Combate Classista

Teoria Marxista, Política e História contemporânea.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Eleições 2022 no Brasil: breve nota para um balanço crítico

Alessandro de Moura



O comportamento eleitoral da primeira rodada de 2022 mostrou como o discurso conservador continua colando forte pelo Brasil afora, sobretudo em São Paulo, Estado mais rico e desenvolvido do país. Os grandes meios de comunicação e setores da Igreja tiveram papel central na composição desse quadro. Mas, dentro dele, o reformismo lulista recuperou votos em relação a 2018. Com isso, os candidatos prediletos alcançam votação significativa. O partido que ocupa a máquina estatal tende a ter uma vantagem na largada. Mas, frente ao desgaste e descontentamento com o governo Bolsonaro, Lula recebeu 48,4% dos votos válidos. Certamente, parte da população espera que Lula possa, de alguma forma, trazer de volta o período de crescimento decorrido na primeira década dos anos 2000. O PT, considerando os índices de desaprovação do governo Bolsonaro, apostou numa vitória rápida, mas foi surpreendido com metade do eleitorado votando no direitista (43,2% dos votos válidos).

Embora se deva considerar a influência da conjuntura, é necessário pontuar a responsabilidades sócio-históricas que o PT tem no quadro político do presente. Sobretudo por atuar continuamente como um partido da patronal, dos acordos por cima, negociatas etc., mas também por fazer uso dos mesmos discursos, das mesmas práticas e até da mesma estética de campanha. Tudo isso sem projeto nacional que pautasse as demandas populares históricas e sem se construir trabalhos nas bases.

Assim, o PT atuou como um partido burguês no alto das superestruturas, tal qual os demais representantes das classes dominantes. Isso impacta diretamente na construção da sua identidade partidária, na forma como o eleitorado compreende o perfil do partido e de seus candidatos. Por isso, é muito difícil diferenciá-lo dos outros partidos burgueses. Agravando o cenário, como agente coletivo (condutor político), educa as diversas frações da classe trabalhadora a votarem pelo imediato. Pelo mínimo, perdido na pequena política. Pelo que se passou nas últimas semanas, pelas últimas política sociais, sempre segundo as regras e métodos do jogo parlamentar burguês. Isso desarma as bases partidárias e dificulta qualquer forma de atuação delas na defesa do partido, com isso, consequentemente, o PT não consegue gerar o engajamento que precisa nos momentos críticos.

O partido é sujeito ativo na construção da passividade em seu próprio eleitorado. Ele nem sequer utilizou seu aparato sindical no impulsionamento necessário, nem nos últimos 4 anos e nem mesmo nesse ano eleitoral para confrontar o governo direitista. A orientação suprema era para “esperar o momento das eleições”, “não provocar os adversários”, enquanto isso, deveria reinar a passividade e a servilidade na luta de classes e na luta política. Assim se construiu a apatia da ação, tudo foi continuamente canalizado para as eleições. Parece que não se tem mais sindicato, central sindical ou federação, deixou-se de falar em greve, ações de rua, mobilização. Tudo isso soa como palavrão aos dirigentes da sigla. Os chefes do partido sabem que a luta social educa politicamente, e é determinante para o protagonismo antagonista, mas, ao mesmo tempo, uma base atuante acaba pressionando o partido, seu arco de alianças e sua movimentação política. Apartando-se dos locais de trabalho e da construção corpo a corpo, todo a politização ficou a cargo do horário eleitoral e dos debates. Tudo por cima. E, ainda assim, se espera que os setores da classe trabalhadora se engajem simplesmente pelo voto.

Outro aspecto precisa ser considerado em relação aos candidatos. O PT, nos anos 1980, até a primeira metade da década de 1990, era um partido de massas, com base sindicais que atuavam nas greves, com base popular nos movimentos de bairro, lutas populares, na esquerda católica, nas lutas anti-racistas etc. Os quadros políticos, vereadores e deputados, eram pessoas oriundas das lutas sociais, da luta de classes ou do combate e enfrentamento direto, com importante protagonismo social e político. Isso dava cara de mandato popular a sua atuação nas instituições do Estado. Muito diferente do que temos hoje. Agora, nas eleições de 2022, o que se pode esperar dos candidatos petistas? Ninguém sabe... Por que confiar neles? No que eles se diferenciam das outras candidaturas burguesas? É muito difícil de se precisar. Como se pode esperar que o partido e seus candidatos sejam acolhidos e defendidos pelas massas trabalhadoras nesse contexto?

Nos 1980 o PT ganhou influência nas bases católicas, nesse contexto usou essas bases contra os grupos combativos que construíam o partido e suas lutas. O projeto da Articulação-PT e da Articulação-Sindical sempre foi atuar independente do controle das bases auto-organizadas e isolar as alas combativas que se auto-organizavam em seu interior. Queriam a autonomia total para negociar com o empresariado e com os velhos coronéis da política. Fizeram isso tanto no sindicalismo (contra a Oposição sindical metalúrgica de SP) como nos movimentos de bairro. Nessa longa batalha conseguiram garantir autonomia quase total em relação ao protagonismo das bases. Mas o custo dessa prática de esterilização das bases, com atuação por cima dos interesses históricos da classe trabalhadora, foi alto a longo prazo. Como uma faca de dois gumes, isso matou o movimento combativo de base, que era o diferencial do PT no início dos anos 1980, era o seu escudo e sua lança.

