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sábado, 9 de abril de 2016

Marx antes do marxismo - Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro (1841)

Alessandro de Moura


Apresento breves notas sobre o trabalho Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, tese de doutorado de Marx produzida entre os anos 1839 e 1841.
            Conforme veremos, Marx, além de possuir uma leitura própria dos clássicos, como Demócrito e Epicuro, estava em sintonia com as produções mais importantes debatidas naquele período. Assimilando os avanços e criticando seus limites, Marx buscou aprofundar os aspectos e elementos que lhe pareciam mais fundamentais.
            Dessa forma, o processo de radicalização da perspectiva política e filosófica de Marx foi amparado pela assimilação e superação dos pressupostos de Hegel e Feuerbach. Com isso, Marx passou de posições democrático-revolucionárias (anti-monarquicas) para uma perspectiva socialista. Apenas a partir de 1843 o autor passa a incorporar elementos do socialismo e evolui da posição de democrático-revolucionário para o socialismo. Nesse processo, além da influência do materialismo de Feuerbach, foi central a influência do texto de Engels Esboço para uma crítica da economia política e também seu contato com o socialismo francês em 1844.
            A tese de doutoramento de Marx Diferença Entre as Filosofias da Natureza Em Demócrito e Epicuro, possibilitou-lhe aprofundar um crítica ao idealismo hegeliano, fazendo-o aprofundar-se no materialismo filosófico. Para Lukács, isso lhe conferiu superioridade filosófica e política em relação a outros integrantes da esquerda hegeliana. LUKÁCS, 2007).
            Toda esquerda hegeliana tinha em comum o esforço por explicitar os elementos mais revolucionários da filosofia hegeliana. Dentro dessa ala do pensamento hegeliano estavam: Marx, Engels, David Strauss, os irmãos Bruno e Edgar Bauer, Moses Hess, Arnoud Ruge e Max Stiner. De acordo com Celso Frederico, em seu livro O jovem Marx (2009), no prefácio da Filosofia do Direito publicado por Hegel, lia-se uma máxima hegeliana: "o racional é real; o real é racional". É possível compreender a divergência entre a Direita e Esquerda hegeliana por meio dessa frase. A Direita hegeliana se apegava a segunda parte da frase, o real é racional, compreendendo que a sociedade e o Estado prussiano eram formas elevadas de objetivação do racional. (FREDERICO, 2009). Nessa perspectiva, o monarca é a própria encarnação da racionalidade máxima e por isso deve ser aceito, assim como toda a sua forma de determinação política; leis, aparato burocrático etc.
            Em oposição a tal perspectiva, a Esquerda hegeliana enfatizava que a realidade ainda deixava muito a desejar no que tange ao racional. Era necessário acabar com as mazelas sociais para aproximar a realidade imperfeita de uma forma social compreendida como racional. Ou seja, o momento da racionalidade do real-social, ainda não havia chegado. E assim, o momento da racionalidade plena só chegaria de fato mediante a negação do existente e de toda a sua gritante irracionalidade. Assim, em resumo, o debate entre a esquerda e a direita hegeliana centrava-se entre os aspectos da processualidade e a necessidade de superação da ordem social e política, ou na necessidade de transformação revolucionária da realidade com superação dos aspectos degradantes e limitadores.
            Segundo Lukács, Marx seria o mais proeminente integrante da esquerda hegeliana, sua tese de doutorado apresenta uma crítica à concepção de história presente na História da filosofia de Hegel, onde se desqualificava o materialismo de Epicuro. Essa visão de Hegel, que influenciava a perspectiva de jovens hegelianos, não convenceu Marx.
            Demócrito e Epicuro eram considerados os materialistas mais importantes da Antiguidade, mas Hegel lhes atribuía uma importância secundária. Marx por outro lado, admirava o ateísmo de Epicuro, daí seu interesse em aprofundar um estudo sobre esses autores. Para Marx, Epicuro havia conseguido avançar a partir das elaborações de Demócrito. Hegel, por outro lado, os considerava idênticos. Assim, o estudo de Marx foi uma reparação da generalização de Hegel. Com isso, Marx revaloriza a concepção materialista e ainda buscou a dialética contida nas elaborações dos dois filósofos da Antiguidade. Dessa incursão, Marx constatou que a dialética só estava presente em Epicuro. Ainda, para Marx: "Evidencia-se, portanto, que Demócrito não tem consciência da contradição; esta não o preocupa enquanto que para Epicuro constitui o interesse principal". (MARX, p. 42).
            Em sua tese, Marx defendeu que Demócrito negava a existência do acaso, uma vez que afirmava que "Os homens inventaram o fantasma do acaso, manifestação de seu próprio embaraço, pois um pensamento forte deve ser inimigo do acaso". (MARX, p. 26). Por outro lado, Epicuro apresentava elementos iniciais de uma concepção dialética do acaso. E, se havia acaso, havia a possibilidade de escolha e da liberdade. Marx analisa:

Epicuro escreve, pelo contrário: "A necessidade, que alguns convertem em dominadora absoluta, não existe; há algumas coisas fortuitas, outras dependentes de nosso arbítrio. A necessidade não convence e o acaso, ao contrário, é instável. Seria preferível seguir o mito dos deuses que ser escravo do destino dos físicos, pois aquele deixa-nos a esperança da misericórdia por havermos honrado os deuses, enquanto este apenas apresenta a inexorável necessidade. Todavia, deve-se admitir o acaso e não Deus, contrariamente ao que julga a multidão. Seria uma desgraça viver na necessidade, mas viver nela não é uma necessidade. Por outro lado se abrem as vias, numerosas, curtas e fáceis, que conduzem à liberdade. Agradeçamos, pois Deus o fato de ninguém ter quaisquer limites na vida. É inclusive permitido dominar a própria necessidade". (Marx, p. 26).
            Marx afirma ainda: "Porém, enquanto Demócrito reduz o mundo sensível à aparência subjetiva, Epicuro faz dele um fenômeno objetivo. E Epicuro faz isso conscientemente, pois afirma que compartilha os mesmos princípios, mas não converte as qualidades sensíveis em simples objetos de opinião". (MARX, p. 23). Noutro trecho Marx analisa que:
Demócrito, para quem o princípio não se tornou fenômeno e permanece sem realidade e sem existência, tem, pelo contrário, à sua frente, como mundo real e concreto, o mundo da percepção sensível. Esse mundo é, com efeito uma aparência subjetiva e, por isso mesmo, separada do princípio e abandonada em sua realidade independente; mas é simultaneamente o único objeto real que tem enquanto tal valor e significado. Não encontrado plena satisfação na filosofia precipitou-se nos braços do conhecimento positivo. (p. 24).
            Marx conclui que: "É portanto historicamente certo afirmar que Demócrito faz intervir a necessidade e Epicuro, o acaso, e que cada um deles rejeita a opinião contrária com a esperteza própria da polêmica". (MARX, p. 26). E continua sua crítica a Demócrito:
A necessidade aparece, com efeito na natureza finita como necessidade relativa, como determinismo. A necessidade relativa só pode ser deduzida da possibilidade real, isto é de um conjunto de condições de causas, de razões etc., que mediatizam essa necessidade. A possibilidade real é a explicação da necessidade relativa, e encontramo-la empregada por Demócrito. (Marx, p. 27).
Assim, Marx contrapõe essas idéias de Demócrito às de Epicuro:
Uma vez mais Epicuro se opõe de maneira direta a Demócrito. O acaso é uma realidade que só tem valor de possibilidade; porém a possibilidade abstrata é, precisamente, o oposto da real. Esta última está rigorosamente limitada, como entendimento, e a primeira é ilimitada como imaginação. A possibilidade real procura basear a necessidade e a realidade do seu objeto, a abstrata não se ocupa do objeto que é explicado, mas do assunto que explica. O objeto deve ser apenas possível, pensável. O que é possível abstratamente, o que pode ser pensado não constitui para o sujeito pensante um obstáculo, um limite ou uma dificuldade. Pouco importa que essa possibilidade seja igualmente real, porque o interesse não se estende aqui sobre o objeto como tal. (Marx, p. 27).
            Ainda, Marx observou que Demócrito limitou-se a uma filosofia da natureza, ao passo que Epicuro incorporou determinações da vida humana e social. Isso possibilitou a Epicuro pensar as instituições sociais concretas como produtos de contratos e amizades. (LUKÀCS, 2007).
            Para Marx, a perspectiva com a qual Epicuro encarava a natureza, como passível de ser compreendida, servia como elemento emancipador para os seres humanos. Isso porque os seres humanos podem conhecer a natureza, refletir sobre ela, desmistificando seus fenômenos e libertando-se do medo em relação à mesma. Com isso, o ser humano é encarado como um ser natural que pode dominar a natureza cognitivamente. Assim, essa foi uma contribuição importante para a compreensão sobre a relação entre homem e natureza, uma vez que, com isso, tem-se o desenvolvimento de uma concepção do papel revolucionário da filosofia enquanto mediação da relação homem e natureza.
            Isso porque a ação de desvelamento e compreensão da natureza transverte-se como possibilidade de conhecer o mundo e a si mesmo, elevando-se a possibilidade de elaboração intelectual de concepções e conceitos sobre o mundo. Dessa forma, o que antes era medo em relação à natureza incognoscível, torna-se vontade, potência imensa e inesgotável de conhecer. Isso faz do ser humano sujeito na natureza. Sujeito de si e de suas vontades, pois é possível especular sobre o mundo (a natureza em interação com a ação humana) e conhecê-lo, questioná-lo, explicá-lo e modificá-lo. Assim, o mundo exterior ao sujeito é compreendido como base de todo pensamento que produziu a filosofia, o mundo material é a plataforma de onde deriva todo pensamento e ação humana. E com isso, a própria filosofia é parte do desdobramento do mundo, é fruto de uma dinâmica concreta da relação entre a humanidade e a natureza. Dessa forma, a realidade material mundana é apreendida de forma mediaticizada. O pensamento torna-se filosofia e a filosofia torna-se expressão do mundo.
            Quando as causações do pensamento, da filosofia, são comprovadas e provadas como passíveis de serem realizadas, elas deixam de ser filosofia (formas conceituais especulativas) e passam a ser  compreendidas como produto do real. Como elaborou Marx em sua tese: "Mas a prática da filosofia é em si mesma teórica. É a crítica que mede a existência singular da essência, a realidade efetiva típica da ideia. Mas a realização imediata da filosofia é, na sua essência mais intima, fomentada por contradições; e essa essência, que é sua, toma forma no próprio fenômeno imprimindo-lhe seu selo". (Marx, p. 30). Pois quando se compreende algo, suprime-se uma carência interna do ser humano (um problema que figurava sem solução ou mediações tangíveis com o real). Uma vez que se suprime essa carência, expressa como questão filosófica, a própria questão filosófica é dissipada porque a filosofia foi realizada e assim pode-se chegar a novos problemas. De acordo com Marx:
Quando a filosofia, enquanto vontade, se opõe ao mundo fenomênico, o sistema se transforma numa totalidade abstrata, num lado do mundo ao qual se opõe um outro lado. Na medida em que tende a refleti-lo, a desejar realizar-se, entra em luta com o Outro. A auto-satisfação e a perfeição que se caracterizam desaparece; e o que era luz interior transforma-se em chama devoradora apontada para o exterior. Como consequência, o devir-filosófico do mundo é ao mesmo tempo um devir-mundano da filosofia, sua realização efetiva é simultaneamente sua perda, e o que ela combate no exterior nada mais é que seu defeito interior. É exatamente no decorrer dessa luta que a filosofia acaba por cair nas fraquezas que criticava no seu contrário. Aquilo que lhe opõe e o que combate não passam de ela própria, encontrando-se os fatores simplesmente invertidos. (Marx, p. 30).
            Desse debate em sua tese de doutorado, podemos apreender dois aspectos que marcaram profundamente o pensamento e a ação revolucionária de Marx: 1) Existem contradições e acaso no cotidiano humano-material, o que, por sua vez, abre a possibilidade de escolhas e possibilita o arbítrio humano. Assim, os seres humano não são "escravos do destino", pois existem "vias numerosas que conduzem à liberdade". Isso possibilita que o ser humano seja senhor de seu próprio destino e possa mudar a própria vida, a realidade e o mundo. 2) A filosofia, como forma de especulação e compreensão do mundo, deve atuar no desvelamento do mundo buscando compreende-lo para poder modificá-lo. A filosofia precisa realizar-se. Conforme escreveu Marx em março de 1945 nas Teses sobre Feuerbach: "Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diversas formas, trata-se agora de transformá-lo".

