergiu a hegemonia do capital financeiro rentista, que engordava às custas do Estado. Isso porque a crise não queimou totalmente os capitais sobressalentes. A consequência disso foi a grande liquidez de capitais. Nesse processo, o Investimento Externo Direto suplantou o comércio exterior, as remessas de capitais em circulação internacional tornaram-se gigantescas, em busca de valorização, investimentos destinados a produção de matérias primas (commodities), manufaturados e serviços. Segundo Brenner:

A partir da década de 1980, imensas bolhas financeiras incharam por todas as economias capitalistas avançadas, em especial nos mercados de ações, nas fusões e aquisições e nos imóveis comerciais, com a demanda especulativa  elevando  o valor dos ativos e com os investidores efetuando suas compras na expectativa de que, havendo subido no passado, o valor dos ativos continuariam subindo no futuro. Mas o resultado foi principalmente a escalada sem precedentes do endividamento das empresas não financeiras, que gastaram centenas de bilhões de dólares emprestados em aquisições alavancadas e na recompra de suas próprias ações, e uma cada vez maior fragilidade financeira dos bancos, que em grande parte financiou as ondas especulativas. Em 1987, os mercados de ações americanos caíram, abalando seriamente o sistema. Mas a inundação da moeda, facilitada pelos principais governos capitalistas para restaurar a estabilidade, foi de maneira pensada utilizada para financiar um último lande especulativo. (...). (BRENNER, 2003, p. 87-88).

Em meio a tais liberalizações agigantaram-se as possibilidades de lucros para os grandes oligopólios internacionais. Debatia-se inclusive a impotência dos Estados Nacionais e seus governos frente à força econômica e política dos grandes conglomerados mundiais. Os governos, sobretudo os de países em desenvolvimento, faziam infinitas manobras para atrair fatias dos investimentos internacionais, no intento de que esse fluxo se mantivesse o mais constante possível. Outro elemento importante foi o redirecionamento dos fundos públicos, antes provisionados para gastos sociais, para o mercado financeiro, destacando-se a ampliação da dívida pública.

A desregulamentação dos mercados domésticos, do comércio e das finanças internacionais foram fundamentais para assegurar maiores possibilidades de lucros, isso tanto para as multinacionais que, ocupam um espaço dominante no comércio mundial, como para os grandes bancos e grupos financeiros. No que tange as multinacionais, Chesnais apontou que na década de 1990 as corporações e multinacionais já dominavam cerca de 70% do mercado mundial. (CHESNAIS, 1996).

Outro aspecto da reestruturação da economia internacional foi o programa de liberalização, chamado de neoliberal. Conforme analisou Arrighi: “Entre 1970 (segundo “choque do petróleo”) e 1982 (calote mexicano), a maré virou. A contrarrevolução Reagan-Thatcher entrou em cena e a crise geral dos esforços de desenvolvimento (Sul e Leste) foi precipitada”. (ARRIGHI, 1998, p. 286). Na Inglaterra, o governo Margaret Thatcher foi: "o primeiro regime de um país de capitalismo avançado publicamente empenhado em pôr em prática o programa neoliberal. Um ano depois, em 1980, Reagan chegou à presidência dos Estados Unidos". (ANDERSON, 1995). Em 1982 foi a vez da Alemanha, em 1983 a Dinamarca. Assim, segundo o autor: "Em seguida, quase todos os países do norte da Europa ocidental, com exceção da Suécia e da Áustria, também viraram à direita". (ANDERSON, 1995). Ainda de acordo com a definição de Perry Anderson:

O que fizeram, na prática, os governos neoliberais deste período? O modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado. (ANDERSON, 1995, p. 12).

Em síntese, desde a eclosão da crise de superprodução, ao longo das décadas que se seguiram, expandiu-se rapidamente o enorme montante de capital fictício. A grande valorização dos capitais operou, centralmente, por meio de especulação com título da dívida pública, commodities, imóveis, moedas etc. Ao mesmo tempo, o capital valorizado na especulação passou a ser reaplicado na própria especulação alimentando bolhas especulativas. Essas saídas, ao invés de contribuírem para superar a crise de superprodução, acabou permitindo que o excesso de capital se perpetuasse, fazendo a crise tornar-se crônica (BRENNER, 20003). Esse cenário era indicativo de que a valorização do capital continuava encontrando dificuldades de se realizar na produção e retroalimentava a expansão da especulação. O excesso de capital, com a existência de capacidade ociosa e grande volume de capital fictício, deu um caráter instável à economia mundial nas últimas décadas e criou constantes bolhas especulativas que explodiram em graves crises econômicas e vasta queima de capitais.

