Combate Classista

Teoria Marxista, Política e História contemporânea.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Eleições 2022 no Brasil: breve nota para um balanço crítico

Alessandro de Moura



O comportamento eleitoral da primeira rodada de 2022 mostrou como o discurso conservador continua colando forte pelo Brasil afora, sobretudo em São Paulo, Estado mais rico e desenvolvido do país. Os grandes meios de comunicação e setores da Igreja tiveram papel central na composição desse quadro. Mas, dentro dele, o reformismo lulista recuperou votos em relação a 2018. Com isso, os candidatos prediletos alcançam votação significativa. O partido que ocupa a máquina estatal tende a ter uma vantagem na largada. Mas, frente ao desgaste e descontentamento com o governo Bolsonaro, Lula recebeu 48,4% dos votos válidos. Certamente, parte da população espera que Lula possa, de alguma forma, trazer de volta o período de crescimento decorrido na primeira década dos anos 2000. O PT, considerando os índices de desaprovação do governo Bolsonaro, apostou numa vitória rápida, mas foi surpreendido com metade do eleitorado votando no direitista (43,2% dos votos válidos).

Embora se deva considerar a influência da conjuntura, é necessário pontuar a responsabilidades sócio-históricas que o PT tem no quadro político do presente. Sobretudo por atuar continuamente como um partido da patronal, dos acordos por cima, negociatas etc., mas também por fazer uso dos mesmos discursos, das mesmas práticas e até da mesma estética de campanha. Tudo isso sem projeto nacional que pautasse as demandas populares históricas e sem se construir trabalhos nas bases.

Assim, o PT atuou como um partido burguês no alto das superestruturas, tal qual os demais representantes das classes dominantes. Isso impacta diretamente na construção da sua identidade partidária, na forma como o eleitorado compreende o perfil do partido e de seus candidatos. Por isso, é muito difícil diferenciá-lo dos outros partidos burgueses. Agravando o cenário, como agente coletivo (condutor político), educa as diversas frações da classe trabalhadora a votarem pelo imediato. Pelo mínimo, perdido na pequena política. Pelo que se passou nas últimas semanas, pelas últimas política sociais, sempre segundo as regras e métodos do jogo parlamentar burguês. Isso desarma as bases partidárias e dificulta qualquer forma de atuação delas na defesa do partido, com isso, consequentemente, o PT não consegue gerar o engajamento que precisa nos momentos críticos.

O partido é sujeito ativo na construção da passividade em seu próprio eleitorado. Ele nem sequer utilizou seu aparato sindical no impulsionamento necessário, nem nos últimos 4 anos e nem mesmo nesse ano eleitoral para confrontar o governo direitista. A orientação suprema era para “esperar o momento das eleições”, “não provocar os adversários”, enquanto isso, deveria reinar a passividade e a servilidade na luta de classes e na luta política. Assim se construiu a apatia da ação, tudo foi continuamente canalizado para as eleições. Parece que não se tem mais sindicato, central sindical ou federação, deixou-se de falar em greve, ações de rua, mobilização. Tudo isso soa como palavrão aos dirigentes da sigla. Os chefes do partido sabem que a luta social educa politicamente, e é determinante para o protagonismo antagonista, mas, ao mesmo tempo, uma base atuante acaba pressionando o partido, seu arco de alianças e sua movimentação política. Apartando-se dos locais de trabalho e da construção corpo a corpo, todo a politização ficou a cargo do horário eleitoral e dos debates. Tudo por cima. E, ainda assim, se espera que os setores da classe trabalhadora se engajem simplesmente pelo voto.

Outro aspecto precisa ser considerado em relação aos candidatos. O PT, nos anos 1980, até a primeira metade da década de 1990, era um partido de massas, com base sindicais que atuavam nas greves, com base popular nos movimentos de bairro, lutas populares, na esquerda católica, nas lutas anti-racistas etc. Os quadros políticos, vereadores e deputados, eram pessoas oriundas das lutas sociais, da luta de classes ou do combate e enfrentamento direto, com importante protagonismo social e político. Isso dava cara de mandato popular a sua atuação nas instituições do Estado. Muito diferente do que temos hoje. Agora, nas eleições de 2022, o que se pode esperar dos candidatos petistas? Ninguém sabe... Por que confiar neles? No que eles se diferenciam das outras candidaturas burguesas? É muito difícil de se precisar. Como se pode esperar que o partido e seus candidatos sejam acolhidos e defendidos pelas massas trabalhadoras nesse contexto?

Nos 1980 o PT ganhou influência nas bases católicas, nesse contexto usou essas bases contra os grupos combativos que construíam o partido e suas lutas. O projeto da Articulação-PT e da Articulação-Sindical sempre foi atuar independente do controle das bases auto-organizadas e isolar as alas combativas que se auto-organizavam em seu interior. Queriam a autonomia total para negociar com o empresariado e com os velhos coronéis da política. Fizeram isso tanto no sindicalismo (contra a Oposição sindical metalúrgica de SP) como nos movimentos de bairro. Nessa longa batalha conseguiram garantir autonomia quase total em relação ao protagonismo das bases. Mas o custo dessa prática de esterilização das bases, com atuação por cima dos interesses históricos da classe trabalhadora, foi alto a longo prazo. Como uma faca de dois gumes, isso matou o movimento combativo de base, que era o diferencial do PT no início dos anos 1980, era o seu escudo e sua lança.

A ausência de um projeto político nacional, de um programa político-econômico para se enfrentar os principais problemas históricos e dilemas nacionais, a falta de formas de engajamento para a luta social, deixou as massas trabalhadoras abandonadas em suas necessidades estruturais mais profundas. Sobrou um amplo espaço vazio que, no contexto da crise internacional, acabou sendo ocupado por alas direitistas e de extrema direita. Essas tendências encontraram espaço de crescimento, dissimularam suas intencionalidades estratégicas e se colocam na ofensiva em variadas formas de ativismo, arregimentando apoio para uma crítica geral às instituições do Estado, ainda que por um viés conservador, os setores da direita e extrema-direita, ofereceram bandeiras para engajamentos em pautas amplas e relativamente obscuras contra “a política tradicional”.

Claro que essa intencionalidade de governar independente das mobilizações de base, sua ausência nas lutas cotidianas e históricas, bem como os pactos com as classes dominantes, não explicam tudo. Pois vivemos movimentos de acomodação nas bases também, uma certa apatia política crescente, fruto de um processo mais longo, com determinantes nacionais e internacionais. Mas, o que se evidencia é que o PT e seus dirigentes políticos de destaque não investiram energias para a ativação de suas bases e nem pretendem fazê-lo. A resposta política que precisamos não pode então ser dada por este partido ou por seus parceiros políticos. Ou as massas trabalhadoras constroem alternativas combativas e ocupam as ruas, ou ficarão ao sabor das disputas nos “andares superiores” das classes dominantes.

Alessandro de Moura é professor e sociólogo.

terça-feira, 15 de março de 2022

Educação em Marx: formação da consciência, escola e luta de classes

 

Educação em Marx: formação da consciência, escola e luta de classes

Alessandro de Moura[1]

No presente ensaio, abordamos a compreensão elaborada por Marx sobre a formação da consciência e a partir disso, evidenciamos suas ideias sobre educação escolar e ensino público. Dentro desse contexto, relacionamos suas contribuições com as de Vygotsky e Gramsci. Por fim, para além da educação pública e gratuita, apontamos as dificuldades estruturais enfrentadas pela escola na sociedade de classes.

A formação social da consciência em Marx

Para Karl Marx, a formação do pensamento está totalmente relacionada ao meio externo, com as interações que se estabelecem ao longo da existência humana compreendida como processos de subjetivação e objetivação. Tal aspecto pode ser observado desde os textos da juventude até os últimos escritos do autor. No Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844, Marx já denotava a inseparável relação entre realidade material e a formação da consciência:

(...) Assim como plantas, animais, pedras, ar, luz etc., formam teoricamente uma parte da consciência humana, em parte como abjetos da consciência natural, em parte como objetos da arte - sua natureza inorgânica, meios de vida espirituais, que ele tem de preparar prioritariamente para a fruição e para a digestão -, formam também praticamente uma parte da vida humana e da atividade humana. (...). (MARX, 2004, p. 84).

Em outro trecho, aprofunda o caráter social na formação da percepção e da aprendizagem humana:

(...) O homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total. Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetividade humana; seu comportamento para com o objeto é o acionamento da efetividade humana (por isso ela é precisamente tão multíplice (vielfach) quanto multíplices são as determinações essenciais e atividades humanas), eficiência humana e sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente apreendido, é uma autofruição do ser humano. (Idem, p. 108).

O que cada geração apreende e acumula de substantivo, como ganho social, é incorporado como cultura sócio-histórica e transmitido às novas gerações, como afirma o autor: “os sentidos e o espírito do outro homem se tornaram a minha própria apropriação. Além destes órgãos imediatos formam-se, por isso, órgãos sociais, na forma da sociedade, logo, por exemplo, a atividade em imediata sociedade com outros etc., tornou-se um órgão da minha externação de vida e um modo da apropriação da vida humana”. (MARX, 2004, p. 109). Em outro parágrafo, enfatiza que: “(...) não só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela existência do seu objeto, pela natureza humanizada”. (MARX, 2004, p. 110). De tal maneira, “A natureza é o corpo inorgânico do homem”. (Idem, p. 84). Por fim, complementa que: “A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui”. (MARX, 2004, p. 110). Nesse sentido, na inter-relação de singularidades e universalidades, a cultura é compreendida como parte da natureza de cada indivíduo.

Desde o início da vida, o ser humano entra em contato com o meio exterior, com uma realidade estruturada, pré-estabelecida. Nesse processo, aprende a decifrá-la enquanto constrói explicações e organização mental para todo o existente fora de si, ao mesmo tempo em que se localiza como sujeito de ação e com isso, molda sua estrutura interna de sentimentos, pensamentos e atividades. Para o autor, conforme afirma na terceira tese ad Feuerbach, os seres humanos, frutos do meio em que vivem, são também os seres que modificam estes meios de vida, constroem-no e o transformam de acordo com suas necessidades sociais e históricas.

Assim, o mundo exterior ao sujeito é compreendido como base de todo pensamento e atuação, a realidade material é a plataforma de onde deriva toda compreensão e ação humana. E com isso, a própria filosofia é parte do desdobramento da intervenção sobre o mundo, é fruto de uma dinâmica concreta da relação entre a humanidade atuante sobre a natureza interna e externa. Conforme destacou Marx n’A ideologia alemã: “(...) Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens”. (2007, p. 35). Em síntese, o ser humano, em qualquer meio que viva, absorve e elabora saberes sobre a realidade material e espiritual para atuar sobre a realidade externa:

A produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser consciente dos homens é o seu processo de vida real. (...). (MARX, 2007, p. 94).

Também em O capital, publicado em 1867, Marx reafirmou que todo o ser humano é um ser que aprende e se desenvolve intelectualmente por meio da relação com o meio que lhe é exterior:

(...) o homem se espelha primeiramente num outro homem. É apenas por intermédio da relação com Paulo como seu igual que Pedro se relaciona consigo mesmo como ser humano. Além disso, no entanto, Paulo também vale para ele, em carne e osso, em sua corporeidade paulina, como forma de manifestação do gênero humano. (MARX, 2013, p. 129).

Como as formas de pensamento, derivadas das múltiplas relações, são exteriorizadas e se objetivam em práticas sociais, a própria essência do ser humano é social, histórica e processual. Segundo o pedagogo Lev Vygotsky (1896-1934):

(...) o processo de internalização consiste numa série de transformações. (...) a) Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente. (...) b) Um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal. (...). A transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorrido ao longo do desenvolvimento. (...). (VYGOTSKI, 2003, p. 75).

Foi nesse sentido que Gramsci, no Caderno do cárcere (n.º 11), afirmou que todos os seres humanos são filósofos, mesmo que nem todos o exerçam conscientemente: “(...) todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente - já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada concepção do mundo (...)”. (GRAMSCI, 2001, p. 93). Ou, no mesmo sentido, todos os homens são intelectuais, ainda que poucos o tomem de forma profissional, conforme apontou no caderno 12 da mesma obra:

Por isso, seria possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais (assim, o fato de que alguém possa, em determinado momento, fritar dois ovos ou costurar um rasgão no paletó não significa que todos sejam cozinheiros ou alfaiates). Formam-se assim, historicamente, categorias especializadas para o exercício da função intelectual; formam-se em conexão com todos os grupos sociais, mas sobretudo em conexão com os grupos sociais mais importantes, e sofrem elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo social dominante. (...). (GRAMSCI, 2001, pp. 18-19).

