Alessandro de Moura
Marx, depois de ter escrito Sobre a liberdade de imprensa e a Critica da filosofia do direito de Hegel, aprofundou e direcionou sua crítica contra o Estado monárquico prussiano e viu nesta discussão, sobre a liberdade religiosa, uma oportunidade de apresentar suas elaborações. Isso porque o debate sobre a liberdade religiosa dos judeus fazia-se tema candente na Europa.
Para isso, Marx tomou como ponto de partida publicações de Bruno
Bauer, que foi seu tutor na faculdade. Bauer argumentava contra a religião, em defesa do ateísmo, por
isso, opinava que ao invés de defender liberdade para sua religião, era
necessário que os judeus abandonasse a defesa religiosa e passassem à luta por um Estado laico. Marx
apontou criticamente que: "Bauer exige, portanto, por um lado, que o judeu
renuncie ao judaísmo, que o homem em geral renuncie à religião, para tornar-se
emancipado como cidadão. Por outro
lado, de modo coerente, a superação política
da religião constitui para ele a superação de toda religião. O Estado que
pressupõe a religião ainda não é um Estado verdadeiro". (p. 36). Para Marx
e erro de Bauer é que: "Ele impõe condições que não estão fundadas na
essência da emancipação política mesma". (p. 36). De acordo com a crítica
de Marx, Bauer volta seu ataque apenas ao Estado cristão, mas não critica a
instituição estatal de fato:
(...) diante disso, vemos o erro de Bauer no fato de
submeter à crítica tão somente o "Estado cristão", mas não o
"Estado como tal", no fato de não investigar a relação entre a
emancipação política e emancipação humana e, em consequência, de impor
condições que só se explicam a partir da confusão acrítica da emancipação.
Para Marx apenas nos Estado onde a religião deixou de ser
assunto do Estado, concedendo a liberdade religiosa para os cidadãos, é que tal
questão deixou de ser teológica e passou a ser uma questão secular. Assim, para
o autor, as liberdades que se alcança frente ao Estado, por reivindicação
popular, estão no âmbito da emancipação política, uma vez que se constitui como
uma nova liberdade frente aos imperativos do Estado. Dessa forma, no que tange
à religião, para Marx, o Estado deixa de comportar-se como guardião religioso
deixando de intervir na opção religiosa compreendo-a como relação processual
sócio-histórica dos grupos que compõem o todo social. Cada grupo escolhe sua
religião livremente porque o Estado não é um "grande sacerdote" que
obriga ao cumprimento de ritos religiosos obrigatórios. Segundo o autor, por
meio da emancipação política:
(...) A crítica a essa relação deixou de ser uma
crítica teológica no momento em que o Estado deixa de comportar-se
teologicamente para com a religião, no momento em que ele se comporta como
Estado, isto é, politicamente, para com a religião. A crítica transforma-se,
então, em crítica ao Estado político. Justamente no ponto em que a crítica
deixa de ser teológica, a crítica de Bauer deixa de ser crítica. (p. 37).
Destaca ainda, que, nos Estados que se tornaram laicos a
religião não desapareceu, como no caso dos EUA. Aponta que mesmo em países que
não sustentam uma religião oficial, a religiões continuam existindo. Nesse
caso, a não obrigatoriedade de uma religião oficial constitui uma conquista
política da população frente ao Estado, uma conquista no campo da emancipação
política: "A pergunta é: como se comporta a emancipação política plena para com a religião? Se até mesmo
no país da emancipação política plena encontramos não só a existência da religião, mas a existência da mesma em seu frescor e sua força vital, isso
constitui a prova de que a presença da religião não contradiz a plenificação
[sic] do Estado". (p. 38).
Dialeticamente, para Marx, mesmo assegurada a liberdade
religiosa, é necessário compreender que a religião é uma das limitações seculares que desviam o ser
humano de sua própria essência sócio-histórica, pois mistificam o processo
social, transferindo o protagonismo humano-social para a esfera
espiritual-abstrata. A partir disso, Marx infere que os seres humanos
suprimirão a religião no momento em que suprimirem as barreiras sócio-históricas
seculares que lhes limitam. Ou seja, infere que resolvendo as crises sociais, a
religião, como solução divina, perderia centralidade. Pois se busca na religião
formas de resolução para problemas mundanos, de acordo com o autor: "Como,
porém, a existência da religião é a existência de uma carência, a fonte dessa
carência só pode ser procurada na essência do próprio Estado. Para nós, a
religião não é mais a razão, mas
apenas o fenômeno da limitação
mundana". (idem). Então a religião é uma forma de resposta as barreiras sociais
impostas à humanidade. Assim, para o autor, ao invés de se combater a religião,
é necessário buscar a resolução dos problemas mundanos superando limites
seculares que assolam a população:
Em consequência, explicamos o envolvimento religioso
dos cidadãos livres a partir do seu envolvimento secular. Não afirmamos que
eles deveriam primeiro suprimir sua limitação religiosa para depois suprimir as
limitações seculares. Afirmamos, isto sim, que eles suprimem sua limitação
religiosa no momento em que suprimirem suas barreiras seculares. Não afirmamos
que eles devam suprimir sua limitação religiosa para depois suprimir suas
limitações seculares. Afirmamos, isto sim, que eles suprimem sua limitação
religiosa no momento em que suprimem suas barreiras seculares. (p. 38).