Crise estrutural, degradação ambiental e pandemia

David Harvey no livro O novo imperialismo, publicado originalmente em 2003, apontou que se iniciou uma nova fase de degradação ambiental a partir da crise estrutural do capitalismo iniciada em 1973. Além das incursões para privatização de recursos naturais, como rios, água da chuva etc., recorreu-se mais frequentemente à degradação na natureza, burlando inclusive regras estabelecidas pelos próprios empresários e Estados nacionais, caracterizando novas formas de acumulação por espoliação para elevar as taxas de lucro e recompor níveis de acumulação de capital.

A pilhagem dos recursos naturais e bens coletivos, com biopirataria, extração e comércio ilegal de recursos naturais, depredação e espoliação de recursos naturais (terra, as florestas, a água e ar), bem como a degradação de habitats, roubo e patente de conhecimentos e produtos de populações tradicionais, foram novamente alavancas de recomposição dos lucros para amenizar a queda tendencial da taxa de lucros a partir dos anos 1970. A pilhagem da natureza constitui uma forma de adquirir vantagens competitivas entre os próprios capitalistas. De acordo com o autor: “A acumulação por espoliação se tornou cada vez mais acentuada a partir de 1973, em parte como compensação pelos problemas crônicos de sobreacumulação que surgiram no âmbito da reprodução expandida”. (HARVEY, 2017, p.129). Ou autor argumenta que: “A acumulação do capital tem de fato caráter dual. Mas os dois aspectos, o da reprodução expandida e o da acumulação por espoliação, se acham organicamente ligados, entrelaçados dialeticamente”. (HARVEY, 2017, p. 144).

As intervenções invasivas do atual modo de produção sobre a natureza geram variadas crises no meio ambiente, sobre outros seres vivos e microorganismos. A esfera socioeconômica invade a esfera biológica, perturbando substancialmente a composição microbiológica e seus equilíbrios. São tais perturbações que criam as transferências zoonóticas (de animais para os humanos). Nesse sentido, evidencia-se a estreita relação entre a economia, a microbiologia e a epidemiologia. (CHUANG, 2020).

A devastação ambiental soma-se à fragilidade dos sistemas de saúde pública no capitalismo industrial, isso possibilita que pandemias encontrem terreno fértil para se desenvolver e se espalhar rapidamente. Também, a vulnerabilidade da saúde da população mundial, a má alimentação, desnutrição, pobreza, extensas jornadas de trabalho que fragilizam o corpo humano. Na sociedade global investe-se mais em tratamento do que em prevenção, a população trabalha demais e recebe cuidados de menos. As doenças são fontes de lucro para a indústria farmacêutica, por isso, é lucrativo remediar ao invés de prevenir. Essa lógica cria e recria barreiras constantes para a medicina preventiva. (CHUANG, 2020: HARVEY, 2020: DAVIS, 2020, BIHR, 2020).

A degradação da saúde da comunidade mundial

Desde a falência do sistema Bretton Woods e o surgimento do neoliberalismo, constitui-se, na esfera mundial, um frágil sistema de saúde, precarizado intencionalmente, mas que recebe multidões de pessoas que tiveram sua saúde fragilizada pela sociedade industrial de ritmo toyotista. Por isso, Harvey aponta que as décadas de neoliberalismo "deixaram o público totalmente exposto e mal preparado para enfrentar uma crise de saúde pública desse calibre, apesar de sustos anteriores como a SARS e o Ebola fornecerem avisos abundantes e lições convincentes sobre o que seria necessário ser feito". (HARVEY, 2020).