A história da humanidade tem sua dinâmica diretamente influenciada pelas formas como se desdobram os processos sociais e interativos e, consequentemente, por suas ações sobre a realidade. Ou seja, a realidade, fruto das ações humanas, transforma-se de acordo com as interações dos sujeitos e tais interações constituem a interação social. Neste processo de interação entre os seres humanos e natureza, como produção de seus meios de subsistência, o ser humano acaba por produzir a si mesmo e a própria vida material coletiva, e desta forma, faz-se como um ser que se autoproduz em um movimento contínuo e infinito.

Marx denota que as novas gerações recebem um mundo já estruturado pelas gerações que a precederam, no entanto, essas mesmas gerações, atuando no presente prático, social e político, têm em suas mãos a capacidade de transformação da realidade social e política. Conforme podemos ler em A ideologia alemã:

(...) cada geração recebe da geração passada, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias que, embora seja, por um lado, modificada pela nova geração, por outro lado prescreve a esta última suas próprias condições de vida e lhe confere um desenvolvimento determinado, um caráter especial - que portanto, as circunstâncias fazem os homens, assim com os homens fazem as circunstâncias. Essa soma de forças de produção, capitais e formas sociais de intercâmbio, que cada indivíduo e cada geração encontram como algo dado, é o fundamento real [reale] daquilo que os filósofos representam como "substância" e "essência do homem", aquilo que eles apoteosam e combateram (...). (MARX, 2007, p. 43).

No entanto, segundo a perspectiva de Marx, embora todo ser humano seja dotado de capacidades de elaboração intelectual complexa sobre o mundo, as condições de difusão de seu produto e das formas de compreensão não são homogêneas. A interpretação da realidade sócio-material é disputada por variados grupos e corporações que compõem a totalidade sociocultural humana, envolvendo capital público e privado. Os grupos hegemônicos lutam pela difusão de sua própria visão de mundo e interesses, e assim, a produção de sentido sobre a realidade social se dá em níveis muito desiguais. Determinados grupos podem obter condições mais propícias para difusão de sua perspectiva de mundo e construir hegemonia social sobre determinadas perspectivas:

(...) A classe que tem à sua disposição os meios de produção materiais dispõem também dos meios de produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias da dominação. (...). (MARX, 2007, p. 47).

Desta forma, para Marx, as classes sociais que monopolizam os meios de produção material da vida, monopolizam também os meios de produção de discurso e de difusão de padrões, de forma de vida, modelos educacionais, conteúdos ministrados nos centros de ensino, nas escolas e universidades. A classe dominante busca forjar consensos que favoreçam a manutenção da ordem socioeconômica posta. Por isso, já no Manifesto comunista, publicado em 1848, Marx e Engels afirmavam que: “Os comunistas não inventaram a intromissão da sociedade na educação; apenas procuram modificar seu caráter arrancando a educação da influência da classe dominante”. (MARX: ENGELS, 2005, p. 55).

A formação social da mente em Vygotsky

Para Marx, a educação deve ter, como objetivo central, o desenvolvimento das múltiplas capacidades humanas latentes. Nos primeiros anos de vida, a criança apreende e elabora uma grande diversidade de signos, significados e sentidos e, nesse processo, imerso em relações variadas com os adultos, na convivência familiar e comunitária, compõem-se as bases da socialização, como apontou Vygotsky:

É por meio de outros, por intermédio do adulto que a criança se envolve em suas atividades. Absolutamente, tudo no comportamento da criança está fundido, enraizado no social. [...] Assim, as relações da criança com a realidade são, desde o início, relações sociais. Neste sentido, poder-se-ia dizer que o bebê é um ser social no mais elevado grau. (VYGOTSKY, 2010, p. 16).

Nesse sentido, Gramsci, no caderno 12, também denotava que as crianças refletem o meio social de sua convivência, de suas experiências sociais:

(...) Mas a consciência da criança não é algo “individual” (e muito menos individualizado): é o reflexo da fração de sociedade civil da qual a criança participa, das relações sociais tais como se aninham na família, na vizinhança, na aldeia, etc. A consciência individual da esmagadora maioria das crianças reflete relações civis e culturais diversas e antagônicas às que são refletidas pelos programas escolares. (...). (GRAMSCI, 2001, p. 44).

Para Vygotsky, a socialização da criança pressupõe a transformação de fenômenos e compreensões sociais (interpsíquicos) com estímulos externos, em fenômenos intrapsíquicos. De tal maneira, fenômenos e ferramentas socioculturais são incorporados e interiorizados de forma individualizada, particularizada. Interiorizam-se as estruturas de pensamento e ação. Ou seja, todo o desenvolvimento humano tem origem nas relações sociais e históricas exteriores, que por sua vez, desencadeiam processos interiores: “Através dos outros constituímo-nos. Em forma puramente lógica a essência do processo do desenvolvimento cultural consiste exatamente nisso”. (Vygotsky, 2000, p. 24). Ainda, segundo o autor:

(...) todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas. (VYGOTSKY, 2010, p. 97- grifado no original).

Nesse processo, cada nova geração é, desde a mais tenra idade, socializada com as formas de existência de cada período que lhe é correspondente, com seus avanços contínuos e com a base técnica produtiva vigente. A partir disso, fica claro o ponto de partida segundo o qual “(...) a aprendizagem da criança começa muito antes da aprendizagem escolar. A aprendizagem escolar nunca parte do zero. Toda a aprendizagem da criança na escola tem uma pré-história”. (VYGOTSKY, 2010, p. 93). Apoiando-se em formulações centrais de Marx, Vygotsky também considerou que, ao nascer, o ser humano defronta-se com uma estruturação social posta, uma totalidade concreta composta de instituições sociais, valores, normas, leis etc. É nesta interação sócio-histórica produz a própria personalidade humana.

A personalidade torna-se para si aquilo que ela é em si, através daquilo que ela antes manifesta como seu em si para os outros. Este é o processo de constituição da personalidade. Daí está claro, porque necessariamente tudo o que é interno nas funções superiores ter sido externo: isto é, ter sido para os outros, aquilo que agora é para si. Isto é o centro de todo o problema do interno e do externo. (VYGOTSKY, 2000, p. 24).

Diante disso, todos os elementos que a mente humana processa e desenvolve estão diretamente relacionados à realidade exterior, vivida, percebida e compartilhada. Segundo o autor:

(...) falar sobre processo externo significa falar do social. Qualquer função psicológica superior foi externa – significa que ela foi social; antes de se tornar função, ela foi uma relação social entre duas pessoas. Meios de influência sobre si – inicialmente meio de influência sobre os outros e dos outros sobre a personalidade. (VYGOTSKY, 2000, pp. 24-25).

É em consequência disso que se pode afirmar que tudo o que é mental é fruto de relações sociais, segundo Vygotsky: “Em forma geral: a relação entre as funções psicológicas superiores foi outrora relação real entre pessoas. Eu me relaciono comigo tal como as pessoas relacionaram-se comigo”. (Idem, p. 25). Assim:

Todas as formas da comunicação verbal do adulto com a criança tornam-se mais tarde funções psicológicas. Lei geral: qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois planos – primeiro no social, depois no psicológico, primeiro entre as pessoas como categoria interpsicológica, depois – dentro da criança. (VYGOTSKY, 2000, p. 26).

Então, “Por trás de todas as funções superiores e suas relações estão relações geneticamente sociais, relações reais das pessoas”. (VYGOTSKY, 2000, p. 26). Segundo o autor, não se trata apenas de assimilação da ordem externa, mas de uma interação dialética, ativa na formação da própria personalidade individual: “O mais básico consiste em que a pessoa não somente se desenvolve, mas também constrói a si”. (Idem, p. 33).

A importância da educação escolar para o desenvolvimento

A escola funde-se no processo de formação social da mente, ampliando e direcionando curiosidades, estimulando a multilateralidade do conhecimento para além da vida imediata de cada criança, amplia as possibilidades de incorporação de sistemas conceituais. A vida escolar coloca as crianças e jovens em contato com uma série de conteúdos universais organizados, sistemáticos, ministrados de forma didática sequencializada, que desenvolverão suas capacidades potenciais. Estimula a imaginação, propõe novos desafios, metas e problematizações. Segundo Vygotsky, “Cada matéria escolar tem uma relação própria com o curso do desenvolvimento da criança, relação que muda com a passagem da criança de uma etapa para outra. (...)”. (VYGOTSKY, 2010, p. 100). Esse processo possibilita a amplificação na aquisição de novas sínteses elaboradas. Ainda de acordo com o autor: “(...) A relação entre pensamento e linguagem modifica-se no processo de desenvolvimento tanto no sentido quantitativo quanto qualitativo” (...). (Idem, p. 43).

Vygotsky destaca a importância de se verificar o conhecimento que o estudante já possuí, seu nível de desenvolvimento real. O educador parte desta base de conhecimentos já acumulada pelo estudante, estabelecendo pontes entre o conteúdo já adquirido em outros processos de aprendizagem (a partir das relações com outros indivíduos e ambientes sociais); e o novo conteúdo inicial que o estudante já está elaborando na zona proximal de forma embrionária, relacionando-os com aqueles que o estudante é capaz de internalizar, ou seja, seu nível de desenvolvimento potencial. (VIGOTSKY, 2000). Os novos conteúdos assimilados e as novas funções cerebrais desenvolvidas interagem constantemente em novos processos, qualitativamente mais complexos. Assim, criam-se bases para associar novos conhecimentos de uma nova ordem de complexidade. Sempre que se cria um novo estímulo que envolve o sujeito, lança-se uma nova base para novas reações, interações e interpretações e, assim, para o desenvolvimento intelectual progressivo.

Destaca-se que a educação escolar, com equipes especializadas e contínuos processos de aprendizagem e desenvolvimento, estabelece mediações dentro de uma base social e intelectual estabelecida pela própria sociedade, com demandas do presente e tendências futuras. Como apontou o autor: “(...) devemos esperar de antemão que, em linhas gerais, o próprio tipo de desenvolvimento histórico do comportamento venha a estar na dependência direta das leis gerais do desenvolvimento histórico da sociedade humana. (...)” (VYGOTSKY, 2010, p. 46).

O direito à educação universal, gratuita e de qualidade

Além dessa importância fundamental no desenvolvimento da mente, posteriormente, no mercado de trabalho, a falta da educação escolar formal será também um elemento de diferenciação na distribuição dos empregos e na remuneração salarial para os adultos. Aqui, a baixa frequência escolar, além de limitar o contato das crianças com os conteúdos oferecidos nas instituições educacionais, é utilizada como argumento para se pagar piores salários nos trabalhos mais intensos, precários e com menos direitos trabalhistas.

Centralmente, foi refletindo sobre o desenvolvimento humano múltiplo que Marx reafirmou a necessidade de se abolir o trabalho infantil que impede a socialização necessária e o ensino socialmente demandado. Do ponto de vista de Marx, o trabalho só pode ser permitido na adolescência em caráter restrito, como atividade pedagógica, como forma de estágio remunerado e com poucas horas diárias. (MARX, 1866).

Desde o Manifesto de 1848, Marx já defendia a “Educação pública e gratuita a todas as crianças; abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é praticado hoje. Combinação da educação com a produção material etc.”. (MARX: ENGELS, 2005, p. 58). No entanto, para se garantir o acesso universal à educação escolar, é necessário que se garanta que toda a estrutura material esteja à disposição da classe trabalhadora. Por isso, Marx destacou que na Comuna de Paris, em 1871 (em que se praticou a primeira experiência de poder operário), se “(...) ordenou que todos os materiais didáticos, como livros, mapas, papel etc., fossem dados gratuitamente aos professores, que doravante passam a recebê-lo das respectivas mairies [prefeituras] às quais pertencem. (MARX, 2019, p. 117). Outro ponto que mereceu destaque na comuna foi a implantação de uma educação laica e sem ensino religioso:

Uma vez livre do exército permanente e da polícia – os elementos da força física do antigo governo –, a Comuna ansiava por quebrar a força espiritual de repressão, o “poder paroquial”, pela desoficialização [disestablishment] e expropriação de todas as igrejas como corporações proprietárias. Os padres foram devolvidos ao retiro da vida privada, para lá viver das esmolas dos fiéis, imitando seus predecessores, os apóstolos. Todas as instituições de ensino foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo purificadas de toda interferência da Igreja e do Estado. Assim, não somente a educação se tornava acessível a todos, mas a própria ciência se libertava dos grilhões criados pelo preconceito de classe e pelo poder governamental. (MARX, 2019, p. 57).