A ausência de um projeto político nacional, de um programa político-econômico para se enfrentar os principais problemas históricos e dilemas nacionais, a falta de formas de engajamento para a luta social, deixou as massas trabalhadoras abandonadas em suas necessidades estruturais mais profundas. Sobrou um amplo espaço vazio que, no contexto da crise internacional, acabou sendo ocupado por alas direitistas e de extrema direita. Essas tendências encontraram espaço de crescimento, dissimularam suas intencionalidades estratégicas e se colocam na ofensiva em variadas formas de ativismo, arregimentando apoio para uma crítica geral às instituições do Estado, ainda que por um viés conservador, os setores da direita e extrema-direita, ofereceram bandeiras para engajamentos em pautas amplas e relativamente obscuras contra “a política tradicional”.

Claro que essa intencionalidade de governar independente das mobilizações de base, sua ausência nas lutas cotidianas e históricas, bem como os pactos com as classes dominantes, não explicam tudo. Pois vivemos movimentos de acomodação nas bases também, uma certa apatia política crescente, fruto de um processo mais longo, com determinantes nacionais e internacionais. Mas, o que se evidencia é que o PT e seus dirigentes políticos de destaque não investiram energias para a ativação de suas bases e nem pretendem fazê-lo. A resposta política que precisamos não pode então ser dada por este partido ou por seus parceiros políticos. Ou as massas trabalhadoras constroem alternativas combativas e ocupam as ruas, ou ficarão ao sabor das disputas nos “andares superiores” das classes dominantes.

Alessandro de Moura é professor e sociólogo.

terça-feira, 15 de março de 2022

Educação em Marx: formação da consciência, escola e luta de classes

 

Educação em Marx: formação da consciência, escola e luta de classes

Alessandro de Moura[1]

No presente ensaio, abordamos a compreensão elaborada por Marx sobre a formação da consciência e a partir disso, evidenciamos suas ideias sobre educação escolar e ensino público. Dentro desse contexto, relacionamos suas contribuições com as de Vygotsky e Gramsci. Por fim, para além da educação pública e gratuita, apontamos as dificuldades estruturais enfrentadas pela escola na sociedade de classes.

A formação social da consciência em Marx

Para Karl Marx, a formação do pensamento está totalmente relacionada ao meio externo, com as interações que se estabelecem ao longo da existência humana compreendida como processos de subjetivação e objetivação. Tal aspecto pode ser observado desde os textos da juventude até os últimos escritos do autor. No Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844, Marx já denotava a inseparável relação entre realidade material e a formação da consciência:

(...) Assim como plantas, animais, pedras, ar, luz etc., formam teoricamente uma parte da consciência humana, em parte como abjetos da consciência natural, em parte como objetos da arte - sua natureza inorgânica, meios de vida espirituais, que ele tem de preparar prioritariamente para a fruição e para a digestão -, formam também praticamente uma parte da vida humana e da atividade humana. (...). (MARX, 2004, p. 84).

Em outro trecho, aprofunda o caráter social na formação da percepção e da aprendizagem humana:

(...) O homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total. Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetividade humana; seu comportamento para com o objeto é o acionamento da efetividade humana (por isso ela é precisamente tão multíplice (vielfach) quanto multíplices são as determinações essenciais e atividades humanas), eficiência humana e sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente apreendido, é uma autofruição do ser humano. (Idem, p. 108).

O que cada geração apreende e acumula de substantivo, como ganho social, é incorporado como cultura sócio-histórica e transmitido às novas gerações, como afirma o autor: “os sentidos e o espírito do outro homem se tornaram a minha própria apropriação. Além destes órgãos imediatos formam-se, por isso, órgãos sociais, na forma da sociedade, logo, por exemplo, a atividade em imediata sociedade com outros etc., tornou-se um órgão da minha externação de vida e um modo da apropriação da vida humana”. (MARX, 2004, p. 109). Em outro parágrafo, enfatiza que: “(...) não só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela existência do seu objeto, pela natureza humanizada”. (MARX, 2004, p. 110). De tal maneira, “A natureza é o corpo inorgânico do homem”. (Idem, p. 84). Por fim, complementa que: “A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui”. (MARX, 2004, p. 110). Nesse sentido, na inter-relação de singularidades e universalidades, a cultura é compreendida como parte da natureza de cada indivíduo.

Desde o início da vida, o ser humano entra em contato com o meio exterior, com uma realidade estruturada, pré-estabelecida. Nesse processo, aprende a decifrá-la enquanto constrói explicações e organização mental para todo o existente fora de si, ao mesmo tempo em que se localiza como sujeito de ação e com isso, molda sua estrutura interna de sentimentos, pensamentos e atividades. Para o autor, conforme afirma na terceira tese ad Feuerbach, os seres humanos, frutos do meio em que vivem, são também os seres que modificam estes meios de vida, constroem-no e o transformam de acordo com suas necessidades sociais e históricas.

Assim, o mundo exterior ao sujeito é compreendido como base de todo pensamento e atuação, a realidade material é a plataforma de onde deriva toda compreensão e ação humana. E com isso, a própria filosofia é parte do desdobramento da intervenção sobre o mundo, é fruto de uma dinâmica concreta da relação entre a humanidade atuante sobre a natureza interna e externa. Conforme destacou Marx n’A ideologia alemã: “(...) Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens”. (2007, p. 35). Em síntese, o ser humano, em qualquer meio que viva, absorve e elabora saberes sobre a realidade material e espiritual para atuar sobre a realidade externa:

A produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser consciente dos homens é o seu processo de vida real. (...). (MARX, 2007, p. 94).