Nesse sentido, o coronavírus (COVID-19) é um efeito colateral da forma social na qual vivemos: cidades superlotadas, precariedade das moradias, sistema precário, medicina focada em sintomas, indústria farmacêutica centrada no lucro, população mal alimentada (junk foods), comida envenenada por hormônios e agrotóxicos etc. Com tal conformação, de tempos em tempos, as pandemias explodem em diversas regiões do mundo. Lembremos que a Gripe espanhola (influenzavirus H1N1) disseminou-se como pandemia devido às péssimas condições de vida, precários cuidados da saúde, higiene, alimentação e moradia durante a primeira guerra mundial.

A alta densidade populacional humana nos grandes centros industriais e produtivos faz dos seres humanos alvos fáceis para diversos hospedeiros. Harvey relembra que "as epidemias de sarampo, por exemplo, só se manifestam em grandes centros populacionais urbanos, mas desaparecem rapidamente em regiões pouco povoadas". (HARVEY, 2020). As densas metrópoles mundiais vivem em constante intercâmbio entre si, sendo que, "uma das desvantagens do aumento da globalização é como é impossível impedir uma rápida difusão internacional de novas doenças. Vivemos em um mundo altamente conectado, onde quase todo mundo viaja. As redes humanas para potencial difusão são vastas e abertas". (Idem).

            Dentro dessa perspectiva, a atual crise do COVID-19 é parte de uma crise orgânica da forma de produção e distribuição de mercadorias nos circuitos mundiais. O desmatamento, a agricultura de commodities, com eliminação de habitats naturais, utilização agrotóxicos, as grandes monoculturas modificadas geneticamente, bem como a utilização de hormônios e antibióticos em aves e demais animais de abate, são fatores determinantes da pandemia. Tais condições socioeconômicas produzem e disseminam surtos mundiais, como a do Ebola, a Gripe aviária, a Gripe suína e SARS. (CHUANG, 2020, HARVEY, 2020).

O coronavírus globalizado e a classe trabalhadora

Mike Davis (2020), também destacou que "A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo". Para o autor, por serem produtos da indústria de massa, não caberia à classe trabalhadora pagar por elas. O Estado e suas burguesias que lucraram com o trabalho de milhões, deveriam assegurar as condições de vida da população em meio à pandemia. No entanto, frações da classe trabalhadora seguiram produzindo em setores essenciais, da agricultura, das fábricas, transportes, serviços etc. (e gerando lucro para a burguesia). Em vários países a quarentena foi tardiamente e mal aplicada. Isso agravou o número de óbitos pelo mundo, em setembro de 2020, segundo dados oficiais e notadamente subnotificados, já se tinha passado de 1 milhão de mortos pelo mundo. A tendência é o aumento das mortes até a vacinação em massa, prevista para o fim de 2020 e início de 2021.

A massa de novos desempregados gerada pela pandemia somou-se aos milhões de trabalhadores que sofrem com o desemprego estrutural e subempregos de uma economia em desaceleração desde a crise de 2008. Esse período de baixo crescimento econômico (2008-2020) de acordo com Roberts (2020d), teve como característica a queda dos lucros e baixo nível de investimento em nível mundial. Essa dinâmica fica clara no gráfico a seguir, apresentado pelo autor, que destaca a queda dos lucros das corporações globais:

Gráfico 2 - Média ponderada dos lucros corporativos globais


FONTE: ROBERTS, 2020d

A produção industrial americana, que teve crescimento zero em 2019, registrou uma queda de 35,5% no segundo trimestre de 2020. Até o dia 01 de outubro de 2020, 62,7 milhões de trabalhadores entraram com pedido do seguro desemprego nos EUA[7]. O país, que já contabilizou mais de 200 mil mortos pela Covid-19, assistiu a um declínio no seu PIB de mais de 4,8% no primeiro trimestre de 2020 e uma queda de 31,4% no segundo trimestre, essa foi a maior retração desde a Grande Depressão de 1930[8]. O PIB da Zona do Euro registrou contração de 3,8% no primeiro trimestre de 2020 e uma nova retração de 11,8%[9] no segundo trimestre. O da Alemanha declinou 2,2% no primeiro trimestre e em mais de 10%[10] no segundo. O da França caiu de 5,8% no primeiro trimestre e quase de 14%[11] no segundo. O Japão teve a queda anualizada foi de 27,8% no segundo trimestre de 2020[12]. Em junho, o FMI apontava uma queda de 4,9 no PIB mundial[13].