Para Marx, “ao remover dela o elemento religioso e clerical, a Comuna tomou a iniciativa da emancipação mental do povo”. (MARX, 2019, p. 117). A religião difunde uma visão mística da totalidade social e política, e ainda, ao mesmo tempo, o alto escalão das variadas instituições religiosas se atrela aos altos núcleos de poder empresarial, de dominação, controle e repressão sobre a classe trabalhadora. Nesse aspecto, a religião é utilizada para forjar a domesticação nas multidões humanas aos grupos dominantes, sendo uma força repressiva ocultada pela sua forma sacramental. (c.f. Sobre a questão judaica). Gramsci, no Caderno do cárcere (n.º 11), afirmava: “(...) A escola — em todos os seus níveis — e a Igreja são as duas maiores organizações culturais em todos os países, graças ao número de pessoas que utilizam”. (GRAMSCI, 2001, p. 122).

As reflexões sobre o caráter público da educação e a luta social a ser travada por ela foi refletida por Marx em diversos momentos. Em 1866, quando finalizava o Livro I d’O capital, Marx escreveu também algumas orientações sobre educação para a Primeira Internacional, documento que recebeu o título de “Instruções para os Delegados do Conselho Geral Provisório...”. Esse texto dialoga diretamente com os itens 3 e 9 do capítulo 13 d’O capital, em que se discute educação e trabalho juvenil. No referido texto da Internacional, Marx, defensor de uma legislação universal para “proteção física e espiritual da classe trabalhadora”, reafirma, dentro de tal espectro, a importância de se garantir uma educação universal. (MARX, 1866).

Se existe um exército de mão de obra formado por milhões de homens adultos, por que o empresariado insiste em empregar crianças ao invés de seus pais? Certamente porque se pode pagar salários exageradamente mais baixos, abusando da exploração e repressão nos locais de trabalho. No capítulo 13 d’O capital, Marx, por meio de relatórios oficiais parlamentares, expõe como o empresariado tenta burlar de variadas formas os limites para se empregar crianças e forçá-las a regimes de trabalho com altíssimos níveis de exploração e baixos salários. Nesse capítulo, Marx enfatizou que o capital avança para submeter ao seu domínio, e à produção de lucros, todos os membros das famílias trabalhadoras. Faz isso de formas ilegais, inclusive, infringindo as regras que a própria sociedade burguesa criou. Isso se torna especialmente grave em relação às crianças, pois lhes é roubado o espaço e o tempo de recreação, aprendizagem e desenvolvimento. (MARX, 2015, p. 468).

O trabalho prematuro aparta as crianças dos múltiplos processos de formação e aprendizagem para aprisioná-las às tarefas assalariadas unilaterais, forçando-as a trabalhar como adultos. Faz com que as crianças e adolescentes se desgastem física e psicologicamente, exploradas até a exaustão, prejudicando inclusive seus processos de socialização, aprendizagem e formação. Prejuízos físico-intelectuais que podem ter efeitos deletérios duradouros. A sociedade se recente de tais crueldades contra as crianças e adolescentes, por isso cobra medidas protetivas. Neste sentido, Marx aponta que a demanda por regulamentação de proteção trabalhista é uma forma de “reação consciente e planejada da sociedade”. (MARX, 2015, p. 551).

Marx aponta que, como os pais não receberem salários suficientes para sustentar seus filhos, acabam sofrendo pressões constantes que empurram as crianças para o mercado de trabalho. Outro elemento a se considerar é o caráter de formação profissional: como não podem pagar por escolas técnicas que preparem os filhos para profissões futuras, os pais acabam entregando seus filhos aos cuidados dos patrões para que tenham uma “formação profissionalizante”. Por tais perspectivas, o trabalho infantil é imposto às famílias trabalhadoras por determinações estruturais. Conforme escreveu n’O capital:

Não foi, no entanto, o abuso da autoridade paterna que criou a exploração direta ou indireta de forças de trabalho imaturas pelo capital, mas, ao contrário, foi o modo capitalista de exploração que, suprimindo a base econômica correspondente à autoridade paterna, converteu esta última num abuso. (...). (MARX, 2015, p. 560).

Então, para se enfrentar essas contradições, é necessário atender reivindicações salariais dos trabalhadores adultos, para que possam arcar com as despesas do lar de maneira satisfatória. Também é preciso criar novos postos de trabalho, diminuindo as horas diárias, para que todos possam trabalhar e, consequentemente, diminuir também o exército de reserva de mão de obra. Por outro lado, é preciso criar um número adequado de escolas técnicas gratuitas e com remuneração pela produção, escolas que sejam acessíveis a todos, assegurando ainda uma ampla proteção social das crianças e da juventude. Para isso, é fundamental a criação, aperfeiçoamento e manutenção de políticas públicas de proteção às crianças que, além de garantir educação gratuita, assegure ajuda de custo aos estudantes (transporte, material escolar, vestimenta, alimentação e serviço de saúde etc.).

Ainda por meio do documento da Internacional, Marx apontou que as demandas educacionais da classe trabalhadora só podem ser atendidas através da ação coletiva, de pressão direta, que obrigue à criação e manutenção de políticas públicas direcionadas, sobretudo porque é muito mais difícil que cada trabalhador individualmente possa arcar com os custos da vida escolar de cada filho. Para o autor: “(...) Isto só poderá ser efetuado convertendo a razão social em força social e, em dadas circunstâncias, não existe outro método de o fazer senão através de leis gerais impostas pelo poder do Estado”. (MARX, 1866). As lutas sociais articuladas pela classe trabalhadora adulta é imprescindível para se garantir tais demandas: “O direito das crianças e dos jovens tem de ser feito valer. Eles não são capazes de agir por si próprios. É, no entanto, dever da sociedade agir em nome deles”. (MARX, 1886). Para Marx, a educação pública é uma demanda histórica da própria classe trabalhadora:

(...) a parte mais esclarecida da classe operária compreende inteiramente que o futuro da sua classe, e, por conseguinte, da humanidade, depende completamente da formação da geração operária nascente. Eles sabem, antes de tudo o mais, que as crianças e os jovens trabalhadores têm de ser salvos dos efeitos esmagadores do presente sistema. (MARX, 1886).

Outro aspecto importante para Marx, é pensar uma forma de educação que não se limite às bases teóricas, mas que tenha um tripé formado por “educação mental”, “educação física” e “instrução tecnológica”. Compreende então que “A combinação de trabalho produtivo pago, educação mental, exercício físico e instrução politécnica, elevará a classe operária bastante acima do nível das classes superior e média”. (MARX, 1866). Para isso, propõe que durante a adolescência sejam introduzas duas horas de trabalho assistidas e que se aumente essas horas ao passar dos anos. Só após a maioridade se poderia integrar os jovens ao mercado de trabalho com jornada de trabalho adulta. Com isso, na última fase da aprendizagem escolar, por meio de estágios remunerados, os estudantes já terão passado por experiências práticas que complementam e completam a sua própria formação teórico-prática.

Essa mesma problematização foi tomada por Gramsci nos Cadernos do cárcere, (principalmente no caderno 12), em que o autor debate o problema de se ter uma escola essencialmente teórico-abstrata, por um lado, e por outro, uma escola técnica profissionalizante. Para o autor italiano, tratava-se de pensar uma “escola unitária” que unificasse o ensino técnico e científico, estimulando a curiosidade dos estudantes, bem como a introdução à pesquisa. (GRAMSCI, 2001). Todos os custos e despesas deveriam ser assumidos pelo Estado, como forma de desonerar as famílias trabalhadoras. Segundo o autor:

A escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo da família no que toca à manutenção dos escolares, isto é, requer que seja completamente transformado o orçamento do ministério da educação nacional, ampliando-o enormemente e tornando-o mais complexo: a inteira função de educação e formação das novas gerações deixa de ser privada e torna-se pública, pois somente assim ela pode abarcar todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas. (...).  (GRAMSCI, 2001, p. 36).

A escola na sociedade de classes é essencialmente desigual

Outro elemento a se considerar é que, mesmo com uma rede de escolas públicas e gratuitas, as desigualdades persistem na sociedade capitalista. Foi nesse sentido que o sociólogo Georg Snyders no livro Escola, classes e luta de classes, enfatizou que é necessário “compreender como participa a escola na luta de classes”. (SNYDERS, 2005, p. 13). Embora composta de uma ampla gama de potencialidades, a escola tende a ser uma forma de reafirmação das estruturas de classe:

(...) a burguesia proporciona exatamente aos trabalhadores tanta cultura quanto o seu próprio interesse exige. E não é muita. Escola de classes porque as lutas sociais não se detêm respeitosamente no limiar do recinto escolar. Não é a educação também determinada pela sociedade? Escola que não deixará de ser escola de classe senão pela revolução social, condição da revolução escolar (...). (SNYDERS, 2005, p. 30).

A escola não cria as desigualdades, mas, sendo ela organizada de acordo com os interesses da classe dominante, acaba reafirmando os mesmos mecanismos de dominação de classe. Para o autor: “(...) A burguesia esforça-se, na medida do possível, por submeter a escola aos seus próprios objetivos de classe, por impedir acima de tudo que ela possa contribuir para a emancipação do proletariado (...). (Idem, p. 30). Nesse sentido, o autor critica à ideia de ascensão social por meio da educação como forma antissistema:

Existe um determinado número de casos de mobilidade social - e todos os professores citam o exemplo de determinado aluno vindo de muito baixo, que graças ao seu trabalho, ao seu zelo e aos seus dotes, conseguiu tão brilhante situação. Mas, na realidade, a classe dominante conserva ciosamente nas suas mãos o controle desta seleção, que não faz perigar de forma alguma o conjunto das hierarquias estabelecidas. Precisamente por se tratar de casos, esses poucos vão ser absorvidos pelo meio ambiente, modelar-se segundo regras constituídas, arriscam-se mesmo a ficar fortemente algemados a um sistema que lhe permitiu vencer, sair-se bem. (SNYDERS, 2005, p. 23).

Ainda, como a escola está inserida na sociedade de classes, profundamente desigual, é impossível que possa oferecer condições de aprendizagem iguais para todas as classes e frações de classe: “(...) Enquanto existir uma sociedade de classes, a escola será inevitavelmente escola de classes. A burguesia tenta transformar a escola de massas em instrumento capaz de subjugar os trabalhadores”. (Idem, pp. 31-32).

Mesmo que se trate apenas dos estudantes oriundos da classe trabalhadora, é necessário considerar também que tal classe é composta por diversas clivagens sociais. A classe trabalhadora é múltipla, engloba desde os setores mais precarizados, exército de mão de obra de reserva, subproletariado, setores com empregos estáveis e até setores que vivem com salários acima da renda média nacional. (Confira: O capital, livro I, cap. 13). As crianças oriundas das distintas camadas da classe trabalhadora se encontram na mesma escola pública, na sala de aula. Neste entremeio, quanto mais precarizadas as condições de trabalho e de vida de determinados setores da classe trabalhadora, mais dificuldades seus filhos tendem a enfrentar em sua trajetória escolar. A origem social desigual influencia diretamente os processos de aprendizagem e desenvolvimento. Ou seja, a escola trabalha em cima de habilidades e dificuldades já instituídas, atuando de forma limitada na reversão de tal quadro, e isso, por si, já impede uma educação igualitária. Segundo o autor:

A ação da escola exerce-se sobre crianças cujo modo de vida, educação familiar, primeira educação, são extremamente diversos: a cultura das classes privilegiadas aproxima-se da cultura escolar, os seus hábitos assemelham-se aos hábitos e aos ritos escolares - e preparam-nas, pois, diretamente, para as aprendizagens escolares. Os seus filhos vão assimilar a contribuição da escola à maneira de uma herança, é-lhes familiar, faz parte do seu elemento natural. (SNYDERS, 2005, p. 23).

Também Gramsci, no já referido caderno 12, apontava no mesmo sentido:

Decerto, a criança de uma família tradicional de intelectuais supera mais facilmente o processo de adaptação psicofísico; quando entra na sala de aula pela primeira vez, já tem vários pontos de vantagem sobre seus colegas, possui uma orientação já adquirida por hábitos familiares: concentra a atenção com mais facilidade, pois tem o hábito da contenção física, etc. (GRAMSCI, 2001, p. 52).