Também em O capital, publicado em 1867, Marx reafirmou que todo o ser humano é um ser que aprende e se desenvolve intelectualmente por meio da relação com o meio que lhe é exterior:

(...) o homem se espelha primeiramente num outro homem. É apenas por intermédio da relação com Paulo como seu igual que Pedro se relaciona consigo mesmo como ser humano. Além disso, no entanto, Paulo também vale para ele, em carne e osso, em sua corporeidade paulina, como forma de manifestação do gênero humano. (MARX, 2013, p. 129).

Como as formas de pensamento, derivadas das múltiplas relações, são exteriorizadas e se objetivam em práticas sociais, a própria essência do ser humano é social, histórica e processual. Segundo o pedagogo Lev Vygotsky (1896-1934):

(...) o processo de internalização consiste numa série de transformações. (...) a) Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente. (...) b) Um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal. (...). A transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorrido ao longo do desenvolvimento. (...). (VYGOTSKI, 2003, p. 75).

Foi nesse sentido que Gramsci, no Caderno do cárcere (n.º 11), afirmou que todos os seres humanos são filósofos, mesmo que nem todos o exerçam conscientemente: “(...) todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente - já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada concepção do mundo (...)”. (GRAMSCI, 2001, p. 93). Ou, no mesmo sentido, todos os homens são intelectuais, ainda que poucos o tomem de forma profissional, conforme apontou no caderno 12 da mesma obra:

Por isso, seria possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais (assim, o fato de que alguém possa, em determinado momento, fritar dois ovos ou costurar um rasgão no paletó não significa que todos sejam cozinheiros ou alfaiates). Formam-se assim, historicamente, categorias especializadas para o exercício da função intelectual; formam-se em conexão com todos os grupos sociais, mas sobretudo em conexão com os grupos sociais mais importantes, e sofrem elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo social dominante. (...). (GRAMSCI, 2001, pp. 18-19).

A história da humanidade tem sua dinâmica diretamente influenciada pelas formas como se desdobram os processos sociais e interativos e, consequentemente, por suas ações sobre a realidade. Ou seja, a realidade, fruto das ações humanas, transforma-se de acordo com as interações dos sujeitos e tais interações constituem a interação social. Neste processo de interação entre os seres humanos e natureza, como produção de seus meios de subsistência, o ser humano acaba por produzir a si mesmo e a própria vida material coletiva, e desta forma, faz-se como um ser que se autoproduz em um movimento contínuo e infinito.

Marx denota que as novas gerações recebem um mundo já estruturado pelas gerações que a precederam, no entanto, essas mesmas gerações, atuando no presente prático, social e político, têm em suas mãos a capacidade de transformação da realidade social e política. Conforme podemos ler em A ideologia alemã:

(...) cada geração recebe da geração passada, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias que, embora seja, por um lado, modificada pela nova geração, por outro lado prescreve a esta última suas próprias condições de vida e lhe confere um desenvolvimento determinado, um caráter especial - que portanto, as circunstâncias fazem os homens, assim com os homens fazem as circunstâncias. Essa soma de forças de produção, capitais e formas sociais de intercâmbio, que cada indivíduo e cada geração encontram como algo dado, é o fundamento real [reale] daquilo que os filósofos representam como "substância" e "essência do homem", aquilo que eles apoteosam e combateram (...). (MARX, 2007, p. 43).

No entanto, segundo a perspectiva de Marx, embora todo ser humano seja dotado de capacidades de elaboração intelectual complexa sobre o mundo, as condições de difusão de seu produto e das formas de compreensão não são homogêneas. A interpretação da realidade sócio-material é disputada por variados grupos e corporações que compõem a totalidade sociocultural humana, envolvendo capital público e privado. Os grupos hegemônicos lutam pela difusão de sua própria visão de mundo e interesses, e assim, a produção de sentido sobre a realidade social se dá em níveis muito desiguais. Determinados grupos podem obter condições mais propícias para difusão de sua perspectiva de mundo e construir hegemonia social sobre determinadas perspectivas:

(...) A classe que tem à sua disposição os meios de produção materiais dispõem também dos meios de produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias da dominação. (...). (MARX, 2007, p. 47).

Desta forma, para Marx, as classes sociais que monopolizam os meios de produção material da vida, monopolizam também os meios de produção de discurso e de difusão de padrões, de forma de vida, modelos educacionais, conteúdos ministrados nos centros de ensino, nas escolas e universidades. A classe dominante busca forjar consensos que favoreçam a manutenção da ordem socioeconômica posta. Por isso, já no Manifesto comunista, publicado em 1848, Marx e Engels afirmavam que: “Os comunistas não inventaram a intromissão da sociedade na educação; apenas procuram modificar seu caráter arrancando a educação da influência da classe dominante”. (MARX: ENGELS, 2005, p. 55).

A formação social da mente em Vygotsky

Para Marx, a educação deve ter, como objetivo central, o desenvolvimento das múltiplas capacidades humanas latentes. Nos primeiros anos de vida, a criança apreende e elabora uma grande diversidade de signos, significados e sentidos e, nesse processo, imerso em relações variadas com os adultos, na convivência familiar e comunitária, compõem-se as bases da socialização, como apontou Vygotsky:

É por meio de outros, por intermédio do adulto que a criança se envolve em suas atividades. Absolutamente, tudo no comportamento da criança está fundido, enraizado no social. [...] Assim, as relações da criança com a realidade são, desde o início, relações sociais. Neste sentido, poder-se-ia dizer que o bebê é um ser social no mais elevado grau. (VYGOTSKY, 2010, p. 16).