Nesse contexto, segundo comunicado da OCDE “100 milhões de novos pobres é a estimativa do diretor-geral de Desenvolvimento e Cooperação da OCDE”.[14] Nesse total “as mulheres, os jovens e os trabalhadores com baixos rendimentos estão a ser os mais afetados”[15]. Conforme apontado pela ONU/CEPAL, em janeiro de 2019: “Extrema pobreza aumenta na América Latina e atinge nível mais alto desde 2008”[16]. Em março de 2020 a ONU projetou que “O número de pobres na América Latina pode crescer em 35 milhões devido ao coronavírus COVID-19”. Em 16 de julho a ONU revisou os números, prevendo uma contração de -9,1% em 2020[17] e, no inicio de setembro de 2020 apontou que “Pandemia deixará mais de 176 milhões de pessoas na pobreza”[18]. Destacou ainda que: “Como resultado da crise provocada pela pandemia da COVID-19, a população em condições de extrema pobreza na América Latina e Caribe poderia chegar a 83,4 milhões de pessoas em 2020, o que implicaria um aumento significativo nos níveis de fome”[19].

No caso do Brasil, a crise pretérita somou-se à nova crise do coronavírus. O país, que já havia apresentado um PIB pífio em torno de 1% em 2019 e início de 2020, teve sua situação econômica brutalmente deteriorada ao longo dos meses de pandemia. Em 14 agosto de 2020 o IBGE anunciou a existência de 41 milhões de desempregados[20]. Com isso, durante a pandemia, mais de 150 milhões brasileiros solicitaram o auxílio emergencial, desses quase 70 milhões foram atendidos pelo programa. Segundo os dados do Dieese (24 de setembro de 2020), por consequência da pandemia, houve uma “queda histórica de -9,7% do PIB brasileiro no segundo trimestre”[21]. (Dieese, 2020). O estudo apontou que esse foi: “o pior resultado desde o início da série histórica, iniciada em 1996”. O consumo das famílias caiu 12,5%, a Formação Bruta de Capital Fixo declinou 15,4% e o consumo do Governo diminuiu em 8,8%. A pesquisa constatou que a Indústria de transformação sofreu retração de 17,5% e que o Comércio declinou 13%. Em consequência desses processos: “Quase 9 milhões de pessoas perderam o trabalho durante a pandemia”. (Dieese, 2020). Como agravante, até o final de setembro, de acordo com o Dieese, os preços da cesta básica sofreram elevações significativas, aumentando 16,2% em Salvador, 13,2% em Aracaju, e 11,5% em Recife e 6,6% em São Paulo. (Dieese, 2020). Mesmo em tal contexto, o Governo Federal reduziu pela metade o auxílio emergencial, o que por sua vez, de acordo com o estudo do Dieese: “diminuirá o montante de dinheiro em circulação e tornará ainda mais dramática a questão da fome no Brasil”. (Dieese, 2020).

Esse cenário evidencia que a pandemia, eclodindo em meio à crise econômica mundial que se arrasta nos últimos anos (2008-2020), aprofundou a recessão e intensificou o declínio da atividade econômica, com uma onda de falências de empresas, comércios e fábricas, também significativas perdas na bolsa de valores, com destruição massiva de capitas. Conforme analisado por Harvey, a quarentena mundial: "diminui a demanda final, enquanto a demanda por matérias-primas diminui o consumo produtivo". (HARVEY, 2020). Também as atividades de turismo desaceleram abruptamente, gerando paralisia dos seus serviços correlatos. Isso ocasionou ondas de inadimplência, interrupção do pagamento de dívidas, mensalidades, financiamentos de casas, carros, aluguéis etc. As falências são seguidas por fechamento de postos de trabalho e demissões, queda da arrecadação dos Estados.

