Prof. Dr. Alessandro de Moura[1]
A
pandemia do coronavírus (CODID-19) é um efeito colateral da forma social na
qual vivemos: cidades superlotadas, precariedade das moradias, sistema de saúde
de baixa qualidade, medicina focada em sintomas, indústria farmacêutica
centrada no lucro, população mal alimentada (junk foods), comida envenenada por hormônios e agrotóxicos etc. Com
tal conformação, de tempos em tempos, as pandemias explodem em diversas regiões
do mundo. Lembremos que a Gripe espanhola (influenzavirus
H1N1) disseminou-se como pandemia devido às péssimas condições de vida, precários
cuidados da saúde, higiene, alimentação e moradia durante a primeira guerra
mundial. Marx, n'O capital, na seção "Grande indústria e
agricultura", já chamava a atenção para as perturbações e desequilíbrios
que a produção industrial em larga escala causava no meio ambiente e na
produção agrícola:
(...) a predominância sempre crescente da população urbana, amontoada em
grandes centros pela produção capitalista (...), desvirtua o metabolismo entre
o homem e a terra, isto é, o retorno ao solo daqueles elementos que lhe são
constitutivos e foram consumidos pelo homem sob forma de alimentos e
vestimentas, retorno que é a eterna condição natural da fertilidade permanente
do solo. Com isso, ela destrói tanto a saúde física dos trabalhadores urbanos
como a vida espiritual dos trabalhadores rurais. (MARX, 2016).
Dentro
dessa perspectiva, a atual crise do COVI-19 é parte de uma crise estrutural da
forma de produção e distribuição de mercadorias nos circuitos mundiais,
sobretudo os alimentos, mas também do baixo nível da saúde mundial. O
desmatamento, a agricultura de commodities,
com eliminação de habitat naturais, utilização agrotóxicos, as grandes
monoculturas modificadas geneticamente, bem como a utilização de hormônios e antibióticos
em aves e demais animais de abate, são fatores determinantes desta pandemia. Tais
condições socioeconômicas produzem e disseminam as pandemias, como a do Ebola, a Gripe
aviária, a Gripe suína e SARS. (CHUANG, 2020, HARVEY, 2020).
A alta densidade populacional humana nos grandes centros
industriais e produtivos faz dos seres humanos alvos fáceis para diversos
hospedeiros. Harvey relembra que "as epidemias de sarampo, por exemplo, só
se manifestam em grandes centros populacionais urbanos, mas desaparecem
rapidamente em regiões pouco povoadas". (HARVEY, 2020). As densas
metrópoles mundiais vivem em constante intercâmbio entre si, sendo que,
"uma das desvantagens do aumento da globalização é como é impossível
impedir uma rápida difusão internacional de novas doenças. Vivemos em um mundo
altamente conectado, onde quase todo mundo viaja. As redes humanas para
potencial difusão são vastas e abertas". (Idem).
Não
se pode perder de vista que as intervenções invasivas do atual modo de produção
geram variadas crises no meio ambiente, sobre outros seres vivos e
microorganismos. A esfera socioeconômica invade a esfera biológica, perturbando
substancialmente a composição microbiológica e seus equilíbrios. São tais
perturbações que criam as transferências zoonóticas (de animais para os
humanos). Evidencia-se a estreita relação entre a economia, a microbiologia e a
epidemiologia. (CHUANG, 2020).
A degradação da saúde da comunidade mundial
A
devastação ambiental soma-se à fragilidade da saúde pública no capitalismo
industrial. As pandemias encontram terreno fértil para se desenvolver e se
espalhar rapidamente também por causa vulnerabilidade da saúde da população
mundial, a má alimentação, desnutrição, pobreza, extensas jornadas de trabalho
fragilizam o corpo humano. Na sociedade global investe-se mais em tratamento do
que em prevenção, a população trabalha demais e recebe cuidados de menos. As
doenças são fontes de lucro para a indústria farmacêutica, por isso, é
lucrativo remediar ao invés de prevenir. Essa lógica cria e recria barreiras
constantes para a medicina preventiva. (CHUANG, 2020: HARVEY, 2020: DAVIS,
2020, BIRD, 2020).