Assim, Marx inverte a lógica de Bruno Bauer, com isso o
combate à religião converte-se em combate político contra o Estado, contra a
desigualdade política e social. Marx destaca que não se pode transformar as questões
terrenas, mundanas, em questões místicas. É na própria história da humanidade
que se deve buscar as causas estruturantes da vida humana. Então não se tratava de mistificar a questão
judaica e sim buscar a raiz do problema da limitação da liberdade na existência
do próprio Estado: "Não transformamos as questões mundanas em questões
teológicas. Transformamos as questões teológicas em questões mundanas. Tendo a
história sido, por tempo suficiente, dissolvida em superstição, passamos agora
a dissolver a superstição em história". (p. 38).
A luta pela liberdade religiosa é um flanco na luta contra a
centralização política na Esfera estatal. Não é a própria emancipação humana,
mas é uma forma de emancipar-se politicamente frente a uma esfera dominada pelo
Estado. Então, é uma luta que desmistifica o próprio Estado expondo suas
contradições. Assim, de acordo com o autor:
A questão da
relação entre emancipação política e religião transformam-se para nós na
questão da relação entre emancipação
política e emancipação humana. Criticando a debilidade religiosa do Estado
político ao criticar o Estado político em sua construção secular, independente
de sua debilidade religiosa. Humanizamos a contradição entre o Estado e uma
determinação religiosa, p. ex., o judaísmo, em termos de contradição entre o
Estado e determinados elementos seculares, em termo de contradição entre o
Estado e a religião de modo geral, em termos de contradições entre Estado e
seus pressupostos gerais. (p. 38).
Sustentando tal reflexão, Marx defende que deve ser
assegurada a liberdade religiosa aos judeus e a quem mais o queira, por meio de
um Estado laico, que confira liberdade religiosa a todas as religiões: "A
emancipação política do judeu, do cristão, do homem religioso de modo geral
consiste na emancipação do Estado em relação ao judaísmo, ao cristianismo, à
religião como tal". (Idem). Para o autor, o Estado, dissociando-se da
posição de guardião de uma religião, revela-se mais mundano, desmistificando-se
de facetas mágicas: "Na sua forma de Estado, o modo apropriado à sua
essência, O Estado se emancipa da religião, emancipando-se da religião do
Estado, isto é, quando o Estado como Estado não professa nenhuma religião, mas
ao contrário, professa-se Estado". (Idem). O Estado laico explicita que, o
Estado enquanto tal, é apenas uma criação humana de determinada fase
histórica-política. O Estado é tão mundano como qualquer obra humana.
E ainda, se por um lado, mesmo que o Estado se faça laico,
ficando, por sua vez, livre da gestão da questão religiosa, por outro lado, o
ser humano não fica livre da religião simplesmente porque o Estado professou-se
laico. Para Marx, enquanto existirem as mazelas sociais a forma religiosa,
teológica, encontrará fértil terreno para desenvolver.
Marx contra o Estado prussiano
Marx está em combate direto contra o Estado prussiano e o
governo de Frederico Guilherme, assim, aponta que a liberdade religiosa é
apenas uma das liberdades que se deveria arrancar do Estado, havendo ainda uma
série de lutas para serem travadas, como a luta pela liberdade de imprensa, de
associação, etc. Para Marx, já nesse texto, tratava-se de dissolver o Estado em
favor de uma forma de autogoverno exercido diretamente pela população,
eliminando as limitações entre o Estado político (de governantes) e o Estado
não-político (de governados). Esse processo seria uma forma de superar as
limitações da emancipação política em prol da emancipação humana em relação ao
Estado. Isso porque o próprio Estado existe em favor de uma minoria que governa
em causa própria. Então, combater a religião Estatal, que é uma forma de
arbítrio do Estado sobre o povo, não implica ainda em resolver a contradição da
própria existência do Estado: "A emancipação política em relação à religião não é a emancipação já efetuada, isenta
de contradições, em relação à religião, porque a emancipação política ainda não
constitui o modo já efetuado, isento de contradições, da emancipação humana". (Idem).