Gazeta renana
            Em 1842, Feuerbach publicou A essência do cristianismo, defendendo o ateísmo e o materialismo. Sua perspectiva convergiu com as inquietações e elaborações de Marx, que à frente da Gazeta Renana, passava a ocupar-se dos problemas sociais como as leis de censura e a lei contra o roubo de lenha. Assim, Marx recebeu com entusiasmo a elaboração e Feuerbach que valorizava as ações práticas, os sentidos, a experiência humana, encarando o Ser como sujeito protagonista do pensamento e de toda forma de compreensão do mundo. Politicamente, Marx intentava nesse momento unificar os setores que se opunham ao regime monárquico de Frederico Guilherme IV. Dessa forma, o abandono da postura contemplativa em relação ao real proposto por Feuerbach convergia com suas demandas. Ainda, considerou que a critica de Feuerbach à religião possibilitaria avançar na critica ao estado de coisas para atingir a crítica ao Estado monárquico alemão. Essa crítica ao estado de coisas era feita a partir de uma perspectiva democrático-radical (anti-monárquica), sem ligação imediata com a concepção socialista. Marx mesmo dizia, nesse momento, que ainda não tinha posições cerradas sobre o comunismo. (LÖWY, 2002).
            Em sua evolução política, ganha cada vez mais importância a luta em prol das massas populares sofredoras e oprimidas pela monarquia prussiana. Para mudar tal situação, Marx compreendia que era necessário derrubar a monarquia estabelecendo um governo que atendesse as demandas do povo. Por isso, busca agregar os setores que criticam o regime. Para ele essa era a única forma de conseguir fazer com que a capacidade filosófica radical pudesse converte-se em um fim prático. Afinal, a filosofia especulativa deveria avançar para fazer-se crítica à existência e suas misérias fornecendo ferramentas teóricas para sua superação.