Nesse sentido, Gramsci, no caderno 12, também denotava que as crianças refletem o meio social de sua convivência, de suas experiências sociais:

(...) Mas a consciência da criança não é algo “individual” (e muito menos individualizado): é o reflexo da fração de sociedade civil da qual a criança participa, das relações sociais tais como se aninham na família, na vizinhança, na aldeia, etc. A consciência individual da esmagadora maioria das crianças reflete relações civis e culturais diversas e antagônicas às que são refletidas pelos programas escolares. (...). (GRAMSCI, 2001, p. 44).

Para Vygotsky, a socialização da criança pressupõe a transformação de fenômenos e compreensões sociais (interpsíquicos) com estímulos externos, em fenômenos intrapsíquicos. De tal maneira, fenômenos e ferramentas socioculturais são incorporados e interiorizados de forma individualizada, particularizada. Interiorizam-se as estruturas de pensamento e ação. Ou seja, todo o desenvolvimento humano tem origem nas relações sociais e históricas exteriores, que por sua vez, desencadeiam processos interiores: “Através dos outros constituímo-nos. Em forma puramente lógica a essência do processo do desenvolvimento cultural consiste exatamente nisso”. (Vygotsky, 2000, p. 24). Ainda, segundo o autor:

(...) todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas. (VYGOTSKY, 2010, p. 97- grifado no original).

Nesse processo, cada nova geração é, desde a mais tenra idade, socializada com as formas de existência de cada período que lhe é correspondente, com seus avanços contínuos e com a base técnica produtiva vigente. A partir disso, fica claro o ponto de partida segundo o qual “(...) a aprendizagem da criança começa muito antes da aprendizagem escolar. A aprendizagem escolar nunca parte do zero. Toda a aprendizagem da criança na escola tem uma pré-história”. (VYGOTSKY, 2010, p. 93). Apoiando-se em formulações centrais de Marx, Vygotsky também considerou que, ao nascer, o ser humano defronta-se com uma estruturação social posta, uma totalidade concreta composta de instituições sociais, valores, normas, leis etc. É nesta interação sócio-histórica produz a própria personalidade humana.

A personalidade torna-se para si aquilo que ela é em si, através daquilo que ela antes manifesta como seu em si para os outros. Este é o processo de constituição da personalidade. Daí está claro, porque necessariamente tudo o que é interno nas funções superiores ter sido externo: isto é, ter sido para os outros, aquilo que agora é para si. Isto é o centro de todo o problema do interno e do externo. (VYGOTSKY, 2000, p. 24).

Diante disso, todos os elementos que a mente humana processa e desenvolve estão diretamente relacionados à realidade exterior, vivida, percebida e compartilhada. Segundo o autor:

(...) falar sobre processo externo significa falar do social. Qualquer função psicológica superior foi externa – significa que ela foi social; antes de se tornar função, ela foi uma relação social entre duas pessoas. Meios de influência sobre si – inicialmente meio de influência sobre os outros e dos outros sobre a personalidade. (VYGOTSKY, 2000, pp. 24-25).

É em consequência disso que se pode afirmar que tudo o que é mental é fruto de relações sociais, segundo Vygotsky: “Em forma geral: a relação entre as funções psicológicas superiores foi outrora relação real entre pessoas. Eu me relaciono comigo tal como as pessoas relacionaram-se comigo”. (Idem, p. 25). Assim:

Todas as formas da comunicação verbal do adulto com a criança tornam-se mais tarde funções psicológicas. Lei geral: qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois planos – primeiro no social, depois no psicológico, primeiro entre as pessoas como categoria interpsicológica, depois – dentro da criança. (VYGOTSKY, 2000, p. 26).

Então, “Por trás de todas as funções superiores e suas relações estão relações geneticamente sociais, relações reais das pessoas”. (VYGOTSKY, 2000, p. 26). Segundo o autor, não se trata apenas de assimilação da ordem externa, mas de uma interação dialética, ativa na formação da própria personalidade individual: “O mais básico consiste em que a pessoa não somente se desenvolve, mas também constrói a si”. (Idem, p. 33).

A importância da educação escolar para o desenvolvimento

A escola funde-se no processo de formação social da mente, ampliando e direcionando curiosidades, estimulando a multilateralidade do conhecimento para além da vida imediata de cada criança, amplia as possibilidades de incorporação de sistemas conceituais. A vida escolar coloca as crianças e jovens em contato com uma série de conteúdos universais organizados, sistemáticos, ministrados de forma didática sequencializada, que desenvolverão suas capacidades potenciais. Estimula a imaginação, propõe novos desafios, metas e problematizações. Segundo Vygotsky, “Cada matéria escolar tem uma relação própria com o curso do desenvolvimento da criança, relação que muda com a passagem da criança de uma etapa para outra. (...)”. (VYGOTSKY, 2010, p. 100). Esse processo possibilita a amplificação na aquisição de novas sínteses elaboradas. Ainda de acordo com o autor: “(...) A relação entre pensamento e linguagem modifica-se no processo de desenvolvimento tanto no sentido quantitativo quanto qualitativo” (...). (Idem, p. 43).

