Leon Trotski
· Prefácio da edição russa de 1919
· Introdução
· Capítulo I - Particularidades do desenvolvimento histórico da Rússia
· Capítulo II - Cidades e capital
· Capítulo III - 1789-1848-1905
· Capítulo IV - A revolução e o proletariado
· Capítulo V - Proletariado no poder e o campesinato
· Capítulo VI - O regime proletário
· Capítulo VII - As premissas do socialismo
· Capítulo VIII - Um governo operário na Rússia e o socialismo
· Capítulo IX - A revolução e a Europa
Prefácio da edição russa de 1919
Leon Trotski
O caráter da revolução russa foi a questão fundamental em relação à qual, consoante a resposta que a ela davam, reagruparam-se as diversas tendências ideológicas e as organizações políticas do movimento revolucionário russo. Esta questão provocou sérios desacordos no seio do próprio movimento social-democrata quando os acontecimentos vieram dar a ela um alcance prático. A partir de 1904, estas divergências conduziram à formação de duas tendências fundamentais: o menchevismo e o bolchevismo. O ponto de vista dos mencheviques era o de que a nossa revolução seria uma revolução burguesa, que conduziria naturalmente à transferência do poder para a burguesia, criando assim as condições de um regime parlamentar burguês. Os bolcheviques, pelo contrário, mesmo reconhecendo que a futura revolução teria inevitavelmente um caráter burguês, apontavam como tarefa da revolução a instauração de uma república democrática por meio da ditadura do proletariado e do campesinato.
A análise social dos mencheviques era extremamente superficial e reduzia-se essencialmente a grosseiras analogias históricas, método típico dos filisteus "cultos”. Nem o fato de o desenvolvimento do capitalismo russo ter criado várias contradições nos seus dois pólos, só deixando um insignificante lugar à democracia burguesa, nem a experiência dos ulteriores acontecimentos, puderam afastar os mencheviques da sua busca incansável de uma democracia "real" que se colocaria à frente da "nação" e daria um quadro parlamentar, tanto quanto possível democrático, ao desenvolvimento do capitalismo. Os mencheviques esforçavam-se, sempre e em toda a parte, por descobrir sinais do desenvolvimento da democracia burguesa e, onde não os encontravam, inventavam-nos. Exageravam a importância da mais pequena declaração ou manifestação "democrática", enquanto subestimavam as forças do proletariado e as perspectivas que se abriam às lutas operárias. Usavam de um tal fanatismo ao descobrir a direção burguesa democrática que garantiria este quadro burguês "legítimo" designado à revolução russa, acreditavam eles, pelas leis da história, que durante a própria revolução, como não era visível nenhuma direção burguesa democrática, os mencheviques encarregaram-se, com maior ou menor êxito, de assumir eles próprios essa função.
Democratas pequeno-burgueses, completamente desprovidos de ideologia socialista, de preparação marxista e de orientação de classe, não teriam naturalmente podido, nas condições da revolução russa, agir de modo diferente dos mencheviques no papel de partido "dirigente" da revolução de Fevereiro. Mas a total ausência de base séria para uma democracia burguesa faz então sentir os seus efeitos à sua custa; não fizeram mais do que sobreviver a si mesmos e foram eliminados pela luta de classes no oitavo mês da revolução.
O bolchevismo, pelo contrário, não tinha a mínima confiança no poder e nas forças de uma democracia burguesa revolucionária na Rússia. Reconheceu, desde o primeiro instante, a importância decisiva da classe operária na futura revolução; mas, quanto ao programa da revolução, os bolcheviques começaram por o limitar à satisfação dos interesses dos milhões e milhões de camponeses, sem e contra os quais a revolução não poderia ser levada a cabo pelo proletariado. É por isso que eles reconheciam (nessa altura) um caráter democrático burguês à revolução.
No que se refere à apreciação das forças internas da revolução e das suas perspectivas, o autor, nesta época, não aderia a uma nem a outra das principais tendências do movimento operário russo. O ponto de vista que ele então defendia pode ser exposto da seguinte maneira: a revolução, que começará como uma revolução burguesa quanto às suas primeiras tarefas, depressa levará as classes hostis a afrontarem-se e não poderá conseguir a vitória final se não transferir o poder para a única classe capaz de se colocar à cabeça das massas oprimidas, o proletariado. Uma vez no poder, este não só não quererá, mas não poderá limitar-se à execução de um programa democrático burguês; só poderá levar a revolução a bom termo se a revolução russa se transformar numa revolução do proletariado europeu.