Em relação a tais bases pré-escolares, Snyders destaca que: “aqueles que não se beneficiam dele bem cedo ficam desarmados, desamparados perante a cultura escolar”. (SNYDERS, 2005, p. 24). Desta forma, para que se avance na melhora do sistema educacional é necessário admitir-se a extrema desigualdade social, que por sua vez impõe a desigualdade de condições nas salas de aula. Snyders aponta que é hipocrisia argumentar que a educação oferece condições iguais a todos os estudantes:

Daí a hipocrisia da ideologia igualitária, quando finge ignorar tudo que se passa fora da escola e como dentro dela as disparidades têm livre curso: omitindo proporcionar a todos o que alguns devem à sua família, o sistema escolar perpetua e sanciona as desigualdades iniciais. Ainda mais: ele duplica-as na medida em que as consagra através de resultados escolares, pois estes depressa se transformam em apreciação da pessoa em si: ele não é inteligente... visto que não triunfou na escola. (Idem, p. 24-25).

A desigualdade no acesso à educação e nos processos de aprendizagem e desenvolvimento tende a ser negligenciada pelas classes dominantes, isso porque é funcional que se tenha uma massa de trabalhadores com poucos anos escolares e com baixa qualificação, para que exerçam atividades simples com baixos salários e ausência de direitos. Uma parte da juventude deverá ser direcionada diretamente para o exército de reserva do mercado de trabalho: “(...) os excluídos do ensino, os que são recusados pela escola, pouca esperança têm de acesso a situações de interesse; em breve terão dificuldade em encontrar trabalho, a não ser que se alistem no exército da reserva de mão de obra ocasional e precária”. (SNYDERS, 2005, p. 29).

Por outro lado, o autor assevera que as dificuldades que acercam a escola na sociedade de classes não significam que as classes dominantes detêm controle absoluto da escola e de tudo o que se passa de experiências em seu convívio diário. Todas as contradições sociais que se expressam na sociedade também estão presentes na realidade escolar. Segundo o autor:

A escola não é um feudo da classe dominante; ela é terreno da luta entre a classe dominante e a classe explorada; ela é o terreno em que se defrontam as forças do progresso e as forças conservadoras. O que lá se passa reflete a exploração e a luta contra a exploração. A escola é, simultaneamente, reprodução das estruturas existentes, correia de transmissão da ideologia oficial, domesticação - mas também ameaça à ordem estabelecida e possibilidade de libertação. O seu aspecto reprodutivo não a reduz a zero: pelo contrário, marca o tipo de combate a ser travado, a possibilidade desse combate que já foi desencadeado e que é preciso continuar. É esta dualidade, característica da luta de classes, que institui a possibilidade objetiva da luta. (SNYDERS, 2005, pp. 102-103).

Mas, confluindo com a perspectiva de Marx, Snyders também destaca que, como a escola é parte de uma totalidade social maior, suas determinações não podem ser revolucionadas apenas a partir das suas próprias internalidades. Portanto, as pautas por transformações na escola devem ser somadas às lutas sociais:

A luta pela escola nunca pode estar separada das lutas sociais no seu conjunto, da luta das classes na sociedade total, da luta contra a divisão em classes. Certamente, não cabe à pedagogia fazer a revolução; com toda a certeza só haverá uma sã pedagogia numa sociedade sã - e a nossa não o é.  (...) uma escola progressista tem necessidade de ser apoiada pelo conjunto de uma sociedade progressista. (...). (SNYDERS, 2005, pp. 104-105).

Snyders é enfático em relação à necessidade de combinar as lutas escolares com as lutas sociais que envolvam amplos contingentes: “(...) Repetiremos que a solução da crise da pedagogia não virá da pedagogia; mas acrescentaremos que também não há avanço pedagógico sem progresso no próprio seio da escola, lutas pedagógicas, sindicais e, finalmente, também políticas”. (SNYDERS, p. 106).

Ao analisarmos os escritos de Marx e Vygotsky, ficou claro o pressuposto de que o ser humano é um ser ativo na produção da própria subjetividade no meio coletivo. Desde o início da vida, ele aprende a partir da própria experiência com a realidade material e com as relações sociais com os adultos. Apesar do ser humano aprender e se desenvolver independentemente das instituições escolares, essas proporcionam um salto na sua capacidade cognitiva, na aprendizagem e no desenvolvimento de sínteses elaboradas. Por isso, Marx e diversos outros autores tomaram como central a luta social pela educação pública, gratuita e de qualidade, que proporcione o desenvolvimento de múltiplas capacidades humanas. Snyders, retomando tal fio de análise, relembra que mesmo com o acesso universal à educação, a estratificação social determinada pela sociedade de classes impõe desigualdade no ensino e aprendizagem, por isso as lutas travadas nas escolas precisam ser combinadas com as lutas sociais gerais em prol da emancipação social e política da classe trabalhadora.

Referências

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[1] Professor convidado no Programa de Pós-graduação da PUC-SP. Pós-doutorando em história econômica pela USP. Doutor em ciências sociais pela Unesp-Marília. Professor na rede pública de educação no interior e na capital paulista. Estudioso da obra de Marx, marxismo, movimento operário e revoluções.

sábado, 23 de outubro de 2021

Marx sobre a Comuna de Paris de 1871: auto-organização operária e dissolução do Estado burguês

Prof. Dr. Alessandro de Moura

A análise de Marx sobre a Comuna de Paris está dividida em três partes. Foi constituída de três mensagens da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) escritas por Marx. O objetivo dos três documentos era orientar os trabalhadores e dirigentes da AIT, dando ciência das resoluções aprovadas no Conselho Geral da organização.

A Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) criada em setembro de 1864 por Marx, Engels e diversos outros militantes revolucionários Europeus de variadas correntes políticas e teóricas (sobretudo proudhonianos, bakuninistas e blanquistas). Sua linha programática foi escrita pelo próprio Marx sob o título Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores. Assim, antes de aprofundarmos na analise de Marx sobre a comuna, cabe uma breve descrição dessa organização internacional.

A Primeira Internacional dos trabalhadores - 1864

No referido artigo Marx aponta que, de 1848 em diante, após a derrota da Primavera dos Povos (analisada por Marx em As lutas de classe na França), o lucro dos grandes capitalistas multiplicou-se consideravelmente, produzindo um "inebriante aumento da riqueza" das classes dominantes, que, por sua vez, "aumentou a concentração de terras em poucas mãos", mas, por outro lado, as massas trabalhadoras, "as classes do trabalho", continuavam em condições precárias de vida, de moradia, de saúde e de trabalho (MARX, 1864). Dentro disso, Marx compreende a fundação da Primeira Internacional como fruto de um balanço do processo de luta de classes experienciado no período 1848-1864. Então, a missão da Internacional era conectar a classe trabalhadora de diversos países para a luta internacional articulada. Segundo o autor:

A experiência passada mostrou como a falta de cuidado por este laço de fraternidade, que deve existir entre os operários de diferentes países e incitá-los a permanecer firmemente ao lado uns dos outros em toda a sua luta pela emancipação, será castigada pela derrota comum dos seus esforços incoerentes. Este pensamento incitou os operários de diferentes países, congregados em 28 de Setembro de 1864 numa reunião pública em St. Martin's Hall, a fundar a Associação Internacional. (Marx, 1864).

Isso posto, a Associação Internacional dos Trabalhadores foi a primeira forma de Partido Internacional do Proletariado, que, como descreveu Marx, tinha por objetivo articular a política externa da classe trabalhadora, implementando a consigna "Trabalhadores de todo o mundo uni-vos", já contida no Manifesto do Partido Comunista publicado por Marx e Engels em 1848. Por meio da Internacional esperava-se: 1) articular os diversos grupos revolucionários da Europa e, 2) difundir o programa teórico-prático da revolução proletária, com táticas e uma estratégia revolucionária que orientasse claramente a tomada do poder. De acordo com Mandel1, seriam duas as atribuições da Internacional, 1) Unificar as lutas internacionais e 2) difundir o programa revolucionários para as diversas lutas operárias em cada país:

Marx reconheceu a dupla função que a Primeira Internacional teria, efetivamente, na evolução do movimento operário internacional: por um lado, agrupar todas as organizações operárias reais existentes no mundo; por outro, infundir-lhes uma mais clara consciência comunista quanto aos seus objetivos e quanto aos meios de ação que deviam ser empregados para alcançar esses objetivos. (MANDEL, 1954).

O historiador apontou que o fato de a Internacional: “representar o movimento real dos trabalhadores como existia na época, foi de suma importância para Marx”. (MANDEL, 1954). Em 23 de novembro de 1871, depois da derrota da Comuna de Paris, Marx escreveu que “A internacional foi fundada para substituir as seitas socialistas ou semi-socialistas pela organização real da classe trabalhadora para a luta. Os estatutos originais e a declaração inaugural assim revelam-na à primeira vista”. (apud Mandel). A primeira Internacional obteve sucesso em nas duas linhas centrais defendidas por Marx:

Quase todas as organizações operárias que existiam no mundo inteiro entraram em contato e foram aglutinadas a ela: a maior parte das trade-unions britânicas, os partidos operários alemães (...), as correntes socialistas proudhonianas francesas e belgas, as organizações que surgiram do trabalho febril de Bakunin e seus amigos na Suíça, Itália e Espanha. (Mandel, 1954).

A quantidade de operários organizada na Internacional, bem como suas intervenções na luta de classes ao longo de sua breve existência, foi coroada com muitos êxitos, marcando o sucesso da tática central de seus fundadores:

A Internacional ganha influência real sobre o movimento sindical em Londres, que representa mais de 100.000 trabalhadores organizados. Ela dirige a grande agitação pelo sufrágio universal, que alcançou seu ponto culminante no verão de 1866, com uma assembleia de 60.000 pessoas no Hyde Park. Ela intervém na política mundial, envia um comunicado de simpatia a Abraham Lincoln por ocasião da emancipação de escravos. Ela adverte, em 1869, trabalhadores ingleses e americanos contra a ameaça de guerra entre os dois países. Ela protesta contra a assassinato de trabalhadores pelo exército na Bélgica. Ela organiza um protesto internacional contra a guerra franco-alemã de 1870-71.

Para Mandel, o papel mais importante exercido pela primeira Internacional foi o impulso que dera à articulação internacional das lutas dos trabalhadores. Segundo o autor: “Desde o momento em que os trabalhadores dos países da Europa Ocidental se familiarizaram com a existência da Internacional, não houve greve na qual os grevistas deixaram de dirigir a ela uma petição de ajuda e solidariedade”. (Mandel, 1954). Então, para o autor: “Nesse sentido, a AIT era uma Internacional política, uma federação sindical internacional e uma aliança de federações profissionais internacionais; ou pelo menos teve que desempenhar todos esses papéis na medida do possível”. Para além de suas tarefas estruturais, como articuladora da luta de classes objetiva, a maior provação histórica enfrentada pela Internacional foi a Comuna de Paris, que foi a primeira revolução proletária vitoriosa, sustentada durante 71 dias. Com isso, a Internacional, formada por pequenos grupos de operários dispersos pela Europa se viu diante de um dos maiores desafios do século XIX. Conforme apontou Mandel:

O sucesso mais brilhante que a Internacional obteve no campo de ação foi, igualmente, o mais inesperado de todos eles, e o menos preparado conscientemente: o advento da Comuna de Paris. Embora seja verdade que a Internacional não tenha desempenhado nenhum papel decisivo na preparação e na direção da Comuna, também é verdade que o auge do movimento operário francês, especialmente em Paris, durante os anos e meses que antecederam a Comuna, foi muito influenciado pela Internacional para que se possa considerar objetivamente que a primeira revolução proletária vitoriosa foi a conquista lógica do seu trabalho.

No contexto da Comuna de Paris, essa primeira revolução proletária vitoriosa potencializou a organização internacional dos trabalhadores. Dentro disso, entre os aspectos determinantes da primeira Internacional, Mandel aponta que:

O resultado mais positivo da ação ideológica de Marx e seus amigos no seio da AIT foi unificar as concepções políticas e doutrinárias da vanguarda operária em escala internacional (...). Antes de 1864, em torno de Marx e Engels havia apenas amigos pessoais. Depois de 1872, existiam núcleos marxistas organizados em quase todos os países da Europa. (Mandel, 1954).

No período de existência da Internacional não se contava ainda com partidos nacionais da classe trabalhadora. Nesse sentido a Internacional foi um importante articulador partidário de nível internacional e internacionalista. Isso fomentou a organização de partidos proletários em diversos países. Como destacou Mandel: “Para resumir o significado organizativo da Primeira Internacional, pode-se dizer que foi graças à constituição da Internacional que os partidos nacionais puderam ser formados posteriormente”. (Idem).

Contraditoriamente, o que levou a derrocada da AIT foi própria a derrota da Comuna de Paris, que embora tenham potencializado a organização proletária, acabou, por conta das diversas estratégias em seu seio, com implementação das linhas proudhonianas e blanquistas na Comuna, levaram à estratégia com pouca clareza e à crise profunda da Internacional.