Ainda, o fato de o Estado professar-se laico, assegurando a
liberdade da escolha religiosa, não deve isentá-lo da responsabilidade da
resolução dos problemas sociais que conduzem as pessoas a buscar por soluções
religiosas. Assim, segundo Marx: "O limite da emancipação política fica
evidente de imediato no fato de o Estado
ser capaz de se libertar de uma limitação sem que o homem realmente fique livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um
Estado livre [Freistaat, república] sem que o homem seja livre". (p. 38-39).
O fato da opção religiosa deixar de ser uma coisa pública,
regulada pelo Estado, não implica que a religião deixe de ser uma opção pessoal
praticada no âmbito privado, uma vez que as pessoa se tornam livres para
praticar ou não um credo religioso. Dessa forma: "O Estado pode, portanto,
já ter se emancipado da religião, mesmo que a maioria esmagadora continue religiosa. E a maioria esmagadora não
deixa de ser religiosa pelo fato de ser religiosa
em privado". (p. 39). As reflexões de Marx elucidam que Estado laico e
liberdade religiosa devem ser consideradas como liberdades básicas da
humanidade. E que, justamente por isso, os revolucionários deveriam se colocar
na linha de frente na defesa de tais liberdades. Isso politiza a prática
religiosa cotidiana, pois opõem religiosos à ingerência estatal na vida
privada, fortalecendo a liberdade de culto e de crença.
Limitações da emancipação política
Marx aprofunda ainda mais a reflexão, destacando que uma
limitação da emancipação política é que as pessoas precisam se valer da atuação
do próprio Estado para garanti-la. Não se trata de uma imposição da população
contra o Estado, mas de uma conquista no âmbito do mesmo Estado que acaba por
admitir a legitimidade do Estado na regulação das liberdades humanas. Afirma o
Estado, entidade de classe, como intermediário das liberdades humanas gerais. A
luta religiosa confronta-se com o Estado ao mesmo tempo em que o legitima, está
é a contradição da emancipação política:
Porém, o comportamento do Estado, principalmente do
Estado livre, para com a religião nada mais é do que o comportamento das
pessoas que compõem o Estado para com a religião. Disso decorre que o homem se
liberta de uma limitação, valendo-se do meio
chamado Estado, ou seja, ele se liberta politicamente, colocando-se em
contradição consigo mesmo, alterando-se acima dessa limitação de maneira abstrata e limitada, ou seja, de maneira parcial. Decorre, ademais, que o homem, ao se libertar politicamente, liberta-se através de um desvio, isto é, de um meio, ainda que se trate de um meio necessário. A religião é exatamente
o reconhecimento do homem mediante um desvio, através de um mediador. O Estado é o mediador entre o homem e a liberdade do
homem. (...). (p. 39).
No entanto, para Marx, essa não é uma contradição unicamente
da luta religiosa, pois embora as conquistas no âmbito da emancipação política
sejam importantes, conforme esclarece quando afirma que: "A elevação política do homem acima da religião
compartilha de todos os defeitos e de todas as vantagens de qualquer elevação
política". (p. 39). Isso porque reafirmam o papel do Estado na mediação
das liberdades sociais.
Então, a emancipação política é muito importante, pois além
de ampliar as liberdades humanas, pode abrir caminho para outras lutas de
caráter emancipatório, mas emancipação política é sempre uma emancipação dentro
da ordem: "A emancipação política
de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva de
emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva de emancipação
humana dentro da ordem mundial vigente até aqui". (p. 41). Ao ampliar as conquistas,
por meio de emancipação política, a luta social afasta o arbítrio do Estado
devolvendo poderes às pessoas. No caso da religião, ela sai da esfera pública e
passa para a esfera privada, para uma escolha pessoal do indivíduo:
O homem se emancipa politicamente da religião, banindo-a do direito público para o
direito privado. Ela não é mais o espírito do Estado, no qual o homem ainda que
de modo limitado, sob formas bem particulares e dentro de uma esfera específica
- se comporta como ente genérico em comunidade com outros homens; ela passou a
ser o espírito da sociedade burguesa,
a esfera do egoísmo, do bellum omnium
contra omnes [da guerra de todos contra todos]. Ela não é mais a essência
da comunidade, mas a essência da diferença. Ela se tornou a expressão da
separação entre o homem e a comunidade, entre si mesmo e os demais homens -
como era originalmente. Ela já não
passa de uma profissão abstrata da perversidade particular, do capricho privado, da arbitrariedade.