Desde
a falência do sistema Bretton Woods, com crise econômica dos anos 1970 e o
surgimento do neoliberalismo, reinstalou-se mundialmente o desemprego
estrutural e uma série de ataques aos direitos trabalhistas e aos serviços
públicos. (ANDERSON, 1995: BRENNER, 2003: BELUZZO, 2005: CARVALHO, 2004). Constitui-se,
na esfera mundial, um frágil sistema de saúde, precarizado intencionalmente, mas
que recebe multidões de pessoas que tiveram sua saúde fragilizada pela
sociedade industrial de ritmo toyotista. Por isso, Harvey aponta que as décadas de neoliberalismo "deixaram o
público totalmente exposto e mal preparado para enfrentar uma crise de saúde
pública desse calibre, apesar de sustos anteriores como a SARS e o Ebola
fornecerem avisos abundantes e lições convincentes sobre o que seria necessário
ser feito". (HARVEY, 2020).
O coronavírus globalizado e a classe trabalhadora
Mike Davis (2020), também aponta que "A crise do coronavírus é um monstro alimentado
pelo capitalismo". Para o autor, por serem produtos da indústria de
massa, não cabe à classe trabalhadora pagar por elas. O Estado e suas burguesias que lucraram com o trabalho de milhões, devem
assegurar as condições de vida da população em meio à pandemia. Mesmo que frações da classe trabalhadora sigam produzindo em setores
essenciais, da agricultura, das fábricas, transportes, serviços etc. (e gerando
lucro para a burguesia), outros milhões serão demitidos em meio às
quarentenas nos diversos países do globo. A massa de
novos desempregados pela pandemia soma-se aos milhões de trabalhadores que
sofrem com o desemprego estrutural e subempregos. Até agora (em maio de
2020), mais de 30 milhões de trabalhadores entraram com pedido do seguro
desemprego nos EUA. Davis destaca que "milhões
de trabalhadores de baixa renda do setor de serviços, trabalhadores agrícolas,
desempregados e sem-teto estão sendo atirados aos lobos". (DAVIS, 2020). Só
Brasil, antes da pandemia, contava-se com 13 milhões de desempregados, com um
total e 40 milhões de trabalhadores informais.
A pandemia, como produto do capitalismo
neoliberal, eclodiu em meio à crise econômica mundial que se arrasta nos
últimos anos (2008-2020) aprofundando a recessão e acelerando o declínio da
atividade econômica, com uma onda de quebra e falências empresas, comércios e
fábricas, também significativas perdas na bolsa de valores, com destruição
massiva de capitas. A quarentena mundial "diminui a demanda final, enquanto
a demanda por matérias-primas diminui o consumo produtivo". (HARVEY,
2020). Também as atividades de turismo desaceleram abruptamente, gerando
paralisia dos seus serviços correlatos. Isso
ocasiona ondas de inadimplência, interrupção do
pagamento de dívidas, mensalidades, financiamentos de casas, carros, aluguéis
etc. As falências são seguidas por fechamento de postos de
trabalho e demissões, queda da arrecadação dos Estados. Ampliando-se a massa de desempregados com agravamento da
pobreza, da miséria e da fome.
Nesse sentido, é falsa ideia segundo a qual "estamos todos no
mesmo barco", como se não existissem determinações sócio-econômicas de
classe. Estamos no mesmo mar, mas com condições distintas, uns com
transatlânticos, outros com lanchas, uns com barcos a remo, outros nadando
contra a maré, e alguns nem podem nadar e ficam à deriva. Amplas camadas da
classe trabalhadora não podem optar pela quarentena remunerada, principalmente
nos setores de trabalho mais precários e de baixos salários (como a da limpeza,
transporte, manutenção e alimentação). Nesses setores está alocada grande parte
da população negra e mais empobrecida, amplas massas do subproletariado. Por
isso Harvey aponta que "o progresso da COVID-19 exibe todas as
características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça". (HARVEY,
2020). As hierarquias e privilégios de classe se reafirmam e se reproduzem.
Quem se infecta e tem como pagar altas quantias, pode ser atendido rapidamente
em clinicas e hospitais privados de luxo, com garantia de leitos, respiradores e
todos os serviços necessários.