Depois da AIT foi formada a Segunda Internacional em 1889, com importante protagonismo de Engels, mas essa também entrou em profunda crise em 1914, quando seus líderes (sobretudo Kautsky) decidiram apoiar a I guerra e romper com o programa de “luta contra a burguesia e paz entre os trabalhadores”. Kautsky apostava todas as fichas em sindicatos e partidos de massas voltados para as disputas parlamentares, entendendo que o superimperialismo levaria a uma fase de convivência pacífica entre as diversas frações da burguesia e da classe trabalhadora. Tratava-se então, apenas de conquistar melhores posições para os representantes do proletariado nas instituições do Estado burguês. A Terceira Internacional foi formada por Lênin e Trotsky em 1919 chocou-se frontalmente contra tal perspectiva e colocou todas as forças do proletariado internacional na luta pela revolução socialista. A última Internacional Comunista, a Quarta Internacional, foi fundada por Trotsky em 1938, mas dividiu-se em diversas tendências no pós-segunda guerra.

Feita essa breve introdução sobre o papel e a função da Internacional, passamos a análise das Cartas escritas por Marx sobre a Comuna.

Primeira mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) - sobre a guerra Franco-Prussiana (23 de junho de 1870)

Nessa primeira mensagem Marx resgatou o objetivo central da Internacional, apontando que "a emancipação das classes trabalhadora exige sua confluência fraternal". (p. 21). Destacou que a Internacional, que já estava sob perseguição e Luís Bonaparte (Napoleão III), por ter-lhe feito oposição na sua tentativa de mudar da Constituição francesa em maio de 1870. Agora, novamente, a Internacional estava sendo perseguida, desta vez por sua posição contrária à guerra franco-prussiana, anunciada em 15 de julho de 1870.

Marx destaca que a AIT, em sua mensagem aos trabalhadores da França e da Alemanha, já denunciara o caráter de classe da guerra franco-prussiana: "sob o pretexto do equilíbrio europeu, da honra nacional, a paz do mundo é ameaçada por ambições políticas. Trabalhadores da França, Alemanha, Espanha! Unamos nossas vozes em um só grito de reprovação contra a guerra!" (AIT, apud MARX, 2019, p. 22). Essa consigna passou a ser peça chave da tradição marxista, ao invés de se envolver nas disputas fratricidas da burguesia internacional, o proletariado deveria voltar suas armas contra as sus próprias burguesias nacionais.

Em contraposição aos interesses dos dois Bonapartes da Europa (Luís na França e Bismarck na Alemanha) que deflagraram uma guerra de dinastias, a Internacional enfatizava: "queremos paz, trabalho e liberdade! (...) Irmãos da Alemanha! Nossa divisão resultaria apenas no completo triunfo do despotismo nos dois lados do Reno". (AIT, MARX, 2019, p. 22). No inicio do conflito, iniciado por Luís Bonaparte, Marx já previa que, independente de seu resultado, isso determinaria o fim governo bonapartista na França e dissolução do arco de alianças que o sustentava no poder:

Seja qual for o desenrolar da guerra de Luís Bonaparte com a Prússia, o dobre fúnebre do Segundo Império já soou em Paris. O Império terminará como começou, por uma paródia. Mas não nos esqueçamos de que foram os governos e as classes dominantes da Europa que permitiram a Luís Bonaparte encenar por dezoito anos a farsa feroz do Império Restaurado. (MARX, 2019, p. 23).

Marx sublinha que a guerra era travada como uma disputa pela hegemonia dinástica na Europa. A classe dominante francesa sentia-se intimidada pela unificação da Alemanha, inclinando-se para disputas bélicas: "O regime bonapartista, que até então só florescera de um lado do Reno, tinha agora a sua imitação do outro lado. De tal estado de coisas, o que poderia resultar senão a guerra?" (MARX, 2019, p. 23).

Frente ao ataque francês, a Alemanha se viu obrigada a se empenhar em uma guerra de defesa nacional, mas que, naturalmente, poderia desdobra-se em uma guerra ofensiva. No entanto, mesmo sendo uma guerra de dinastias, Marx analisava que a classe trabalhadora seria a maior prejudicada por uma guerra entre as duas nações: "Se a classe trabalhadora alemã permitir que a guerra atual perca seu caráter estritamente defensivo e degenere em uma guerra contra o povo francês, a vitória ou a derrota se mostrarão igualmente desastrosas" (Idem). Isso porque as massas trabalhadoras seriam convocadas para a linha de frente, sendo absorvidas em uma guerra fratricida por interesses dinásticos dos dois bonapartes da Europa que disputam o domínio europeu.

Analisando a classe trabalhadora alemã, Marx acreditou que não seria possível formar um exército para combater contra a classe trabalhadora Francesa. Isso porque: "os princípios da Internacional estão largamente disseminados e muito firmemente enraizados no interior da classe trabalhadora alemã para que se conjeture um desfecho tão triste. As vozes dos trabalhadores franceses ecoaram na Alemanha". (MARX, 2019, p. 24). Essa assertiva baseava-se nas deliberações da assembleia de trabalhadores alemães em julho de 1870: "Somos os inimigos de todas as guerras, mas acima de tudo das guerras dinásticas". Também na assembleia de Chemnitz, decidiu-se: "Atentos à palavra de ordem da Associação Internacional dos Trabalhadores: Proletários de todos os países, uni-vos, não devemos nunca nos esquecer de que os trabalhadores de todos os países são nossos amigos e que os déspotas de todos os países são nossos inimigos". (Apud Marx, 2019, p. 24). Em Berlim, a seção da Internacional declarava: "prometemos que nem o toque dos clarins, nem o rugir do canhão, nem a vitória nem a derrota nos desviará de nosso trabalho comum pela união dos filhos do labor de todos os países". (Idem).

Por fim, como diretiva, Marx enfatizava a importância da solidariedade de classe contra as classes dominante: “(…) os trabalhadores da França e da Alemanha trocam mensagens de paz e de amizade; esse fato grandioso, sem paralelo na história do passado, abre a perspectiva de um futuro mais luminoso". (MARX, 2019, p. 25). O principio da solidariedade internacional dos trabalhadores é compreendido por Marx com aspecto central de uma nova forma de sociedade pautada nas demandas concretas dos explorados. Dentro disso, a Internacional Comunista deveria atuar como vanguarda que soldava a solidariedade de classe. Assim, "A pioneira dessa nova sociedade é a Associação Internacional dos Trabalhadores". (MARX, 2019, p. 25).

Segunda mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT)sobre a guerra franco-prussiana (setembro de 1870)

Nesse documento, Marx apontou justamente a mudança do caráter da guerra por parte da Alemanha: como previsto, a guerra deixava de ser defensiva e tornava-se ofensiva. Bismarck, o chanceler de ferro, constatando sua superioridade bélica, decidiu tomar parte dos territórios da França e impor pesadas indenizações de guerra após ter conseguido prender Luís Bonaparte, junto com seu marechal Patrice Mac-Mahon e mais 83 mil de seus soldados franceses em Sedan (região de fronteira com a Alemanha). Uma vez dominado o exército francês, Bismarck recusou-se a assinar um tratado de paz e iniciou um cerco militar a Paris em 19 de setembro de 1870, seu objetivo imediato era a anexação de Alsácia e Lorena.

Entre as justificativas de Bismarck para anexação constava que a região havia pertencido ao povo germânico até 1648 (Sacro-império) e que era importante para a defesa estratégica do território alemão. Marx destacou que Bismarck representava pautas e interesses da classe média e da opinião pública alemã nessa reconquista territorial. Enfatizou que, embora a anexação traga vantagens defensivas para a Alemanha, a mudança de fronteiras sempre tende a gerar novos descontentamentos, que, por fim, produzem novos conflitos numa espiral sem fim:

(...) Se os limites tiverem de ser fixados por interesses militares, as reclamações não terão fim, pois toda linha militar é necessariamente defeituosa e pode ser melhorada pela anexação de uma porção adicional do território circundante; e, além disso, limites jamais podem ser fixados de modo definitivo e justo, pois têm sempre de ser impostos ao conquistado pelo conquistador e, por conseguinte, carregam consigo a semente de novas guerras. (MARX, 2019, p. 29).

Nessa disputa, reafirmando a linha estratégica da primeira carta à AIT, Marx defende a paz sem anexação e o reconhecimento da república francesa implantada após a prisão de Luís Bonaparte em Sedan. Marx destaca que os próprios trabalhadores alemães, organizados no Partido Social Democrata Alemão, se pronunciaram (em 5 de setembro de 1870) contra a anexação de Alsácia e Lorena pela Alemanha:

(…) E estamos conscientes de que falamos em nome da classe trabalhadora alemã. No interesse comum da França e da Alemanha, no interesse da civilização ocidental contra a barbárie oriental, os operários alemães não tolerarão pacientemente a anexação da Alsácia e da Lorena. (...) Estamos fielmente ao lado de nossos companheiros operários, em todos os países, para a internacional causa comum do proletariado! (Idem, p. 31).

No entanto, Marx explicita as dificuldades para a nascente república francesa em conseguir conter o avanço alemão. Por outro lado, destaca que faltava força à classe operária alemã para impor tal perspectiva ao governo e sua base de apoio na burguesia e na classe média alemã. Se a classe trabalhadora alemã estivesse suficientemente fortalecida e organizada, Bismarck teria suas forças paralisadas.

Entre os problemas para a resistência da República francesa estavam o próprio caráter do novo regime, que era fruto de uma derrota internacional da monarquia seguido de um vácuo de governo. Esse processo não foi um desdobramento de uma revolução antimonárquica. Segundo o autor: "(…) Essa República não subverteu o trono, mas apenas tomou o seu lugar, que havia vacado. Ela foi proclamada não como uma conquista social, mas como uma medida nacional de defesa". (MARX, 2019, p. 32). Acrescenta que os governantes premiados com República "(…) tem pavor da classe trabalhadora", o que, por sua vez, torna impossível resistir ao avanço alemão. Assim, Marx apontava que "A classe trabalhadora francesa se move, portanto, sob circunstâncias de extrema dificuldade. Qualquer tentativa de prejudicar o novo governo na presente crise, quando o inimigo está prestes a bater às portas de Paris, seria uma loucura desesperada. (...)”. (p. 32). Isso porque, para Marx, a classe trabalhadora encontrava-se enfraquecida pelos anos do governo Bonaparte.

À vista disso, o autor defende que seria preciso que os trabalhadores franceses se reorganizem antes de qualquer investida mais profunda e decidida contra a República que acabava de surgir por força das circunstâncias. De imediato, para a classe trabalhadora, a República poderia implicar maiores liberdades organizativas e fortalecimento de sua atuação como classe. Conforme Marx:

Que eles aperfeiçoem, calma e decididamente, as oportunidades da liberdade republicana para a obra de sua própria organização de classe. Isso lhes dotará de novos poderes hercúleos para a regeneração da França e para nossa tarefa comum – a emancipação do trabalho. De seus esforços e sabedoria depende o destino da República. (p. 32).

Ou seja, o autor indicava que o melhor para a classe trabalhadora francesa seria buscar a auto-organização e não se envolver com os chamados de guerra e mobilização do governo, mas ao mesmo tempo buscar aumentar sua própria força e articulação.

Embora defenda uma organização paciente por dentro da República francesa, tal diretiva não pode ser compreendida como uma defesa da passividade do proletariado, pois esta mesma mensagem à Internacional termina com um alerta à classe trabalhadora: "(…) se permanecerem passivas, a terrível guerra atual será apenas o prenúncio de conflitos internacionais ainda mais mortíferos e conduzirá em todos os países a um renovado triunfo sobre os operários pelos senhores da espada, da terra e do capital". (MARX, 2019, p. 33).

A guerra civil na frança (30 de maio de 1871)

3ª Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores

Esse terceiro documento escrito por Marx é o balanço definitivo dos 71 dias da Comuna de Paris. A análise foi dividida em quatro seções, na primeira foram analisados os objetivos do grupo dirigente da República; Thiers, Trochu, Jales Frave etc. Marx caracteriza esse grupo como uma articulação de arrivistas, falsários e corruptos ao serviço das classes dominantes. São, sobretudo, mercenários anti-proletários. A frágil república era dirigida por corruptos e arrivistas.