O programa democrático burguês da revolução será então ultrapassado, ao mesmo tempo que as suas limitações nacionais e a dominação política temporária da classe operária se desenvolverão numa ditadura socialista prolongada. Mas se a Europa se conserva, a contra-revolução burguesa não tolerará o governo das classes exploradas na Rússia, e lançará o país para trás - bastante para além de uma república democrática operária e camponesa. Assim, uma vez tomado o poder, o proletariado não poderá permanecer nos limites da democracia burguesa: terá que adotar a táctica da revolução permanente, quer dizer, ultrapassar as barreiras entre programa mínimo e programa máximo da social-democracia, realizar reformas sociais sempre mais radicais, e procurar um apoio direto e imediato na revolução na Europa Ocidental. Esta é a posição desenvolvida e argumentada na presente obra, que foi escrita em 1904-1906.
Defendendo constantemente o ponto de vista da revolução permanente durante os quinze anos que se seguiram, o autor enganou-se, contudo, na sua apreciação das facções concorrentes da social-democracia. Como uma e outra partiam do ponto de vista da revolução burguesa, o autor pensava que as divergências existentes entre ambas não deviam ser tão profundas que justificassem uma cisão. Ao mesmo tempo, esperava que o curso ulterior dos acontecimentos demonstrasse com clareza, por um lado, a fragilidade e insignificância da democracia burguesa russa, por outro, a impossibilidade objetiva de o proletariado se limitar à execução de um programa democrático. E pensava que as divergências entre frações perderiam então todo o seu fundamento.
Permanecendo fora das duas facções durante o período da emigração, o autor não apreciava completamente a importância do fato que, na realidade, a partir do desacordo entre bolcheviques e mencheviques, fazia reagrupar, de um lado, revolucionários inflexíveis, do outro, elementos que deslizavam para o oportunismo e para a conciliação. Quando estalou a revolução de 1917, o partido bolchevique constituía uma organização fortemente centralizada, onde se encontravam os melhores elementos dos trabalhadores avançados e dos intelectuais revolucionários. E, após algumas lutas internas, adotou sem rodeios uma táctica dirigida em direção à ditadura socialista da classe operária, em plena harmonia com toda a situação internacional e com as relações de classe na Rússia. Quanto à facção menchevique, esta tinha amadurecido o suficiente nessa altura, como já se disse, para estar apta a assumir as tarefas da democracia burguesa.
Apresentando ao público uma reedição deste livro, o autor não deseja só expor os princípios teóricos que lhe permitiram, a ele e a outros camaradas que se mantiveram durante muito tempo fora do partido bolchevique, juntar a sua sorte à sorte do partido no início de 1917 - um motivo pessoal como esse não seria suficiente para justificar esta reedição - mas também relembrar a partir de que análise social e histórica das forças motrizes da revolução russa foi tirada a conclusão, muito tempo antes de a ditadura do proletariado se tornar um fato consumado, de que a revolução russa podia e devia designar como tarefa a conquista do poder pela classe operária.
Que nos seja reeditar sem alteração a brochura escrita em 1906 e concebida nos seus traços essenciais em 1904, é uma prova suficiente de que a teoria marxista não está do lado dos sucedâneos mencheviques da democracia burguesa, mas sim do lado do partido que transpôs para a realidade a ditadura da classe operária.
A prova final da teoria é a experiência. Os acontecimentos nos quais participamos atualmente, o método que seguimos quando neles participamos, foram previstos nas suas linhas fundamentais há quinze anos: eis a prova irrefutável de que nós aplicamos corretamente a teoria marxista.