Vygotsky destaca a importância de se verificar o conhecimento que o estudante já possuí, seu nível de desenvolvimento real. O educador parte desta base de conhecimentos já acumulada pelo estudante, estabelecendo pontes entre o conteúdo já adquirido em outros processos de aprendizagem (a partir das relações com outros indivíduos e ambientes sociais); e o novo conteúdo inicial que o estudante já está elaborando na zona proximal de forma embrionária, relacionando-os com aqueles que o estudante é capaz de internalizar, ou seja, seu nível de desenvolvimento potencial. (VIGOTSKY, 2000). Os novos conteúdos assimilados e as novas funções cerebrais desenvolvidas interagem constantemente em novos processos, qualitativamente mais complexos. Assim, criam-se bases para associar novos conhecimentos de uma nova ordem de complexidade. Sempre que se cria um novo estímulo que envolve o sujeito, lança-se uma nova base para novas reações, interações e interpretações e, assim, para o desenvolvimento intelectual progressivo.

Destaca-se que a educação escolar, com equipes especializadas e contínuos processos de aprendizagem e desenvolvimento, estabelece mediações dentro de uma base social e intelectual estabelecida pela própria sociedade, com demandas do presente e tendências futuras. Como apontou o autor: “(...) devemos esperar de antemão que, em linhas gerais, o próprio tipo de desenvolvimento histórico do comportamento venha a estar na dependência direta das leis gerais do desenvolvimento histórico da sociedade humana. (...)” (VYGOTSKY, 2010, p. 46).

O direito à educação universal, gratuita e de qualidade

Além dessa importância fundamental no desenvolvimento da mente, posteriormente, no mercado de trabalho, a falta da educação escolar formal será também um elemento de diferenciação na distribuição dos empregos e na remuneração salarial para os adultos. Aqui, a baixa frequência escolar, além de limitar o contato das crianças com os conteúdos oferecidos nas instituições educacionais, é utilizada como argumento para se pagar piores salários nos trabalhos mais intensos, precários e com menos direitos trabalhistas.

Centralmente, foi refletindo sobre o desenvolvimento humano múltiplo que Marx reafirmou a necessidade de se abolir o trabalho infantil que impede a socialização necessária e o ensino socialmente demandado. Do ponto de vista de Marx, o trabalho só pode ser permitido na adolescência em caráter restrito, como atividade pedagógica, como forma de estágio remunerado e com poucas horas diárias. (MARX, 1866).

Desde o Manifesto de 1848, Marx já defendia a “Educação pública e gratuita a todas as crianças; abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é praticado hoje. Combinação da educação com a produção material etc.”. (MARX: ENGELS, 2005, p. 58). No entanto, para se garantir o acesso universal à educação escolar, é necessário que se garanta que toda a estrutura material esteja à disposição da classe trabalhadora. Por isso, Marx destacou que na Comuna de Paris, em 1871 (em que se praticou a primeira experiência de poder operário), se “(...) ordenou que todos os materiais didáticos, como livros, mapas, papel etc., fossem dados gratuitamente aos professores, que doravante passam a recebê-lo das respectivas mairies [prefeituras] às quais pertencem. (MARX, 2019, p. 117). Outro ponto que mereceu destaque na comuna foi a implantação de uma educação laica e sem ensino religioso:

Uma vez livre do exército permanente e da polícia – os elementos da força física do antigo governo –, a Comuna ansiava por quebrar a força espiritual de repressão, o “poder paroquial”, pela desoficialização [disestablishment] e expropriação de todas as igrejas como corporações proprietárias. Os padres foram devolvidos ao retiro da vida privada, para lá viver das esmolas dos fiéis, imitando seus predecessores, os apóstolos. Todas as instituições de ensino foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo purificadas de toda interferência da Igreja e do Estado. Assim, não somente a educação se tornava acessível a todos, mas a própria ciência se libertava dos grilhões criados pelo preconceito de classe e pelo poder governamental. (MARX, 2019, p. 57).

Para Marx, “ao remover dela o elemento religioso e clerical, a Comuna tomou a iniciativa da emancipação mental do povo”. (MARX, 2019, p. 117). A religião difunde uma visão mística da totalidade social e política, e ainda, ao mesmo tempo, o alto escalão das variadas instituições religiosas se atrela aos altos núcleos de poder empresarial, de dominação, controle e repressão sobre a classe trabalhadora. Nesse aspecto, a religião é utilizada para forjar a domesticação nas multidões humanas aos grupos dominantes, sendo uma força repressiva ocultada pela sua forma sacramental. (c.f. Sobre a questão judaica). Gramsci, no Caderno do cárcere (n.º 11), afirmava: “(...) A escola — em todos os seus níveis — e a Igreja são as duas maiores organizações culturais em todos os países, graças ao número de pessoas que utilizam”. (GRAMSCI, 2001, p. 122).

As reflexões sobre o caráter público da educação e a luta social a ser travada por ela foi refletida por Marx em diversos momentos. Em 1866, quando finalizava o Livro I d’O capital, Marx escreveu também algumas orientações sobre educação para a Primeira Internacional, documento que recebeu o título de “Instruções para os Delegados do Conselho Geral Provisório...”. Esse texto dialoga diretamente com os itens 3 e 9 do capítulo 13 d’O capital, em que se discute educação e trabalho juvenil. No referido texto da Internacional, Marx, defensor de uma legislação universal para “proteção física e espiritual da classe trabalhadora”, reafirma, dentro de tal espectro, a importância de se garantir uma educação universal. (MARX, 1866).