Na primeira seção Marx aponta que, assim que foi proclamada a República na França, em 4 de setembro de 1870, deu-se novo curso à vaga aberta no governo. Adolphe Thiers (ex-ministro de Luís Felipe e cruel repressor das massas), juntamente com o general bonapartista Louis Trochu rapidamente apresentaram-se como representantes da nova república. Como as lideranças da classe trabalhadora tinham sido atiradas nas prisões por Bonaparte ao longo dos anos revolucionários marcados pela Primavera dos povos, os arrivistas Thiers e Trochu foram tolerados no poder vago, mas apenas com o propósito de uma articulação emergencial de defesa nacional. No entanto, a defesa da república requeria armar a classe trabalhadora, o que por sua vez enfraquecia o bando de Thiers:

Paris não podia ser defendida sem armar sua classe trabalhadora, organizando-a em uma força efetiva e treinando suas fileiras na própria guerra. Mas Paris armada era a revolução armada. Uma vitória de Paris sobre o agressor prussiano teria sido uma vitória dos operários franceses sobre o capitalista francês e seus parasitas estatais. Neste conflito entre dever nacional e interesse de classe, o Governo de Defesa Nacional não hesitou um momento em transformar-se em um Governo de Defecção Nacional. (MARX, 2019, p. 35).

Isso levou o governo provisório a equilibra-se na dubiedade, o medo da classe trabalhadora por um lado, e o medo da restauração monárquica por outro. De início mostraram-se dispostos a capitulação e a entregar a república em troca da libertação de Bonaparte: "O primeiro passo que eles deram foi despachar Thiers em uma turnê errante por todas as cortes da Europa, a fim de implorar por uma mediação, oferecendo a permuta de uma república por um rei". (Idem, p. 35).

O general Trochu avaliava como uma loucura tentar resistir ao avanço do exercito alemão e ao cerco de Paris. Não via outra alternativa que não fosse a capitulação como forma de atender as exigências de Bismarck. Conforme apontou Marx: "Assim, na própria noite da proclamação da República, o ‘plano’ de Trochu era conhecido por seus colegas e consistia na capitulação de Paris". (p. 36). Não havia então, verdadeiramente, qualquer intenção de um governo de defesa nacional e sim um plano de capitulação nacional. O chamado à defesa nacional era apenas uma moeda de troca nas negociações de capitulação.

No entanto, nacionalmente, em discurso oficial de mobilização, Thiers, Trochu e Frave diziam à classe trabalhadora que estavam dispostos a resistir à subjugação alemã, que não aceitariam a ceder os territórios exigidos e nem os Fortes de defesa. Faziam isso para manterem-se à frente do poder na república porque era essa a demanda social e política. No entanto, enquanto nacionalmente se diziam bravos defensores da república, negociavam primeiramente a rendição a Bismarck. De acordo com Marx, mesmo com um discurso de mobilização nacional: "Jules Favre confessava que eles estavam a se ‘defender’ não dos soldados prussianos, mas dos operários de Paris". (p. 36). Então, a nascente república era dirigida por capturadores e arrivistas anti-proletários, que simplesmente encenavam a "farsa da defesa" como forma de controlar os ânimos nas classes trabalhadoras. Marx aponta que os principais dirigentes da Republica estavam envolvidos em diversos casos de corrupção, desvio de dinheiro público e enriquecimento ilícito perdoado pelos seus pares. A continuidade da guerra, tendo à frente um governo de capitulação e uma massa de trabalhadores armados deu o tom ao longo conflito político. Conforme analisou Engels em sua introdução às analises de Marx:

(…) O Império desmoronou como um castelo de cartas, a República foi novamente proclamada. Mas o inimigo permanecia às portas; os exércitos do Império estavam ou definitivamente cercados em Metz ou aprisionados na Alemanha. Nesse momento crítico, o povo autorizou os deputados de Paris eleitos para o antigo corpo legislativo a atuar como “Governo da Defesa Nacional”. Isso foi concedido tanto mais prontamente quanto, para a finalidade da defesa, todos os parisienses capazes de manejar armas haviam sido alistados na Guarda Nacional e armados, de modo que, agora, os trabalhadores constituíam a grande maioria. Mas rapidamente aflorou a oposição entre o governo, constituído quase exclusivamente de burgueses, e o proletariado armado. Em 31 de outubro, batalhões de trabalhadores atacaram a prefeitura municipal e aprisionaram uma parte dos membros do governo; mediante traição, quebra da palavra por parte do governo e intervenção de alguns batalhões pequeno-burgueses, eles foram novamente postos em liberdade, e a fim de não precipitar a guerra civil interna em uma cidade já sitiada por potências bélicas estrangeiras, o governo de então foi deixado em seu lugar. (ENGELS, 2019, p. 190).

De acordo Marx e Engels, a farsa da resistência só foi completamente desvelada em 28 de janeiro de 1871, quando Otto Bismarck e Jules Frave assinaram um acordo de armistício que estabelecia a capitulação de Paris, atendendo todas as exigências da Alemanha, como a indenização de 200 milhões de francos pela guerra, entrega dos fortes de Paris, entrega da artilharia e material de guerra. Além disso, a França deveria convocar a eleição de uma Assembleia Nacional para deliberar sobre a saída ou continuidade da guerra. De acordo com Engels: “Finalmente, em 28 de janeiro de 1871, a faminta Paris capitulou. Porém, com honras até então inéditas na história das guerras. As fortalezas foram rendidas, as muralhas externas desarmadas, as armas dos Regimentos de Linha e da Guarda Móvel entregues, os próprios soldados considerados prisioneiros de guerra”. (ENGELS, p. 190). Ainda, de acordo com Marx, a "(…) capitulação estipulou que a Assembleia Nacional devia ser eleita dentro de oito dias, de maneira que em muitas partes da França as notícias da eleição iminente chegaram somente em sua véspera". (MARX, p. 43).

Essa capitulação "deu início à guerra civil que eles agora tinham de fazer, com a ajuda da Prússia, contra a República e Paris" (Idem, p. 43). Assim, "No caminho dessa conspiração erguia-se um grande obstáculo - Paris. Desarmá-la era a primeira condição de sucesso, e assim Paris foi intimada por Thiers a entregar suas armas". (MARX, p. 44). As massas trabalhadoras que compunham a Guarda Nacional continuaram armadas, sem aceitar o armistício de 28 de janeiro, por força das armas em mãos, acabaram intimidando as tropas alemãs que cercavam a França, mas não lograram ocupar Paris. Isso por sua vez colocava em xeque o poder de comando do Governo Provisório De acordo com Engels:

(…) a Guarda Nacional conservou consigo suas armas e canhões e apenas cumpriu o armistício firmado com os vencedores. E estes mesmos não ousaram entrar triunfalmente em Paris. Eles só ousaram ocupar uma borda muito pequena de Paris, que além do mais consistia, em sua maior parte, de parques públicos, e isso por uns poucos dias! E durante esse tempo, aqueles que por 131 dias haviam mantido seu cerco à capital foram eles mesmos cercados pelos trabalhadores armados de Paris, a vigiar atentamente para que nenhum “prussiano” pudesse ultrapassar os estreitos limites daquela borda cedida aos conquistadores estrangeiros. Tal era o respeito que os trabalhadores de Paris inspiravam naquele exército diante do qual todos os exércitos do Império haviam deposto suas armas; e os aristocratas rurais [Junker] prussianos, que lá estavam para fazer vingança no centro da revolução, foram obrigados a pôr-se em pé respeitosamente e saudar justamente essa revolução armada! (ENGELS, pp. 190-191).

Nesse processo, de acordo com Engels: “agora Thiers, o novo chefe de governo, percebeu que o domínio das classes proprietárias – dos grandes proprietários de terra e dos capitalistas – estaria em permanente perigo enquanto os trabalhadores de Paris conservassem as armas em suas mãos. Sua primeira medida foi uma tentativa de desarmamento”. (ENGELS, p. 191). As tropas de Versalhes foram enviadas para desarmar Paris no dia 18 de março de 1871, mas fracassaram, houve inclusive confraternização de tropas. O Governo Provisório viu-se incapaz de impor seus interesses. Frente a isso, "Thiers e Jules Favre, em nome da maioria da Assembleia de Bordeaux, solicitaram sem o mínimo pudor a imediata ocupação de Paris pelas tropas prussianas". (MARX, p. 46).

Seção II

Em tal situação, Marx aponta, se "A Paris armada era o único obstáculo sério no caminho da conspiração contrarrevolucionária. Paris tinha, portanto, de ser desarmada. Nesse ponto, a Assembleia de Bordeaux era a sinceridade em pessoa". (MARX, 2019, p. 46). A princípio, os conspiradores capitulacionistas da Assembleia Nacional exigiram que a população depusesse as armas e as entregasse ao governo, não se preocupando em discutir o verdadeiro motivo do desarmando. Mas, a deposição de armas foi tomada pela população de Paris como a entrega da própria revolução:

O confisco de sua artilharia devia evidentemente servir como o prelúdio do desarmamento de Paris e, portanto, da Revolução de 4 de setembro. Mas essa revolução tornara-se agora o estatuto legal da França. A República, sua obra, foi reconhecida pelo conquistador nas cláusulas da capitulação. Após a capitulação, ela foi reconhecida por todas as potências estrangeiras e a Assembleia Nacional foi convocada em seu nome. A revolução operária de Paris de 4 de setembro era o único título legal da Assembleia Nacional reunida em Bordeaux e de seu poder executivo. (MARX, p. 47).

Mesmo a Alemanha, em posição de guerra contra a França, reconhecia o risco imposto pelos trabalhadores parisienses com armas nas mãos. Era a única chance de resistência do povo francês ao avanço alemão. Por isso, o armísticio previa os seu desarmamento imediato. A Paris da Guarda Nacional era o coração da República nascente. Sem ela não haveria qualquer possibilidade de resistência:

A Assembleia Nacional, dotada de plenos poderes para acertar as condições da paz com a Prússia, foi apenas um episódio daquela revolução, cuja verdadeira encarnação continuava a ser a Paris armada que a havia iniciado, que por ela sofrera um cerco de cinco meses, com seus horrores da fome, e que fez de sua prolongada resistência, apesar do plano de Trochu, a base de uma obstinada guerra de defesa nas províncias. (MARX, Idem).

Então, para população, entregar ou não as armas à Assembleia Nacional, significava dar como derrotada a revolução ou seguir aprofundando-a:

E Paris tinha agora de escolher: ou depor suas armas diante das ordens insultantes dos escravocratas de Bordeaux, reconhecendo assim que sua revolução de 4 de setembro não significara mais do que uma simples transferência do poder de Luís Bonaparte para seus rivais monárquicos, ou seguir em frente como o paladino francês do autossacrifício, cuja salvação da ruína e regeneração seriam impossíveis sem a superação revolucionária das condições políticas e sociais que haviam engendrado o Segundo Império e que, sob sua égide acolhedora, amadureciam até a completa podridão. Paris, esgotada por cinco meses de fome, não hesitou nem um momento. Heroicamente, resolveu correr todos os riscos de uma resistência contra os conspiradores franceses, mesmo com o canhão prussiano a encará-la a partir de seus próprios fortes. (pp. 47-48).

No entanto, mesmo optando por resistir à capitulação implementada pela Assembleia Nacional, Marx aponta que a Paris armada queria evitar a guerra civil, mantendo-se em posição defensiva frente a Assembleia, evitando revidar e se impor firmemente ao bando de Thiers: "Ainda assim, em sua aversão à guerra civil a que Paris estava para ser arrastada, o Comitê Central continuava a persistir em uma atitude meramente defensiva, apesar das provocações da Assembleia, das usurpações do Executivo e da ameaçadora concentração de tropas em Paris e seus arredores". (MARX, 2019, p. 48). A Guarda Nacional não entendeu que a tentativa de confisco dos canhões, em 18 de março na praça Vendmor, já era o inicio da guerra civil em Paris. Com o fracasso da tentativa do confisco das armas, Thier convocou a guarda nacional, formada por 300 mil homens, a se unir ao seu governo. No entanto, apenas trezentas pessoas atenderam ao seu chamado. (p. 48).

18 a 28 de março: fuga do governo provisório e início da Comuna de Paris

Conforme apontado, as tropas enviadas para desarmar Paris no dia 18 de março, ao invés de tomar as armas da Guarda Nacional, acabaram persuadidas pela população parisiense, o que por sua vez, deu-se lugar à confraternização das tropas do governo com as massas dos revolucionárias. O general Lecomte ordenou quatro vezes ao seu exercito que se abrisse fogo contra as mulheres e crianças na linha de frente, mas seu exército se negou e, por fim, fuzilou o general contrarevolucionário, o mesmo destino teve o general Clément Thomas no mesmo dia. Esse episódio de 18 de março “terminou com a derrota do exército e a fuga do governo para Versalhes, tendo todo o conjunto da administração recebido ordens para abandonar seus postos e acompanhar o governo em sua fuga”. (MARX, p. 67). Esse episódio marcou o início da Comuna: "A gloriosa revolução operária de 18 de março apoderou-se incontestavelmente de Paris. O Comitê Central era seu governo provisório". (p. 48). Assim: "Na aurora de 18 de março de 1871, Paris despertou com o estrondo: “Viva a Comuna!”. (MARX, p.54).