Em apêndice, reproduzimos um artigo publicado em 17 de Outubro de 1915 no jornal Naché Slovo de Paris sob o título: A luta pelo poder. Este artigo tinha um fim polêmico e criticava a "Carta" programática dirigida aos "camaradas na Rússia" pelos dirigentes mencheviques. Nós tiramos a conclusão de que o desenvolvimento das relações de classes durante os dez anos que se tinham seguido à revolução de 1905 tinham tornado ainda mais ilusórias as esperanças dos mencheviques numa democracia burguesa, e que, manifestamente, a sorte da revolução russa, estava mais do que nunca ligada à ditadura do proletariado... É necessário ser-se verdadeiramente imbecil para, após a batalha de idéias que eclodiu muitos anos antes da revolução, falar do "aventureirismo" da revolução de Outubro!
Quando se fala da atitude dos mencheviques relativamente à revolução, não se pode deixar de mencionar a degenerescência menchevique de Kautski, que encontra agora nas "teorias" de Martov, Dan e Tsérételli a expressão da sua própria decadência teórica e política. Depois de Outubro de 1917, soubemos de Kautski que, embora a conquista do poder político pela classe operária devesse ser olhada como a missão histórica do partido social-democrata, pois que o partido comunista russo não conseguira chegar ao poder pela porta especial e de acordo com o horário fixado por Kautski, a república dos Sovietes devia ser entregue, para ser corrigida, a Kerenski, Tsérételli e Tchernov. As críticas reacionárias e pedantes de Kautski deviam ter surpreendido particularmente os camaradas que viveram com os olhos abertos o período da primeira revolução russa e que leram os artigos escritos por ele em 1905-1906. Nessa altura Kautski -- não sem sofrer a influência benéfica de Rosa Luxemburgo -- compreendia e reconhecia plenamente que a revolução russa não podia acabar numa república democrática burguesa, mas que devia inevitavelmente conduzir à ditadura do proletariado, em virtude do nível atingido pela luta de classes no próprio país, e pela situação internacional do capitalismo. Kautski falava abertamente de um governo operário, com maioria social-democrata. Ele nem sequer sonhava em fazer depender o curso real da luta de classes, das combinações mutáveis e superficiais da democracia política.
Nesta altura, Kautski compreendia que a revolução começaria por despertar, pela primeira vez, os numerosos milhões de camponeses e de pequeno-burgueses das cidades, e isto não de uma só vez, mas gradualmente, de tal modo que, quando a luta entre o proletariado e a burguesia capitalista atingisse o seu ponto culminante, as grandes massas camponesas estariam ainda num nível muito primitivo de desenvolvimento político e dariam os seus votos aos partidos políticos intermediárias, que só refletiriam o atraso e os preconceitos da classe camponesa. Kautski compreendia então que o proletariado, conduzido pela própria lógica da revolução à tomada do poder, não podia adiar indefinidamente esta tarefa, porque tal abnegação só faria preparar o terreno para a contra-revolução.
Kautski compreendia então que, após ter conquistado o poder pela sua ação revolucionária, o proletariado não faria depender o destino da revolução, o proletariado não faria depender o destino da revolução, a todo o momento, do humor instável da facção menos acordada, menos consciente das massas, mas que, pelo contrário, faria do poder político concentrado nas suas mãos um poderoso aparelho para a educação e organização destas mesmas massas ignorantes e atrasadas.
Kautski compreendia então que qualificar a revolução russa de revolução burguesa e, por isso mesmo, limitar as suas tarefas, significaria não compreender nada do que se passava no mundo. Com os marxistas revolucionários russos e polacos, reconhecia com razão que a tomada do poder pelo proletariado russo antes do proletariado europeu, fá-lo-ia utilizar a sua situação de classe dominante, não para abandonar as suas posições rapidamente à burguesia, mas para conceder uma ajuda poderosa à revolução proletária na Europa e no mundo inteiro. E, não mais do que nós, Kautski não fazia depender toda esta perspectiva de envergadura mundial, impregnada do espírito da doutrina marxista, da questão de saber como e por quem votariam os camponeses em Novembro e Dezembro de 1917, nas eleições da Assembléia constituinte.
E agora, quando as perspectivas esquematizadas há quinze anos se tornaram uma realidade, Kautski recusa um certificado de nascimento à revolução russa sob pretexto de que o seu nascimento não foi devidamente inscrito nos registros políticos da democracia burguesa. Que atitude surpreendente! Que incrível degradação do marxismo! Pode-se dizer com toda a justiça que a degenerescência da II Internacional encontrou, neste julgamento de filisteu, emitido por um dos seus maiores teóricos sobre a revolução russa, uma expressão ainda mais monstruosa do que no voto dos créditos de guerra de 4 de Agosto de 1914.