Se existe um exército de mão de obra formado por milhões de homens adultos, por que o empresariado insiste em empregar crianças ao invés de seus pais? Certamente porque se pode pagar salários exageradamente mais baixos, abusando da exploração e repressão nos locais de trabalho. No capítulo 13 d’O capital, Marx, por meio de relatórios oficiais parlamentares, expõe como o empresariado tenta burlar de variadas formas os limites para se empregar crianças e forçá-las a regimes de trabalho com altíssimos níveis de exploração e baixos salários. Nesse capítulo, Marx enfatizou que o capital avança para submeter ao seu domínio, e à produção de lucros, todos os membros das famílias trabalhadoras. Faz isso de formas ilegais, inclusive, infringindo as regras que a própria sociedade burguesa criou. Isso se torna especialmente grave em relação às crianças, pois lhes é roubado o espaço e o tempo de recreação, aprendizagem e desenvolvimento. (MARX, 2015, p. 468).

O trabalho prematuro aparta as crianças dos múltiplos processos de formação e aprendizagem para aprisioná-las às tarefas assalariadas unilaterais, forçando-as a trabalhar como adultos. Faz com que as crianças e adolescentes se desgastem física e psicologicamente, exploradas até a exaustão, prejudicando inclusive seus processos de socialização, aprendizagem e formação. Prejuízos físico-intelectuais que podem ter efeitos deletérios duradouros. A sociedade se recente de tais crueldades contra as crianças e adolescentes, por isso cobra medidas protetivas. Neste sentido, Marx aponta que a demanda por regulamentação de proteção trabalhista é uma forma de “reação consciente e planejada da sociedade”. (MARX, 2015, p. 551).

Marx aponta que, como os pais não receberem salários suficientes para sustentar seus filhos, acabam sofrendo pressões constantes que empurram as crianças para o mercado de trabalho. Outro elemento a se considerar é o caráter de formação profissional: como não podem pagar por escolas técnicas que preparem os filhos para profissões futuras, os pais acabam entregando seus filhos aos cuidados dos patrões para que tenham uma “formação profissionalizante”. Por tais perspectivas, o trabalho infantil é imposto às famílias trabalhadoras por determinações estruturais. Conforme escreveu n’O capital:

Não foi, no entanto, o abuso da autoridade paterna que criou a exploração direta ou indireta de forças de trabalho imaturas pelo capital, mas, ao contrário, foi o modo capitalista de exploração que, suprimindo a base econômica correspondente à autoridade paterna, converteu esta última num abuso. (...). (MARX, 2015, p. 560).

Então, para se enfrentar essas contradições, é necessário atender reivindicações salariais dos trabalhadores adultos, para que possam arcar com as despesas do lar de maneira satisfatória. Também é preciso criar novos postos de trabalho, diminuindo as horas diárias, para que todos possam trabalhar e, consequentemente, diminuir também o exército de reserva de mão de obra. Por outro lado, é preciso criar um número adequado de escolas técnicas gratuitas e com remuneração pela produção, escolas que sejam acessíveis a todos, assegurando ainda uma ampla proteção social das crianças e da juventude. Para isso, é fundamental a criação, aperfeiçoamento e manutenção de políticas públicas de proteção às crianças que, além de garantir educação gratuita, assegure ajuda de custo aos estudantes (transporte, material escolar, vestimenta, alimentação e serviço de saúde etc.).

Ainda por meio do documento da Internacional, Marx apontou que as demandas educacionais da classe trabalhadora só podem ser atendidas através da ação coletiva, de pressão direta, que obrigue à criação e manutenção de políticas públicas direcionadas, sobretudo porque é muito mais difícil que cada trabalhador individualmente possa arcar com os custos da vida escolar de cada filho. Para o autor: “(...) Isto só poderá ser efetuado convertendo a razão social em força social e, em dadas circunstâncias, não existe outro método de o fazer senão através de leis gerais impostas pelo poder do Estado”. (MARX, 1866). As lutas sociais articuladas pela classe trabalhadora adulta é imprescindível para se garantir tais demandas: “O direito das crianças e dos jovens tem de ser feito valer. Eles não são capazes de agir por si próprios. É, no entanto, dever da sociedade agir em nome deles”. (MARX, 1886). Para Marx, a educação pública é uma demanda histórica da própria classe trabalhadora:

(...) a parte mais esclarecida da classe operária compreende inteiramente que o futuro da sua classe, e, por conseguinte, da humanidade, depende completamente da formação da geração operária nascente. Eles sabem, antes de tudo o mais, que as crianças e os jovens trabalhadores têm de ser salvos dos efeitos esmagadores do presente sistema. (MARX, 1886).

Outro aspecto importante para Marx, é pensar uma forma de educação que não se limite às bases teóricas, mas que tenha um tripé formado por “educação mental”, “educação física” e “instrução tecnológica”. Compreende então que “A combinação de trabalho produtivo pago, educação mental, exercício físico e instrução politécnica, elevará a classe operária bastante acima do nível das classes superior e média”. (MARX, 1866). Para isso, propõe que durante a adolescência sejam introduzas duas horas de trabalho assistidas e que se aumente essas horas ao passar dos anos. Só após a maioridade se poderia integrar os jovens ao mercado de trabalho com jornada de trabalho adulta. Com isso, na última fase da aprendizagem escolar, por meio de estágios remunerados, os estudantes já terão passado por experiências práticas que complementam e completam a sua própria formação teórico-prática.