Marx comemora a corajosa instauração da comuna (oficialmente decretada no dia 28 de março de 1871), mas, ao mesmo tempo, o autor aponta que os revolucionários foram complacentes demais ao não prender os militares do governo que na “crise dos canhões” se opunham à confraternização e ordenavam massacrar Paris naquele 18 de março. As tropas voltaram tranquilamente para seus postos para se reorganizar contra a Comuna. Enquanto isso, “Simulando negociações de paz com Paris, Thiers ganhou tempo para preparar a guerra contra ela”. Para o Marx, o correto a se fazer seria prender a reação e marchar para Versalhes, ampliando a comuna. O autor aponta que, a partir desse dia, a burguesia reacionária, representada no Grupo da Ordem, temia uma imediata retaliação armada do proletariado. Como isso não ocorreu, esses elementos mais reacionários entenderam que os revolucionários eram vacilantes, e assim, se reorganizaram, inclusive dentro de Paris, para um ataque armado contra os revolucionários. Para Marx, isso ficou evidente já no dia 22 de março de 1871:

Em 22 de março, uma turba revoltosa de emperiquitados partiu dos bairros luxuosos, tendo em suas fileiras todos os petits crevés e, à dianteira, os homens notoriamente mais íntimos do império – os Heeckeren, os Coëtlogon, Henry de Pène etc. Sob o covarde pretexto de um protesto pacífico, esse bando, portando secretamente armas de duelistas, pôs-se em marcha, agredindo e desarmando as patrulhas e sentinelas da Guarda Nacional que encontravam pelo caminho e, ao desembocar na rue de la Paix, aos brados de “Abaixo o Comitê Central! Abaixo os assassinos! Viva a Assembleia Nacional!”, tentaram passar através do armado cordão de isolamento, a fim de tomar de assalto o quartel da Guarda Nacional na praça Vendôme. (MARX, 2019, p. 50).

A Guarda Nacional dispersou-os com uma salva de tiros, sendo que, de acordo com o autor: "Uma carga foi bastante para pôr a correr, em fuga desesperada, aqueles estúpidos fanfarrões". (Idem, p. 51). Mas, novamente, as tropas da Guarda Nacional deixou que partissem tranquilamente. Marx relembra que, por muito menos que isso, Thiers mandou massacrar manifestações proletárias pacificas em 1848: "O Comitê Central de 1871 simplesmente ignorou os heróis da “manifestação pacífica”, de tal modo que, dois dias mais tarde, eles puderam se apresentar ao almirante Saisset para aquela outra manifestação, agora armada, que culminou na famosa debandada para Versalhes". (p. 52).

Marx ressalta que essa magnanimidade dos operários armados com relação às investidas contrarevolucionárias foi um dos maiores erros da Comuna de Paris. Deveria se ter prendido, julgado e condenado os bandos reacionários ativos. O correto seria ter revidado à investida das tropas de Thiers nos dias 18 e 22 de março. Sobretudo porque Versalhes não tinha tropas para resistir ao exército da Comuna: "Em sua relutância em continuar a guerra civil iniciada por Thiers e sua investida impetuosa contra Montmartre, o Comitê Central cometeu, aí, um erro decisivo ao não marchar imediatamente sobre Versalhes, então completamente indefesa, pondo assim um fim às conspirações de Thiers e seus 'rurais'". (p. 52). Ao invés de avançar contra os adversários, que já não tinham tropas suficientes, a Comuna seguia permitindo que se reorganizassem livremente, permitindo inclusive que participassem das eleições internas da comuna no dia 26 de março.

Novamente, a complacência dos operários de Paris não encontrava reciprocidade Thiers, que negociou com Bismarck a libertação dos militares presos na Alemanha. A partir disso organizou um cerco contra a Comuna e passou para os bombardeamento no do dia 2 de abril, os comunards resistiram, houve confrontos e 1.500 soldados da comuna foram capturados. De acordoo com Marx: "A primeira leva de prisioneiros parisienses transferida a Versalhes foi submetida a atrocidades revoltantes (...) Os soldados de linha capturados foram massacrados a sangue-frio". (p. 52). No dia 7 de abril, como forma de parar os massacres, a Comuna ameaçou “proteger Paris contra as proezas canibalescas dos bandidos versalheses e de exigir olho por olho, dente por dente”. (p. 53). Mas isso nunca foi levado a pratica, assim não se freou Thiers e o bando da Assembleia Nacional e suas tropas:

(…) o fuzilamento de prisioneiros foi suspenso por um tempo. Mas tão logo Thiers e seus generais dezembristas perceberam que o decreto da Comuna sobre represálias não era mais que uma ameaça vazia, que até os gendarmes espiões detidos em Paris com o disfarce de guardas nacionais estavam sendo poupados, assim como os sergents de ville pegos portando granadas incendiárias, reiniciou-se então o fuzilamento em massa dos prisioneiros, prosseguindo ininterruptamente até o fim. As casas em que se refugiaram os guardas nacionais foram cercadas por gendarmes, inundadas com petróleo (que aparece, aqui, pela primeira vez nesta guerra) e, em seguida, incendiadas; os corpos carbonizados foram recolhidos mais tarde pela ambulância da imprensa, em Les Ternes. Quatro guardas nacionais que se renderam a uma tropa de soldados montados em Belle Epine, em 25 de abril, foram posteriormente fuzilados, um por um, pelo capitão, homem de confiança de Gallifet. Scheffer, uma de suas quatro vítimas, a quem se havia dado como morto, arrastou-se até os postos avançados de Paris e testemunhou esse fato perante uma comissão da Comuna. (p. 53).

Seção III

No Manifesto de 18 de março lançado pelo comitê da Comuna na “crise dos canhões já se defendia a instauração de uma governo formado pelos trabalhadores:

em meio a fracassos e às traições das classes dominantes, compreenderam que é chegada a hora de salvar a situação, tomando em suas próprias mãos a direção dos negócios públicos (...) Compreenderam que é seu dever imperioso e seu direito absoluto tornar-se donos de seus próprios destinos, tomando o poder governamental. (Apud Marx, 2019, p. 54).

Em 28 de março o proletariado parisiense ciava oficialmente um Estado operário independente, paralelo ao Estado burguês sediado em Versalhes. Mas, de acordo com Marx, os trabalhadores concluíram não bastava ocupar o poder político em Paris mantendo sua estruturação burguesa, era necessário destruí-la. Não se tratava de "transferir a maquinaria burocrático-militar de uma mão para outra, como foi feito até então, mas sim em quebrá-la, e que esta é a precondição de toda revolução popular efetiva no continente. Esse é, também, o experimento de nossos heróicos correligionários de Paris2". (MARX, 2019). A Comuna de Paris apontou quais os caminhos para a destruição da maquina estatal burguesa. Evidenciando assim que: "a classe operária não pode simplesmente se apossar da máquina do Estado tal como ela se apresenta e dela servir-se para seus próprios fins". (Idem, p. 54). Marx destaca que a estrutura do Estado foi moldada desde os tempos da monarquia absoluta, adentrou ao controle do Parlamento controlado diretamente pelas classes proprietárias. Foi dessa estrutura que a burguesia se apoderou para a manutenção da dominação do capital sobre o trabalho. Para fundamentar a defesa da destruição do Estado burgues, Marx aborda desde o surgimento do Estado moderno, na monarquia absoluta, até o momento de tentativa de dissolução dele na Comuna:

O poder estatal centralizado, com seus órgãos onipresentes, com seu exército, polícia, burocracia, clero e magistratura permanentes – órgãos traçados segundo um plano de divisão sistemática e hierárquica do trabalho –, tem sua origem nos tempos da monarquia absoluta e serviu à nascente sociedade da classe média como uma arma poderosa em sua luta contra o feudalismo. Seu desenvolvimento, no entanto, permaneceu obstruído por todo tipo de restos medievais, por direitos senhoriais, privilégios locais, monopólios municipais e corporativos e códigos provinciais. A enorme vassoura da Revolução Francesa do século XVIII varreu todas essas relíquias de tempos passados, assim limpando ao mesmo tempo o solo social dos últimos estorvos que se erguiam ante a superestrutura do edifício do Estado moderno erigido sob o Primeiro Império, ele mesmo o fruto das guerras de coalizão da velha Europa semifeudal contra a França moderna. Durante os regimes subsequentes, o governo, colocado sob controle parlamentar – isto é, sob o controle direto das classes proprietárias –, tornou-se não só uma incubadora de enormes dívidas nacionais e de impostos escorchantes, como também, graças à irresistível fascinação que causava por seus cargos, pilhagens e patronagens, converteu-se no pomo da discórdia entre as facções rivais e os aventureiros das classes dominantes; mas o seu caráter político mudou juntamente com as mudanças econômicas ocorridas na sociedade. (pp. 54-55).

No período da revolução industrial, da hegemonia burguesa, o Estado evidenciou seu caráter de classe na manutenção da dominação e exploração da classe trabalhadora:

No mesmo passo em que o progresso da moderna indústria desenvolvia, ampliava e intensificava o antagonismo de classe entre o capital e o trabalho, o poder do Estado foi assumindo cada vez mais o caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a escravização social, de uma máquina do despotismo de classe. Após toda revolução que marca uma fase progressiva na luta de classes, o caráter puramente repressivo do poder do Estado revela-se com uma nitidez cada vez maior. (MARX, 2019, p. 55).

Os primeiros passos para a destruição do Estado burguês

Marx caracteriza a Comuna de Paris como uma forma de antítese do Império de Bonaparte, como a construção de uma "República social", uma contraposição organizada contra a dominação burguesa, imposta pela classe operária em autogoverno. Em sua reafirmação como poder proletário, foi necessário destruir as bases da dominação burguesa, desmontar a estrutura do exército burguês e substituí-lo pelo povo armado:

Paris, sede central do velho poder governamental e, ao mesmo tempo, bastião social da classe operária francesa, levantara-se em armas contra a tentativa de Thiers e dos “rurais” de restaurar e perpetuar aquele velho poder que lhes fora legado pelo Império. Paris pôde resistir unicamente porque, em consequência do assédio, livrou-se do exército e o substituiu por uma Guarda Nacional, cujo principal contingente consistia em operários. Esse fato tinha, agora, de se transformar em uma instituição duradoura. Por isso, o primeiro decreto da Comuna ordenava a supressão do exército permanente e sua substituição pelo povo armado. (p. 56).

Além do exército, a polícia também perdeu seu caráter de perseguição e repressão à classe trabalhadora e a seus movimentos políticos. A própria polícia também tornou-se revogável: "Em vez de continuar a ser o agente do governo central, a polícia foi imediatamente despojada de seus atributos políticos e convertida em agente da Comuna, responsável e substituível a qualquer momento". (MARX, 2019, p. 57). Com isso, Paris se viu "livre do exército permanente e da polícia – os elementos da força física do antigo governo". (p.57). Além de desmontar as instituições burguesas de repressão física que agiam permanentemente contra a classe trabalhadora, buscou-se também suprimir o poder político da Igreja que dava sustentação espiritual a dominação de classe:

(…) a Comuna ansiava por quebrar a força espiritual de repressão, o “poder paroquial”, pela desoficialização [disestablishment] e expropriação de todas as igrejas como corporações proprietárias. Os padres foram devolvidos ao retiro da vida privada, para lá viver das esmolas dos fiéis, imitando seus predecessores, os apóstolos. (MARX, 2019, p. 57).

A Comuna também suprimiu os cargos parlamentares de longa duração, todos os cargos deveriam ser revogáveis a qualquer momento:

A Comuna era formada por conselheiros municipais, escolhidos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade, responsáveis e com mandatos revogáveis a qualquer momento. A maioria de seus membros era naturalmente formada de operários ou representantes incontestáveis da classe operária. A Comuna devia ser não um corpo parlamentar, mas um órgão de trabalho, Executivo e Legislativo ao mesmo tempo. (…). (Idem, pp. 56-57).

Também foram abolidos os altos salários nos poderes públicos, bem como os salários miseráveis do proletariado:

Dos membros da Comuna até os postos inferiores, o serviço público tinha de ser remunerado com salários de operários. Os direitos adquiridos e as despesas de representação dos altos dignitários do Estado desapareceram com os próprios altos dignitários. As funções públicas deixaram de ser propriedade privada dos fantoches do governo central. Não só a administração municipal, mas toda iniciativa exercida até então pelo Estado foi posta nas mãos da Comuna. (Idem, p. 57).