Durante dezenas de anos, Kautski defendeu e desenvolveu as idéias da revolução social. E agora que esta revolução se tornou uma realidade, Kautski bate em retirada, aterrorizado, diante do poder dos sovietes na Rússia, e toma uma atitude hostil com relação ao poderoso movimento do proletariado alemão. Kautski parece aquele pobre mestre-escola, que, depois de ter, durante muitos anos, descrito a Primavera aos seus alunos entre as quatro paredes da sua sala de aula cuidadosamente calafetada, se decide enfim, no final da sua carreira, a sair ao ar livre e, não reconhecendo a Primavera, fica furioso - e esforça-se por demonstrar que a Primavera, depois de muito considerar, não é a Primavera, mas uma grande desordem da natureza, em contradição com todas as leis da história natural. É mesmo muito bom que os trabalhadores escutem as vozes da Primavera mais cedo do que as dos pedantes mais autorizados!
Quanto a nós, discípulos de Marx, continuamos convencidos, como os trabalhadores alemães, que a Primavera da revolução foi executada em pleno acordo com as leis da natureza social, assim como com as da teoria marxista, porque o marxismo não é um relógio supra-histórico, mas antes uma análise social das vias e dos meios do processo histórico, tal como se desenrola na realidade.
Kremlin, 12 de Março de 1919
Leon Trotski
Prefácio de 1922
Leon Trotsky
Prefácio à edição russa, A Revolução de 1905, 12 de janeiro de 1922
Primeira Edição: 1907 como parte de Our Revolution ; 1909 em Alemão; 1922, primeira edição integral, revisada, na Rússia. A tradução em português toma como base a edição revisada pelo autor em 1922, preparada para a reedição de A revolução de 1905.
Fonte: A revolução de 1905. Global Editora. (págs. 13 - 18)
Os acontecimentos de 1905 constituíram um vigoroso prólogo do drama revolucionário de 1917. Durante alguns anos, enquanto triunfava a reação, o ano de 1905 nos parecia como um todo: a revolução russa. Atualmente perdeu esse caráter independente, sem deixar de manter integralmente seu próprio significado histórico. A revolução de 1905 surgiu diretamente da guerra russo-japonesa, assim como a revolução de 1917 foi a conseqüência direta do grande massacre imperialista. Dessa maneira, tanto nas origens quanto no desenvolvimento, o prólogo continha em seu bojo todos os elementos do drama histórico de que hoje somos testemunhas e atores. No entanto, esses elementos apareciam no prólogo de forma sintética, não totalmente desenvolvidos. Todas as forças comprometidas na luta de 1905 estão agora melhor iluminadas pela luz dos acontecimentos de 1917. O Outubro Vermelho, como costumávamos chamá-lo então, no espaço de doze anos transformou-se em outro Outubro, incomparavelmente mais poderoso e vitorioso.
Nossa grande vantagem de 1905 foi o fato de que, ainda durante essa fase do prólogo revolucionário, nós, os marxistas, já contávamos com o método científico de compreensão dos processos históricos. Isso nos permitiu entender aquelas relações que o processo material da história só revelava como uma série de indícios. As caóticas greves que em 1903 estouraram no sul da Rússia nos tinham fornecido o material necessário para entender que uma greve geral do proletariado, e sua posterior transformação numa insurreição armada, se tornariam o método fundamental da revolução russa. Os acontecimentos de 9 de janeiro, viva confirmação desse prognóstico, exigiram que a questão do poder revolucionário fosse considerada de maneira concreta. A partir desse momento, a questão da natureza da revolução russa e da sua dinâmica interna de classe se tornou um tema candente entre os social-democratas russos da época.
As contradições entre um governo dos trabalhadores e uma esmagadora maioria e camponeses num país atrasado só poderiam ser resolvidas em escala internacional, nos limites de uma revolução proletária mundial. Uma vez superadas as estreitas fronteiras democrático-burguesas da revolução russa – em virtude da necessidade histórica – o proletariado vitorioso também se veria obrigado a superar suas finalidades nacionais, de maneira tal que teria que lutar conscientemente para que a revolução russa se transformasse no prólogo de uma revolução mundial.