Essa mesma problematização foi tomada por Gramsci nos Cadernos do cárcere, (principalmente no caderno 12), em que o autor debate o problema de se ter uma escola essencialmente teórico-abstrata, por um lado, e por outro, uma escola técnica profissionalizante. Para o autor italiano, tratava-se de pensar uma “escola unitária” que unificasse o ensino técnico e científico, estimulando a curiosidade dos estudantes, bem como a introdução à pesquisa. (GRAMSCI, 2001). Todos os custos e despesas deveriam ser assumidos pelo Estado, como forma de desonerar as famílias trabalhadoras. Segundo o autor:

A escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo da família no que toca à manutenção dos escolares, isto é, requer que seja completamente transformado o orçamento do ministério da educação nacional, ampliando-o enormemente e tornando-o mais complexo: a inteira função de educação e formação das novas gerações deixa de ser privada e torna-se pública, pois somente assim ela pode abarcar todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas. (...).  (GRAMSCI, 2001, p. 36).

A escola na sociedade de classes é essencialmente desigual

Outro elemento a se considerar é que, mesmo com uma rede de escolas públicas e gratuitas, as desigualdades persistem na sociedade capitalista. Foi nesse sentido que o sociólogo Georg Snyders no livro Escola, classes e luta de classes, enfatizou que é necessário “compreender como participa a escola na luta de classes”. (SNYDERS, 2005, p. 13). Embora composta de uma ampla gama de potencialidades, a escola tende a ser uma forma de reafirmação das estruturas de classe:

(...) a burguesia proporciona exatamente aos trabalhadores tanta cultura quanto o seu próprio interesse exige. E não é muita. Escola de classes porque as lutas sociais não se detêm respeitosamente no limiar do recinto escolar. Não é a educação também determinada pela sociedade? Escola que não deixará de ser escola de classe senão pela revolução social, condição da revolução escolar (...). (SNYDERS, 2005, p. 30).

A escola não cria as desigualdades, mas, sendo ela organizada de acordo com os interesses da classe dominante, acaba reafirmando os mesmos mecanismos de dominação de classe. Para o autor: “(...) A burguesia esforça-se, na medida do possível, por submeter a escola aos seus próprios objetivos de classe, por impedir acima de tudo que ela possa contribuir para a emancipação do proletariado (...). (Idem, p. 30). Nesse sentido, o autor critica à ideia de ascensão social por meio da educação como forma antissistema:

Existe um determinado número de casos de mobilidade social - e todos os professores citam o exemplo de determinado aluno vindo de muito baixo, que graças ao seu trabalho, ao seu zelo e aos seus dotes, conseguiu tão brilhante situação. Mas, na realidade, a classe dominante conserva ciosamente nas suas mãos o controle desta seleção, que não faz perigar de forma alguma o conjunto das hierarquias estabelecidas. Precisamente por se tratar de casos, esses poucos vão ser absorvidos pelo meio ambiente, modelar-se segundo regras constituídas, arriscam-se mesmo a ficar fortemente algemados a um sistema que lhe permitiu vencer, sair-se bem. (SNYDERS, 2005, p. 23).

Ainda, como a escola está inserida na sociedade de classes, profundamente desigual, é impossível que possa oferecer condições de aprendizagem iguais para todas as classes e frações de classe: “(...) Enquanto existir uma sociedade de classes, a escola será inevitavelmente escola de classes. A burguesia tenta transformar a escola de massas em instrumento capaz de subjugar os trabalhadores”. (Idem, pp. 31-32).

Mesmo que se trate apenas dos estudantes oriundos da classe trabalhadora, é necessário considerar também que tal classe é composta por diversas clivagens sociais. A classe trabalhadora é múltipla, engloba desde os setores mais precarizados, exército de mão de obra de reserva, subproletariado, setores com empregos estáveis e até setores que vivem com salários acima da renda média nacional. (Confira: O capital, livro I, cap. 13). As crianças oriundas das distintas camadas da classe trabalhadora se encontram na mesma escola pública, na sala de aula. Neste entremeio, quanto mais precarizadas as condições de trabalho e de vida de determinados setores da classe trabalhadora, mais dificuldades seus filhos tendem a enfrentar em sua trajetória escolar. A origem social desigual influencia diretamente os processos de aprendizagem e desenvolvimento. Ou seja, a escola trabalha em cima de habilidades e dificuldades já instituídas, atuando de forma limitada na reversão de tal quadro, e isso, por si, já impede uma educação igualitária. Segundo o autor:

A ação da escola exerce-se sobre crianças cujo modo de vida, educação familiar, primeira educação, são extremamente diversos: a cultura das classes privilegiadas aproxima-se da cultura escolar, os seus hábitos assemelham-se aos hábitos e aos ritos escolares - e preparam-nas, pois, diretamente, para as aprendizagens escolares. Os seus filhos vão assimilar a contribuição da escola à maneira de uma herança, é-lhes familiar, faz parte do seu elemento natural. (SNYDERS, 2005, p. 23).