(...). (pp. 41-42).
Mas, como a religião é apenas uma das esferas particulares
da sociedade, esta por sua vez, reforça o dualismo entre o indivíduo privado e
indivíduo como membro da sociedade civil, como cidadão. Emerge a contradição
entre homem individual e homem coletivo. Novamente Marx destaca as limitações
da emancipação política: "Todavia, não tenhamos ilusões quanto ao limite
da emancipação política. A cisão do homem em
público e privado, o deslocamento da religião do Estado para
a sociedade burguesa, não constitui um estágio, e sim a realização plena da emancipação política, a qual, portanto, não
anula nem busca anular a religiosidade real
do homem". (p. 42). Interessante destacar que para Marx um Estado
religioso é um Estado menos desenvolvido politicamente e mais mistificado, uma
vez que utiliza a religião como forma de extensão de seu controle sobre a
sociedade:
O assim chamado Estado cristão constitui, na verdade,
a negação cristã do Estado, mas jamais a realização do cristianismo. O Estado
que continua a professar o cristianismo na forma de religião ainda não o
professa na forma de Estado, pois continua a comportar-se religiosamente para
com a religião, isto é, ele não é a realização efetiva do fundamento humano da
religião, porque ainda se reporta a irrealidade,
à figura imaginária desse cerne
humano. O assim chamado Estado cristão é o Estado incompleto, ele tem a
religião cristã na conta de complemento
e santificação de sua incompletude.
Sendo assim, a religião se torna para ele um meio, e ele se constitui no Estado
da hipocrisia.
Ainda, de acordo com Marx, é preciso considerar que: "Há
uma grande diferença entre o Estado completo,
laico, que se afirma sem a necessidade de recorrer à esfera da dominação
religiosa (que pode inclusive ter a religião entre seus pressupostos por causa
da deficiência inerente à essência
universal do Estado) e o Estado incompleto, religioso, declarar a religião
como seu fundamento". Isso porque:
No último caso, a religião se torna política incompleta. No primeiro caso,
manifesta-se, manifesta-se na religião a incompletude até mesmo da política completa. O Assim chamado
Estado cristão necessita da religião cristã para completar-se como Estado. O Estado democrático,
Estado real, não necessita da religião para chegar à completude sua política.
Ele pode, antes, abstrair da religião, porque nele se realiza efetivamente em
termos seculares o fundamento humano da religião. O assim chamado Estado
cristão, em contrapartida, comporta-se politicamente para com a religião e
religiosamente para com a política. Ao rebaixar as formas estatais à condição
de aparência, ele rebaixa na mesma proporção a religião a essa condição. (p.
43).
Da
emancipação política para a emancipação humana
Para Marx, as lutas sociais, protagonizadas a partir de
demandas específicas, religiosas, étnicas, econômicas etc. tem sempre
relevância pois politizam a sociedade e colocam o ser humano como sujeito ativo
de suas demandas. Faz com que veja na prática a importância da organização
política frente ás outras esferas sociais, mas principalmente frente ao Estado.
O Estado é sempre um Estado de classe, uma forma de dominação política, então,
cada luta social repõem o poder político do povo. Faz com que o homem se
coloque como senhor do seu próprio destino, confiando apenas em forças próprias,
na própria organização popular, e não em uma entidade externa, alheia a sua
própria vontade. De acordo com o autor:
(...) a emancipação humana só estará plenamente
realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão
abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua
vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais,
quando o homem tiver reconhecido e reorganizado suas "forces propres" [forças próprias] como forças sociais e, em
consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma de força
política. (p. 54).
Referências:
MARX, K. Sobre a questão judaica.
Boitempo.
MOURA,
A. A
ruptura de Marx com Hegel: Critica da filosofia do direito de Hegel. http://www.esquerdadiario.com.br/A-ruptura-de-Marx-com-Hegel-Critica-da-filosofia-do-direito-de-Hegel
MOURA,
A. Marx em
defesa da liberdade de imprensa (1842). http://www.esquerdadiario.com.br/Marx-em-defesa-da-liberdade-de-imprensa-1842
MOURA,
A. Marx
antes do marxismo - Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e
Epicuro (1841). http://www.esquerdadiario.com.br/Marx-antes-do-marxismo
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