Apesar dos doze anos transcorridos, essa análise foi completamente confirmada. A revolução russa não poderia culminar num regime democrático-burguês: tinha que entregar o poder à classe trabalhadora. Em 1905, a classe operária era ainda demasiado fraca para tomar o poder, mas os acontecimentos posteriores a obrigaram a ganhar força e maturidade, não no contexto de uma república democrática-burguesa, mas no movimento tzarista de junho. O proletariado chegou ao poder em 1917 com a ajuda da experiência adquirida pela geração de 1905. Por isso, os jovens trabalhadores de hoje devem ter acesso àquela experiência e estudar, em conseqüência a história de 1905.
Como apêndice à primeira parte deste livro, decidi incluir dois artigos: um deles, referente ao livro de Tcherewanin, foi publicado na revista de Kautsky, Neue Zeit, em 1908; o outro, dedicado ao desenvolvimento da teoria da revolução permanente e a uma polêmica com os representantes da opinião que dominava então a esse respeito dentro da social-democracia russa, foi publicado (creio que em 1909), numa revista do partido polonês, cujos inspiradores eram Rosa Luxemburgo e Leo Jogiches. Parece-me que esses artigos facilitarão os leitores a se orientaram quanto ao debate entre os social-democratas russos durante o período imediatamente posterior à primeira revolução, como também lançarão nova luz sobre certos problemas extremamente importantes do presente. A tomada do poder em outubro de 1917 não foi, de forma alguma, uma improvisação, como se sentiu inclinado a acreditar o cidadão comum; a nacionalização de fábricas e empresas pela vitoriosa classe operária não foi, de forma alguma, um "erro "do governo dos trabalhadores que, segundo se diz, não conseguiu escutar oportunamente a voz de advertência dos mencheviques. Esses assuntos foram discutidos e tiveram solução de princípio durante um período de quinze anos.
O debate sobre o caráter da revolução russa tinha ultrapassado – inclusive durante aquele período – os limites da social-democracia russa e atraído a atenção dos principais dirigentes do socialismo mundial. A concepção menchevique da revolução burguesa foi exposta mais conscientemente, isto é, com menor sorte e maior candura no livro de Tcherewanin. Quando apareceu, os oportunistas alemães o acolheram com júbilo. Por sugestão de Kautsky escrevi uma resenha do livro de Tcherewanin na Neue Zeit. Naquela ocasião, o próprio Kautsky estava plenamente identificado com meus pontos de vista. Como Mehring (já morto), adotou o ponto de vista da revolução permanente. Agora, Kautsky pretende juntar-se, com efeito retroativo, aos critérios dos mencheviques. Tenta justificar sua posição atual, atenuando a que tinha então. Mas essa falsificação, que satisfaz às necessidades de uma consciência teórica pouco clara, encontra obstáculos em documentos impressos. O que Kautsky escreveu no primeiro período – realmente o mais valioso – de sua atividade científica e literária (sua resposta ao socialista polonês Ljusnia, seus estudos sobre os operários russos e americanos, sua resposta ao questionário de Plekhanov referente ao caráter da revolução russa, etc.) foi e continua sendo uma impiedosa rejeição do menchevismo e uma total justificativa teórica das táticas políticas adotadas em seguida pelos bolcheviques, a quem os obstinados e renegados, liderados por Kautsky, acusam de aventureiros, demagogos e de bakuninistas.
Como terceiro apêndice incluo o artigo "A luta pelo poder", publicado em 1915 no jornal russo Nashe Slovo , editado em Paris, que apresenta a idéia de que aquelas relações políticas que foram claramente delineadas na primeira revolução devem encontrar seu apogeu e complemento na segunda.