Também Gramsci, no já referido caderno 12, apontava no mesmo sentido:

Decerto, a criança de uma família tradicional de intelectuais supera mais facilmente o processo de adaptação psicofísico; quando entra na sala de aula pela primeira vez, já tem vários pontos de vantagem sobre seus colegas, possui uma orientação já adquirida por hábitos familiares: concentra a atenção com mais facilidade, pois tem o hábito da contenção física, etc. (GRAMSCI, 2001, p. 52).

Em relação a tais bases pré-escolares, Snyders destaca que: “aqueles que não se beneficiam dele bem cedo ficam desarmados, desamparados perante a cultura escolar”. (SNYDERS, 2005, p. 24). Desta forma, para que se avance na melhora do sistema educacional é necessário admitir-se a extrema desigualdade social, que por sua vez impõe a desigualdade de condições nas salas de aula. Snyders aponta que é hipocrisia argumentar que a educação oferece condições iguais a todos os estudantes:

Daí a hipocrisia da ideologia igualitária, quando finge ignorar tudo que se passa fora da escola e como dentro dela as disparidades têm livre curso: omitindo proporcionar a todos o que alguns devem à sua família, o sistema escolar perpetua e sanciona as desigualdades iniciais. Ainda mais: ele duplica-as na medida em que as consagra através de resultados escolares, pois estes depressa se transformam em apreciação da pessoa em si: ele não é inteligente... visto que não triunfou na escola. (Idem, p. 24-25).

A desigualdade no acesso à educação e nos processos de aprendizagem e desenvolvimento tende a ser negligenciada pelas classes dominantes, isso porque é funcional que se tenha uma massa de trabalhadores com poucos anos escolares e com baixa qualificação, para que exerçam atividades simples com baixos salários e ausência de direitos. Uma parte da juventude deverá ser direcionada diretamente para o exército de reserva do mercado de trabalho: “(...) os excluídos do ensino, os que são recusados pela escola, pouca esperança têm de acesso a situações de interesse; em breve terão dificuldade em encontrar trabalho, a não ser que se alistem no exército da reserva de mão de obra ocasional e precária”. (SNYDERS, 2005, p. 29).

Por outro lado, o autor assevera que as dificuldades que acercam a escola na sociedade de classes não significam que as classes dominantes detêm controle absoluto da escola e de tudo o que se passa de experiências em seu convívio diário. Todas as contradições sociais que se expressam na sociedade também estão presentes na realidade escolar. Segundo o autor:

A escola não é um feudo da classe dominante; ela é terreno da luta entre a classe dominante e a classe explorada; ela é o terreno em que se defrontam as forças do progresso e as forças conservadoras. O que lá se passa reflete a exploração e a luta contra a exploração. A escola é, simultaneamente, reprodução das estruturas existentes, correia de transmissão da ideologia oficial, domesticação - mas também ameaça à ordem estabelecida e possibilidade de libertação. O seu aspecto reprodutivo não a reduz a zero: pelo contrário, marca o tipo de combate a ser travado, a possibilidade desse combate que já foi desencadeado e que é preciso continuar. É esta dualidade, característica da luta de classes, que institui a possibilidade objetiva da luta. (SNYDERS, 2005, pp. 102-103).

Mas, confluindo com a perspectiva de Marx, Snyders também destaca que, como a escola é parte de uma totalidade social maior, suas determinações não podem ser revolucionadas apenas a partir das suas próprias internalidades. Portanto, as pautas por transformações na escola devem ser somadas às lutas sociais:

A luta pela escola nunca pode estar separada das lutas sociais no seu conjunto, da luta das classes na sociedade total, da luta contra a divisão em classes. Certamente, não cabe à pedagogia fazer a revolução; com toda a certeza só haverá uma sã pedagogia numa sociedade sã - e a nossa não o é.  (...) uma escola progressista tem necessidade de ser apoiada pelo conjunto de uma sociedade progressista. (...). (SNYDERS, 2005, pp. 104-105).

Snyders é enfático em relação à necessidade de combinar as lutas escolares com as lutas sociais que envolvam amplos contingentes: “(...) Repetiremos que a solução da crise da pedagogia não virá da pedagogia; mas acrescentaremos que também não há avanço pedagógico sem progresso no próprio seio da escola, lutas pedagógicas, sindicais e, finalmente, também políticas”. (SNYDERS, p. 106).

Ao analisarmos os escritos de Marx e Vygotsky, ficou claro o pressuposto de que o ser humano é um ser ativo na produção da própria subjetividade no meio coletivo. Desde o início da vida, ele aprende a partir da própria experiência com a realidade material e com as relações sociais com os adultos. Apesar do ser humano aprender e se desenvolver independentemente das instituições escolares, essas proporcionam um salto na sua capacidade cognitiva, na aprendizagem e no desenvolvimento de sínteses elaboradas. Por isso, Marx e diversos outros autores tomaram como central a luta social pela educação pública, gratuita e de qualidade, que proporcione o desenvolvimento de múltiplas capacidades humanas. Snyders, retomando tal fio de análise, relembra que mesmo com o acesso universal à educação, a estratificação social determinada pela sociedade de classes impõe desigualdade no ensino e aprendizagem, por isso as lutas travadas nas escolas precisam ser combinadas com as lutas sociais gerais em prol da emancipação social e política da classe trabalhadora.

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[1] Professor convidado no Programa de Pós-graduação da PUC-SP. Pós-doutorando em história econômica pela USP. Doutor em ciências sociais pela Unesp-Marília. Professor na rede pública de educação no interior e na capital paulista. Estudioso da obra de Marx, marxismo, movimento operário e revoluções.

 
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