Nesse sentido, é falsa a ideia segundo a qual "estamos todos no mesmo barco", como se não existissem determinações socioeconômicas de classe. Estamos no mesmo mar, mas com condições distintas, uns com transatlânticos, outros com lanchas, uns com barcos a remo, outros nadando contra a maré, e alguns nem podem nadar e ficam à deriva. Amplas camadas da classe trabalhadora não puderam optar pela quarentena remunerada, principalmente nos setores de trabalho mais precários e de baixos salários (como o da limpeza, transporte, manutenção e alimentação). Nesses setores está alocada grande parte da população negra e mais empobrecida, amplas massas do subproletariado, que são ampla maioria entre os mortos pelo vírus. Por isso Harvey aponta que "o progresso da COVID-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça". (HARVEY, 2020). As hierarquias e privilégios de classe se reafirmaram e se reproduziram em larga escala durante o surto epidêmico.

Considerações finais

Conforme apontamos, a pandemia não criou a crise econômica mundial de 2020, esta já se fazia presente desde 2008, o economista americano Michael Roberts (2016) chegou a caracterizá-la como a “grande recessão”. Depois do ciclo de expansivo de 2003-2008 a economia global passou a sofrer severa desaceleração. Desencadeada a partir do estouro da bolha especulativa com títulos no imobiliários nos EUA, a crise rapidamente se espalhou para os principais mercados mundiais de capitais e no sistema financeiro internacional. O estouro da bolha gerou a contração da liquidez internacional, transformando-se em uma crise de investimentos, comercial e produtiva, atingindo acúmulo de capital, emprego e renda. Suas principais características são a permanência de capacidade produtiva ociosa em âmbito global em diversos setores, como siderúrgico, eletrônico automobilístico etc., mas também altos níveis de desemprego, baixo crescimento e recessão em variados países.

A crise de 2008 só não atingiu os patamares da crise prolongada de 1929 por causa da intervenção massiva e rápida dos países mais ricos do mundo, sobretudo dos EUA. Em 2019, como apontou o economista britânico Michael Roberts (2020b)[22]: “Os EUA estão crescendo a apenas 2% ao ano, Europa e Japão a só 1%; e as maiores entre as assim chamadas economias emergentes do Brasil, México, Turquia, Argentina, África do Sul e Rússia estão basicamente estáticas”. A crise de 2020 é a mais grave desde a crise de 1930. Precisaremos de mais tempo para analisar a totalidade dos impactos da atual crise, que se deu dentro de um amplo movimento de queda tendencial da taxa de lucros que se arrasta desde os anos 1970. Mas, as expectativas econômicas não são nada boas. No campo político, em variados países eclodiram revoltas e lutas de trabalhadores para evitar o pior. É dessa reorganização, ainda insipiente, que podem surgir formas de controle da produção e reorganização social.

 

BIBLIOGRAFIA

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[1] Doutor em Ciências Sociais pela Unesp-Marília. Pós-doutorando em História econômica pela USP. Professor convidado no Programa de Pós-graduação da PUC-SP.

Este artigo foi publicado originalmente no dossiê n⁰3 (outubro de 2020), da Revista Fim do Mundo, da Unesp: https://revistas.marilia.unesp.br/index.../RFM/issue/current

[2] Nos referimos aos chamados de tigres asiáticos: Hong-Kong, Taiwan, Cingapura, Coréia do Sul e China. Nesses países, assim como no Japão, verificou-se importante industrialização e modernização tecnológica com forte intervenção estatal. A segunda geração emergente incluiu os Novos Países Industrializados (NICs): Indonésia, Tailândia e Malásia, Filipinas e Vietnã. (CANUTO, 1994).

[3]De acordo com Chesnais: “O fim do gold Exchange standard, decretado unilateralmente pelos EUA em agosto de 1971, é produto dessas condições como um todo. O principal fator interno, de exclusiva responsabilidade dos EUA, foi a explosão da dívida federal, conjugada a um déficit crescente na balança de pagamentos. A criação desenfreada de meios monetários para financiar a emissão de bônus do Tesouro tornou insustentável a manutenção da paridade dólar-ouro. A partir de 1965, o duplo déficit do orçamento e dos pagamentos externos, agravado pelo financiamento da guerra do Vietnã, traduziu-se por emissões de dólares, cuja conversão ao ouro era pleiteada imediatamente pelos outros países. As reservavas de Fort Knox estavam se esvaziando. A impossível conversão dos dólares em ouro, à paridade decidida em Bretton Woods ou próxima a esta, evidenciava todas as contradições do gold Exchange standard (...)”. (CHESNAIS, 1996, p. 250).