Faltou a este livro clareza na questão da democracia formal, como faltou a todo o movimento que descreve. Isso não é de admirar: dez anos depois, em 1917, nosso partido ainda não tinha totalmente clara sua posição sobre essa questão. Mas tal ambigüidade, ou falta de total acordo, não tem nada a ver com questões de princípios. Em 1917 estávamos infinitamente afastados da mística da democracia; não considerávamos o progresso da revolução como a colocação em marcha de certas normas democráticas absolutas, mas como uma guerra de classes que, por necessidades temporárias, devia usar as palavras de ordem e as instituições da democracia. Naquela ocasião, lançávamos com determinação a palavra de ordem da tomada do poder pela classe trabalhadora e deduzíamos a inevitabilidade dessa tomada do poder, não a partir das oportunidades estatísticas de eleições "democráticas "mas da correlação de forças entre as classes.
Inclusive em 1905, os trabalhadores de São Petersburgo chamavam seu soviete de governo proletário. O nome se tornou comum e foi totalmente coerente com o programa de luta para a tomada do poder pela classe operária. Ao mesmo tampo, opusemos ao tzarismo um programa amplo de democracia política (sufrágio universal, república, milícia, etc.). Certamente não poderíamos ter agido de outra maneira. A democracia política é uma fase essencial na evolução das massas trabalhadoras, com esta importante ressalva: em alguns casos as massas trabalhadoras podem permanecer nessa fase durante várias décadas, enquanto, em outros, a situação revolucionária pode permitir que as massas se libertem dos preconceitos da democracia política ainda antes de suas instituições terem nascido.
O regime de governo dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques (março-outubro de 1917) comprometeu totalmente a democracia ainda antes que esta tivesse tempo de ser colocada em algum molde burguês-republicano. Embora naquele momento inscrevêssemos em nosso estandarte a palavra de ordem "todo poder aos sovietes", ainda apoiávamos formalmente as palavras de ordem da democracia, posto que éramos incapazes de dar às massa (ou a nós mesmos) uma resposta definitiva a respeito do que ocorreria se a engrenagem das rodas da democracia formal fracassasse na tentativa de se ajustar com a do sistema soviético. Quando escrevi este livro e também muito depois, durante o período do governo Kerenski, a tarefa essencial consistia, para nós, na tomada real do poder pela classe operária. O aspecto formal e legal desse processo ocupava o segundo o terceiro plano e não nos demos ao trabalho de desentranhar as contradições formais num momento em que devíamos encarar a luta para superar obstáculos materiais.
A dissolução da Assembléia Constituinte foi a conquista revolucionária de um objetivo que também poderia ter sido alcançado mediante o adiamento ou a preparação das eleições conforme as necessidades da revolução. Mas foi precisamente essa atitude peremptória quanto aos aspectos legais dos meios de luta que tornou inelutavelmente agudo o problema do poder revolucionário; por sua vez, a dissolução da Assembléia Constituinte pelas forças armadas do proletariado exigia uma total reconsideração das relações entre a democracia e a ditadura. Em última análise, isso representou um benefício tanto teórico quanto prático para a Internacional dos Trabalhadores.
A história desse livro, muito sinteticamente, é a seguinte: foi escrito em Viena, em 1908-1909, para uma edição alemã que apareceu em Dresden. A edição alemã incluía alguns capítulos de meu livro russo Nossa revolução (1907), consideravelmente modificados e adaptados para o leitor estrangeiro. A maior parte do livro foi escrita especialmente para a edição alemã. Agora, vi-me obrigado a reconstruir o texto, em parte baseado em fragmentos do manuscrito russo que ainda existe, e em parte por meio de uma nova tradução do alemão. Nessa última tarefa, recebi importante ajuda do camarada Ruhmer, que realizou seu trabalho com extremo cuidado e consciência. Revisei todo o texto e espero que o leitor não se veja assaltado por inumeráveis equívocos, deslizes, erros tipográficos e de todo tipo, que são hoje em dia uma característica de nossas publicações.
L. Trotsky
Moscou, 12 de janeiro de 1922.
Introdução
A revolução que se produziu na Rússia constituiu uma surpresa para todo o mundo, exceto para os social-democratas. O marxismo, desde há muito tempo tinha previsto que a revolução russa sairia inevitavelmente do conflito entre o desenvolvimento do capitalismo e as forças do absolutismo ossificado. O marxismo apreciou antecipadamente o caráter social da futura revolução russa. Chamando a esta revolução uma revolução burguesa, o marxismo sublinhou que as tarefas objetivas imediatas da revolução consistiam em criar "condições normais para o desenvolvimento da sociedade burguesa tomada como um todo".