A pandemia se somou à crise estrutural do capital
A pandemia não criou a crise econômica mundial de 2020, está já se
fazia presente desde 2008. Depois do ciclo de expansivo de 2003-2008 a economia global vem
sofrendo severa desaceleração. Desencadeada a partir do estouro da bolha
especulativa no setor imobiliário dos EUA, a crise rapidamente se espalhou para
os principais mercados mundiais de capitais e no sistema financeiro
internacional. O estouro da bolha gerou
a contração da liquidez internacional, transformando-se numa crise de
investimentos, comercial e produtiva, atingindo acumulo de capital, emprego e
renda. Ela só não atingiu os patamares da crise prolongada de 1929 por causa da
intervenção massiva e rápida dos países mais ricos do mundo, sobretudo dos EUA.
Em
2019, com apontou o economista britânico Michael Roberts[2]:
"Os EUA estão crescendo a apenas 2% ao ano, Europa e Japão a só 1%; e as
maiores entre as assim-chamadas economias emergentes do Brasil, México,
Turquia, Argentina, África do Sul e Rússia estão basicamente estáticas".
(2020). A lucratividade do capital tem tido uma tendência declinante na cadeia
global. Confira o gráfico apresentado pelo autor:
Brasil - crise econômica, golpe
e pandemia
Desde a crise dos anos 1970, O Brasil, como toda América Latina, apresentou
baixo índice de crescimento. Esse
processo só se modificou na última fase de expansão do capitalismo mundial
entre 2003-2008. Depois dessa fase, o país voltou a desacelerar até entrar em
recessão. As políticas ortodoxas praticadas desde Dilma até
Temer impactaram diretamente no mercado de trabalho e nos salários. A taxa de
desemprego saltou 6,8% em 2014 para 13% em 2017.
Em 2019 o país cresceu apenas
1% em 2019, com 12 milhões de desempregados e 40 milhões de trabalhadores na
informalidade, o país era expressão da baixa vitalidade da economia global.
Conforme apontado pela ONU/CEPAL, em janeiro de 2019: "Extrema pobreza
aumenta na América Latina e atinge nível mais alto desde 2008". Dessa
forma, também no Brasil, a crise pretérita somou-se à nova crise do
coronavírus. Em março de 2020 a ONU projetou que "O número de pobres na
América Latina pode crescer em 35 milhões devido ao coronavírus COVID-19".
O governo Bolsonaro em meio à
pandemia
Com a queda dos mercados globais atingidos pelo
Covid, o Banco Central brasileiro precisou lançar bilhões de dólares no
mercado para conter o preço da moeda no país. A principio, o governo de Bolsonaro,
representante reacionário da patronal, socorreu os bancos, mas tentou impedir a
quarentena, dizendo que tratava-se apenas de um "gripezinha". No
entanto, acabou derrotado pelos governadores dos Estados que, temendo um desastre humanitário em suas bases, tomaram medidas emergenciais de
isolamento, seguindo as determinações da Organização Mundial da Saúde. O Superior
Tribunal Federal e o Congresso encamparam as ações dos governadores, deixando
Bolsonaro isolado em sua irresponsabilidade. Suas declarações na imprensa sobre
as milhares de mortes no país são escandalosas.
Logicamente, é a política patronal e burguesa que
move os governadores. Pois há de se recordar que continuam defendendo ataques
aos direitos trabalhistas como redução das jornadas de trabalho com redução de
salários e demissões em meio a uma pandemia. Eximiram-se da responsabilidade de
um plano produtivo emergencial para os setores essenciais, que pudesse manter
empregos, salários e rendas compatíveis com o custo de vida para a classe
trabalhadora. Assim, as políticas dos governadores dos Estados tinham como foco
a manutenção dos lucros da patronal em detrimento da saúde dos trabalhadores
dos setores essenciais. Mesmo frente ao agravamento da pandemia, mostraram-se
incapazes de assegurar respiradores na quantidade necessária, testes massivos, atendimento
hospitalar, bem como realocamento de pessoas contaminadas para instalações
minimamente dignas.
O governo neoliberal de Bolsonaro, e seu Ministro Paulo da
Economia Guedes não teve dúvidas em liberar 1,216 trilhão de reais (16,7% do PIB) para socorrer os bancos. Outras dezenas de bilhões foram
liberadas para ajudar os Estados e empresas, contemplando 1,4 milhão delas.
Pressionado por todos os lados, o governo se viu obrigado a estabelecer uma
renda mínima para os setores mais precarizados da classe trabalhadora, no valor
de 600 R$, para 54 milhões trabalhadores (pode-se chegar ao máximo 1.200 reais
de auxílio por família). No total, 98 bilhões fora destinados aos
trabalhadores. A ajuda para os trabalhadores corresponde a 7,5% dos fundos “disponibilizados” para o grande capital financeiro até
agora.