Critica da filosofia do direito de Hegel
            Não vamos aprofundar uma análise sobre essa obra, pois será objeto de discussão nos próximos debates (confira resenha do texto: http://combateclassista.blogspot.com.br/2011/03/sobre-critica-da-filosofia-do-direito.html). Aqui apenas apontaremos que, escrita entre março e agosto de 1843, o texto marca o início da ruptura com a filosofia hegeliana, é a partir de tais reflexões que Marx passa a considerar a perspectiva de Hegel como insuficiente para a compreensão do real enquanto processualidade humana. Marx chega a tal formulação por meio da crítica das relações entre a sociedade civil-burguesa e o Estado prussiano.
            Para Marx, na Critica da filosofia, não se trata mais de desenvolver e explicitar os elementos mais radicais da filosofia de Hegel, mas de apontar e criticar o seu princípio. Nesse ponto, Marx se apoiou em outra obra de Feuerbach, as Teses provisórias pra a reforma da filosofia publicada em 1843. Nessa obra, Feuerbach, assimilando contribuições de Spinoza, caracteriza o idealismo objetivista de Hegel como teologia camuflada de filosofia. (LUKÁCS, 2007).
            Marx aprovou e utilizou suas formulações, mas considerou que Feuerbach dera pouco valor à luta política e, para Marx, sem aprofundar-se na luta política, a filosofia não podia fazer-se verdade. Ainda, considerou que Feuerbach não havia chegado a uma crítica profunda do Estado e das condições sociais vigentes sob a monarquia alemã. Era necessário aplicar os princípios materialistas aos problemas políticos vigentes e a história. Daí seu ímpeto em criticar a monarquia constitucional opondo-se à justificação da tal regime professado por Hegel Filosofia do direito. Considerou que a critica radial a perspectiva contida na obra ainda era uma tarefa ainda por se fazer.
            Na Crítica da filosofia... Marx centra-se no combate à compreensão apresentada por Hegel segundo a qual o Rei era objetivação do espírito absoluto, encarnação humana do racional. Para Marx essa era uma forma de conciliação com o estado de coisas. Ao inverso disso, para Marx tratava-se de pensar as contradições reais e as formas de superá-las e não justificá-las. Assim, para Marx o fundamento geral da filosofia de Hegel continha aspectos reacionários no que tangia compreensão teórica da sociedade.
            No entanto, como Marx ainda não identifica qual é o sujeito coletivo que pode insurgir-se contra a monarquia prussiana, quem seria o sujeito social revolucionário, Lukács aponta que o texto ainda sustenta-se sobre a perspectiva democrático-revolucionária, pois inspira-se na revolução francesa de derrubada da monarquia pelo terceiro estado (povo e burguesia democrática anti-monarquia). Isso porque Marx aponta que não é o Estado que cria a sociedade civil, mas o contrário, é a sociedade civil que cria o Estado. Aqui ganha centralidade o terceiro estado.
            Os textos publicados nos Anais Franco-alemães, Sobre a questão judaica e Introdução à critica da filosofia... marcam a transição de Marx, passando da Crítica da filosofia... aos Manuscritos de Paris. Nesse entremeio tem-se a superação do idealismo hegeliano e o surgimento de um novo corpo teórico. Foi a partir de tais elaborações que Marx passou a compreender o proletariado como sujeito revolucionário, que a principio deveria fundir-se com os melhores elementos da esquerda hegeliana, assimilando sua crítica ao Estado e as condições sociais desiguais. Metaforicamente o proletariado é descrito como o coração da revolução e a esquerda hegeliana (os filósofos) são o cérebro.
           
Bibliografia
MARX, K. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Global editora.
LÖWY, M. A teoria da revolução no jovem Marx. Editora vozes. 2002.
LUKÁCS, J. O jovem Marx (1955). In: O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Editora UFRJ. 2007.
FREDERICO, C. O jovem Marx - 1843-1844: as origens da ontologia do ser social. Editora expressão popular. 2009.

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