 

[4] Segundo o autor: “Desde a formação do mercado mundial do capitalismo industrial, houve exatamente vinte crises de superprodução com intervalos mais ou menos regulares. São elas: de 1825, 1836, 1847, 1857, 1866, 1873, 1882, 1900, 1907, 1912, 1921, 1929, 1937, 1949, 1953, 1958, 1961, 1970 e a de 1974/1975 (...)”. (p. 37). Posteriormente Mandel adicionou a crise de 1987.

[5]De acordo com Harvey: Foram os pobres das regiões rurais do México, da Tailândia e do Brasil que mais sofreram com as depreciações causadas pelas crises financeiras dos anos 1980 e 1990. (HARVEY, 2017, p.113).

[6]De acordo com Chesnais: “O termo “abertura” designa dois processos: aquele relativo às barreiras internas, anteriormente estanques, entre diferentes especializações bancárias ou financeiras, e aquele relativo às barreiras que separam os mercados nacionais dos mercados externos. Abertura significa ainda o fim dos segmentos e especializações anteriores. Com efeito, trata-se de processos indissolúveis”. (CHESNAIS, 1996, p. 264).

[7]https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/01/pedidos-de-seguro-desemprego-nos-eua-voltam-a-cair-mas-seguem-longe-de-patamar-pre-pandemia.ghtml

[8] https://www.infomoney.com.br/economia/pib-dos-eua-no-segundo-trimestre-e-revisado-para-queda-de-314-em-termos-anualizados/

[9]https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/09/08/pib-da-zona-do-euro-sofre-contracao-menor-do-que-se-estimava-no-2-trimestre.htm

[10]https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/30/alemanha-tem-queda-de-101-do-pib-no-2-trimestre.htm#:~:text=A%20Alemanha%20registrou%20no%20segundo,(Escrit%C3%B3rio%20Federal%20de%20Estat%C3%ADsticas).

[11]https://economia.uol.com.br/noticias/afp/2020/07/31/pib-franca-registra-queda-historica-de-138-no-2-trimestre.htm#:~:text=O%20Produto%20Interno%20Bruto%20(PIB,c%C3%A1lculo%20da%20atividade%20econ%C3%B4mica%20trimestral.

[12] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,japao-tem-queda-recorde-de-27-8-no-pib-do-2-trimestre,70003402553

[13] https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/06/24/fmi-revisa-previso-de-crescimento-global-de-3-pontos-percentuais-para-49-neste-ano.ghtml

[14]https://www.rtp.pt/noticias/mundo/covid-19-ocde-estima-em-mais-de-100-milhoes-de-novas-pessoas-em-pobreza-extrema_a1246007

[15] http://www.oecd.org/coronavirus/pt/

[16]https://nacoesunidas.org/extrema-pobreza-aumenta-na-america-latina-e-atinge-nivel-mais-alto-desde-2008-diz-cepal/#:~:text=Close%20the%20sidebar-,Extrema%20pobreza%20aumenta%20na%20Am%C3%A9rica%20Latina%20e%20atinge,alto%20desde%202008%2C%20diz%20CEPAL&text=A%20taxa%20geral%20da%20pobreza,registrados%20em%202015%20e%202016.

[17] https://www.cepal.org/pt-br/comunicados/contracao-atividade-economica-regiao-se-aprofunda-devido-pandemia-caira-91-2020

[18] https://jovempan.com.br/noticias/mundo/onu-pandemia-176-milhoes-na-pobreza.html

[19]https://www.cepal.org/pt-br/comunicados/fao-cepal-milhoes-pessoas-podem-cair-extrema-pobreza-podem-passar-fome-2020-america

[20]https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/08/15/com-pandemia-41-milhoes-estao-sem-emprego.htm

[21] https://www.dieese.org.br/boletimdeconjuntura/2020/boletimConjuntura024.html

 
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