Ainda, a Comuna instituiu o ensino gratuito, laico e universal, acessível a todos: "Todas as instituições de ensino foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo purificadas de toda interferência da Igreja e do Estado. Assim, não somente a educação se tornava acessível a todos, mas a própria ciência se libertava dos grilhões criados pelo preconceito de classe e pelo poder governamental". (p. 57).

Marx aponta que outra tarefa da Comuna era a descentralização do Poder em Paris: "o antigo governo centralizado também teria de ceder lugar nas províncias ao autogoverno dos produtores". (p. 57). Mas na iminência dos 71 dias de Comuna essa tarefa não pôde ser realizada: "No singelo esboço de organização nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver, consta claramente que a Comuna deveria ser a forma política até mesmo das menores aldeias do país e que nos distritos rurais o exército permanente deveria ser substituído por uma milícia popular, com um tempo de serviço extremamente curto". (p. 57).

Com todas essas incursões sobre as instituições sociais, Marx aponta que: "O regime comunal teria restaurado ao corpo social todas as forças até então absorvidas pelo parasita estatal, que se alimenta da sociedade e obstrui seu livre movimento. Esse único ato bastaria para iniciar a regeneração da França". (p. 59). Como foi articulada pela cidade, pelo poder operário: "regime comunal colocava os produtores do campo sob a direção intelectual das cidades centrais de seus distritos, e a eles afiançava, na pessoa dos operários, os fiduciários naturais de seus interesses". (p. 59). Aponta ainda que a Comuna tornou a administração estatal mais barata:

A Comuna tornou realidade o lema das revoluções burguesas – o governo barato – ao destruir as duas maiores fontes de gastos: o exército permanente e o funcionalismo estatal. Sua própria existência pressupunha a inexistência da monarquia, que, ao menos na Europa, é o suporte normal e o véu indispensável da dominação de classe. A Comuna dotou a República de uma base de instituições realmente democráticas. Mas nem o governo barato nem a “verdadeira República” constituíam sua finalidade última. Eles eram apenas suas consequências. (MARX, 2019, p. 59).

O que tornou possível todos esses avanços foi justamente o poder operário na organização da sociedade, a forma política de autogoverno do proletariado que levava à emancipação política e econômica do trabalho em relação à dominação burguesa: "Eis o verdadeiro segredo da Comuna: era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho". (p. 59). A Comuna construiu na prática a emancipação de classe eliminando seus parasitas, transformando todos os homens em produtores: "A Comuna, portanto, devia servir como alavanca para desarraigar o fundamento econômico sobre o qual descansa a existência das classes e, por conseguinte, da dominação de classe. Com o trabalho emancipado, todo homem se converte em trabalhador e o trabalho produtivo deixa de ser um atributo de classe". (p. 59). O autor destaca que a revolução proletária de Paris foi também fruto do protagonismo das mulheres parisienses:

(...) as verdadeiras mulheres de Paris voltavam a emergir: heroicas, nobres e devotadas como as mulheres da antiguidade. Trabalhando, pensando, lutando, sangrando: assim se encontrava Paris, em sua incubação de uma sociedade nova e quase esquecida dos canibais à espreita diante de suas portas, radiante no entusiasmo de sua iniciativa histórica! (p. 66).

Ainda, Marx aponta que a Comuna tinha aspirações ainda mais profundas:

A Comuna, exclamam, pretende abolir a propriedade, a base de toda civilização! Sim, cavalheiros, a Comuna pretendia abolir essa propriedade de classe que faz do trabalho de muitos a riqueza de poucos. Ela visava a expropriação dos expropriadores. Queria fazer da propriedade individual uma verdade, transformando os meios de produção, a terra e o capital, hoje essencialmente meios de escravização e exploração do trabalho, em simples instrumentos de trabalho livre e associado. (MARX, 2019, p. 60).

Marx aponta que a classe trabalhadora parisiense em luta contra o velho regime, tinha clareza das dificuldade de se colocar em prática um plano social transicional:

A classe trabalhadora não esperava milagres da Comuna. Os trabalhadores não têm nenhuma utopia já pronta para introduzir par décret du peuple [por decreto do povo]. Sabem que, para atingir sua própria emancipação, e com ela essa forma superior de vida para a qual a sociedade atual, por seu próprio desenvolvimento econômico, tende irresistivelmente, terão de passar por longas lutas, por uma série de processos históricos que transformarão as circunstâncias e os homens. Eles não têm nenhum ideal a realizar, mas sim querem libertar os elementos da nova sociedade dos quais a velha e agonizante sociedade burguesa está grávida. (MARX, p. 60).

Marx destaca que, com a Comuna, “pela primeira vez na história, os simples operários ousaram infringir o privilégio estatal de seus ‘superiores naturais’”.(p. 61). Assim se instituía pela primeira vez a “República do trabalho”. Marx, infere que nesse processo, a classe trabalhadora demonstrou sua capacidade exercer hegemonia social sobre outros setores da sociedade: “essa foi a primeira revolução em que a classe trabalhadora foi abertamente reconhecida como a única classe capaz de iniciativa social, mesmo pela grande massa da classe média parisiense – lojistas, negociantes, mercadores –, excetuando-se unicamente os capitalistas ricos”. (p. 61). Isso porque, os setores de pequenos proprietários e classes médias viram “que havia apenas uma alternativa, a Comuna ou o Império, qualquer que fosse o nome sob o qual este viesse a ressurgir”. (p. 61). O mesmo valia para os camponeses, a vitória da Comuna era sua esperança contra os “rurais” das classes dominantes. Entre os benefícios da Comuna para os camponeses, Marx destaca:

(...) A Comuna teria isentado o camponês da maldita taxa, ter-lhe-ia dado um governo barato, teria convertido os seus atuais sanguessugas – o notário, o advogado, o coletor e outros vampiros judiciais – em empregados comunais assalariados, eleitos por ele e responsáveis perante ele. Tê-lo-ia libertado da tirania do garde champêtre [guarda rural], do gendarme e do prefeito, teria posto o esclarecimento do professor escolar no lugar do embrutecimento do pároco. E o camponês francês é, acima de tudo, um homem de cálculo. (...). (p. 62).

Por tais aspectos, Marx considera que a Comuna conseguia representar “todos os elementos saudáveis da sociedade francesa”. Por isso afirmava-se como “o verdadeiro governo nacional, ela era, ao mesmo tempo, como governo operário e paladino audaz da emancipação do trabalho, um governo enfaticamente internacional”. (MARX, 2019, p. 63).

Seção IV

Nessa última seção Marx enfoca no confronto final e na repressão à Comuna. Conforme apontado, após a fuga do governo de Thiers e do exército para Versalhes, passou-se a articulação da contrarrevolução para esmagar a Comuna. O governo lançou um chamado às províncias para formar um novo exército, mas os trabalhadores do campo e das cidades recusaram o apelo. Thiers também apelou a Bismarck, solicitando a libertação dos militares presos ao longo da guerra. Solicitava a libertação dos prisioneiros unicamente com objetivo de reprimir Paris. Só assim Thiers conseguiu compor um forte exército capaz de derrotar a Paris operária. De acordo com Marx: “Quando o momento decisivo estava próximo, disse – à Assembleia: “Serei impiedoso!” – a Paris que ela estava condenada; e aos seus bandidos bonapartistas, que estes tinham licença estatal para vingar-se de Paris como bem o entendessem”. (p.72). No dia 21 maio de 1871 as tropas de Versalhes invadiram Paris, encontraram na resistência de Paris homens, mulheres e crianças dispostos a morrerem pela Comuna, os confrontos duraram 8 dias. De acordo com Marx:

E assim foi. A civilização e a justiça da ordem burguesa aparecem em todo o seu pálido esplendor sempre que os escravos e os párias dessa ordem se rebelam contra seus senhores. Então essa civilização e essa justiça mostram-se como uma indisfarçada selvageria e vingança sem lei. Cada nova crise na luta de classes entre o apropriador e o produtor faz ressaltar esse fato com mais clareza. Mesmo as atrocidades da burguesia em junho de 1848 se esvanecem diante da infâmia de 1871. O abnegado heroísmo com que a população de Paris – homens, mulheres e crianças – lutou por oito dias desde a entrada dos versalheses reflete a grandeza de sua causa tanto quanto as façanhas infernais dessa soldadesca refletem o espírito inato da civilização da qual eles são os mercenários defensores. Esta gloriosa civilização, cujo grande problema é saber como se ver livre, finda a batalha, das pilhas de cadáveres que ela produziu! (pp. 72-73).

Marx compara o massacre à Comuna aos massacres no Império Romano no período dos triunviratos:

Para encontrar um paralelo para a conduta de Thiers e seus cães de caça temos de voltar aos tempos de Sula e dos dois triunviratos de Roma. Os mesmos morticínios em massa a sangue-frio, o mesmo desdém, no massacre, pela idade e pelo sexo, o mesmo sistema de tortura dos prisioneiros, as mesmas proscrições, mas agora de uma classe inteira, a mesma caça selvagem dos líderes na clandestinidade para evitar que qualquer um deles conseguisse escapar, as mesmas delações de inimigos políticos e privados, a mesma indiferença pela chacina de pessoas inteiramente estranhas à luta. Há somente uma diferença: os romanos não dispunham de mitrailleuses para despachar em massa os proscritos e não tinham “a lei em suas mãos”, nem em seus lábios o brado de “civilização”. (p. 73).

Marx aponta que a repressão e assassinato em massa na Comuna foi um dos mais violentos da história até então. Enquanto o massacre ocorria (e depois dele), o governo, o Partido da Ordem, os rurais e a burguesia, além do assassinato em massa de cerca de 30 mil trabalhadores, ainda dedicaram-se a caluniar a Comuna e seus apoiadores: “Em cada um de seus sangrentos triunfos sobre os abnegados paladinos de uma nova e melhor sociedade, essa abominável civilização, baseada na escravização do trabalho, afoga os gemidos de suas vítimas em uma gritaria selvagem de calúnias reverberadas por um eco mundial. A serena Paris operária da Comuna é subitamente transformada em pandemônio pelos cães de caça da “ordem”. (p. 74).

Ainda sobre a resistência, Marx apontou que: “O povo de Paris morre entusiasticamente pela Comuna em quantidade não igualada por nenhuma batalha conhecida da história (...). As mulheres de Paris dão alegremente as suas vidas nas barricadas e no campo de fuzilamento (...). A moderação da Comuna durante os dois meses de seu governo indisputado só se iguala ao heroísmo de sua defesa”. (p. 74). Marx finaliza o documento sublinhando que “A Paris dos trabalhadores, com sua Comuna, será eternamente celebrada como a gloriosa precursora de uma nova sociedade”. (MARX, 2019, p. 79). Viva a Comuna de Paris!


Bibliografia

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LENIN. V.  A Comuna de Paris e as Tarefas da Ditadura Democrática. Acesse: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/07/17.htm

LENIN. V.  Os Ensinamentos da Comuna. Acesse: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1908/03/23.htm

MARX, K. Guerra civil na França. Boitempo. SP. 2019.

MARX, K. As lutas de classe na França. Boitempo.

MARX, K. Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores. 1864.

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MOURA. A. Marx em defesa da liberdade de imprensa (1842). Acesse: https://www.esquerdadiario.com.br/Marx-em-defesa-da-liberdade-de-imprensa-1842

MOURA. A. A ruptura de Marx com Hegel: Critica da filosofia do direito de Hegel. Acesse: https://www.esquerdadiario.com.br/A-ruptura-de-Marx-com-Hegel-Critica-da-filosofia-do-direito-de-Hegel

MOURA. A. Marx, O Estado e a liberdade religiosa - um debate sobre A questão judaica. Acesse: http://combateclassista.blogspot.com/2020/03/marx-o-estado-e-liberdade-religiosa.html

TROTSKI, L. Lições da Comuna. 1921. Acesse: https://esquerdaonline.com.br/2021/03/16/licoes-da-comuna-por-leon-trotsky/

TROTSKI, L. A Comuna de Paris e a Rússia dos Sovietes. Acesse: https://esquerdaonline.com.br/2021/03/16/licoes-da-comuna-por-leon-trotsky/



1 Mandel, E. La Primera Internacional y su lugar en la evolucion del movimiento obrero. 1954.

2 Carta escrita por Marx durante a Comuna (12 de abril de 1871) a Ludwig Kugelmann.

 
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