Para o grupo de Bolsonaro, focado em um neoliberalismo radical de
extrema-direita, a ideia era intervenção mínima em favor dos trabalhadores,
deixando a economia desacelerar sozinha independente do número de contaminados
e mortos que pudesse gerar. Isso porque seu governo apresentou um PIB pífio de
1,1% em 2019 e a desaceleração certamente levará o PIB abaixo de zero. A
preocupação do presidente, além de uma pretendida reeleição e não com a
esmagadora maioria da população que vive de salário, mas sim com os interesses
dos grupos empresariais que apoiaram e financiaram a sua campanha. Com o
aprofundamento da crise uma ala da burguesia articulou uma mórbida campanha em
prol da volta ao trabalho, na linha de frente estavam empresários como Luciano
Hang da Havan, Junior Durski do Madero e Roberto Justos, como todo o grupo Brasil 200 (linha de frente da patronal
reacionária), defendendo abertamente que os ricos se isolem, e que a classe
trabalhadora continue nos postos de trabalho (sobreviva quem puder). Foram
organizadas carreatas pelas principais cidades do país pela abertura do
comércio. Em meio aos milhares de morto, esse movimento foi chamado de carreatas da morte.
A classe
trabalhadora brasileira está à deriva
A
desaceleração econômica coloca na ordem do dia a necessidade de um plano de
ação emergencial pautado sobre a necessidade a produção e a distribuição
articuladas pelo Estado brasileiro. Como a classe trabalhadora está
desorganizada, por hora não é capaz de articular um plano de ação emergencial a
partir dos locais de trabalho, em suas instituições de classe. Assim, o Estado
burguês fica livre para por em prática um programa patronal que protege os
lucros com intensificando a exploração e opressão. A pesar da crise, o sistema
continua capitalista.
A idéia burguesa, de colaboração de classes, subjacente no
harmônico "estamos todos no mesmo barco" esconde a exposição de
setores da classe trabalhadora ao contágio e a sua dificuldade de acesso ao
serviço de saúde. Trabalhadores estão morrendo de Covid-19 sem ter acesso a
exames e internação. A distinção de classes está presente em todos os aspectos
da crise, desde o acesso às mascaras, leitos, respiradores, UTIs, mas também em
quem pode ficar em casa, de quarentena recebendo salários normalmente e se
resguardando da exposição ao vírus. Isso
sem se falar nos tipos de habitação, em que muitas famílias proletárias vivem
em casas lotadas, que dificultam o isolamento em casa sem contaminar outros
familiares.
As centenas de milhares de contaminados e as dezenas
de milhares de mortos não foram suficiente para que se estabelecesse políticas
focadas para atender a população das favelas e periferias, que demandam
programas de moradia; saúde e alimentação. Alguns setores da sociedade debatem a
necessidade de taxação das fortunas milionárias para manter e ampliar o
atendimento e tratamento no SUS, mas o Estado prefere não tocar nos privilégios
determinados pela estrutura social brasileira. Como se pode ver pela
continuidade no pagamento da dívida pública.
No meio disso tudo, a ala majoritária da esquerda brasileira tem
feito pouco ou quase nada. Isso porque está focada no desgaste do Governo
Bolsonaro e na possibilidade de fortalecimento de candidatos para as próximas
eleições. Isso dificulta a possibilidade da classe trabalhadora organizar um
plano político próprio, com independência política em relação aos interesses da
patronal. Cabe lembrar que, em meio à pandemia, a classe trabalhadora continua
mantendo todas as "posições estratégicas" na estrutura produtiva,
como transporte, grandes indústrias e serviços. Nesse sentido, a crise
pandêmica reafirma a centralidade da classe trabalhadora. A crise política e econômica no Brasil
levou a população às ruas em 2013 em mobilizações de massa, com o maior levante
de juventude brasileira no pós-ditadura. A pauta central eram os serviços de
transporte, saúde e moradia. Essas pautas retornam agora com a crise do
coronavírus, mas com um preço muito mais alto.
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[1]
Doutor em Ciências Sociais pela Unesp-Marília. Pós-doutorando em História
econômica pela Usp. Professor convidado no Programa de Pós-graduação da PUC-SP.
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