Foi demonstrado, a ponto de tornar qualquer discussão ou nova prova inúteis, que o marxismo tinha razão em tudo isto. Mas os marxistas devem agora enfrentar uma tarefa de natureza diferente: é necessário, analisando o mecanismo interno da revolução, descobrir as possibilidades que ela apresenta no seu desenvolvimento. Seria um erro estúpido contentarmo-nos em identificar a nossa revolução com os acontecimentos de 1789-1793 ou de 1848. As analogias históricas de que vive e se alimenta o liberalismo não podem substituir a análise social.
A revolução russa reveste um caráter absolutamente especial, que resulta da tendência particular de todo o nosso desenvolvimento histórico e social, e abre-nos perspectivas históricas absolutamente novas.
Capítulo I
Particularidades do desenvolvimento histórico da Rússia
Se compararmos o desenvolvimento social da Rússia com o dos outros países da Europa - agrupando estes últimos num mesmo capítulo, do ponto de vista do que há de comum na sua história, e que o distingue da história da Rússia -, poderemos dizer que a principal característica do desenvolvimento social da Rússia são a lentidão e o seu caráter primitivo.
Não insistiremos aqui nas causas naturais deste caráter primitivo, mas o fato, em si, é indubitável: a vida social russa edificou-se sobre as mais pobres e as mais primitivas bases econômicas.
O marxismo ensina que o desenvolvimento das forças produtivas determina o processo histórico-social. A formação das corporações econômicas, das classes e dos estados só é possível quando este desenvolvimento atinge um certo nível. A diferenciação em classes e em estados, que é determinada pelo desenvolvimento da divisão do trabalho e pela criação de funções sociais mais especializadas, supõe que a parte da população que é empregada na produção material imediata produz um sobreproduto com relação ao que consome; é só apropriando-se deste sobreproduto que podem elevar-se e tomar forma as classes não-produtoras. Além disso, a divisão do trabalho entre as classes produtoras só é possível quando a agricultura atinge um grau de desenvolvimento suficiente para poder assegurar o abastecimento em produtos agrícolas da população não agrícola. Estas proposições fundamentais do desenvolvimento social tinham já sido formuladas claramente por Adam Smith.
É por isto, embora o período de Novgorod da nossa História coincida com o início da Idade Média na Europa, que a lentidão do desenvolvimento econômico, resultante das condições naturais e históricas (situação geográfica menos favorável, população dispersa), não podia deixar de travar o processo de formação das classes e de lhe dar um caráter mais primitivo.
É difícil dizer que forma teria tomado o desenvolvimento social da Rússia sob a exclusiva influência das suas tendências internas se se tivesse mantido isolada. Basta dizer que isso não aconteceu. Mas a vida social russa, edificada sobre determinados fundamentos econômicos internos, não deixou de sofrer a influência e mesmo a pressão do meio exterior histórico-social.
Ora, a economia da Rússia encontrava-se já suficientemente desenvolvida par impedir que se produzisse a primeira eventualidade. O Estado não se afundou, mas começou a crescer sob a terrível pressão das forças econômicas.
Assim, embora a Rússia estivesse rodeada de inimigos por todos os lados, não era aqui ainda que residia o fator principal. De fato, isso aplicar-se-ia a qualquer outro país da Europa, excetuando talvez a Inglaterra. Mas, na luta pela existência que sustentavam uns contra os outros, estes Estados dependiam de bases econômicas mais ou menos idênticas e o seu desenvolvimento econômico não se encontrava, portanto, submetido a uma pressão exterior tão poderosa.
A luta contra os Tártaros da Criméia e os Tártaros Nogaï exigiu os maiores esforços; mas, naturalmente, não tão grandes como os que exigiu a guerra dos Cem Anos entre a França e a Inglaterra. Não foram os Tártaros que obrigaram a velha Rússia a introduzir as armas de fogo e criar os regimentos permanentes de Streltsy; nem foram eles que, mais tarde, a obrigaram a formar uma cavalaria nobre e forças de infantaria, mas a pressão exercida pela Lituânia, pela Polônia e pela Suécia.
Esta pressão exercida por uma parte da Europa ocidental levou o Estado Russo a absorver uma fração excepcionalmente elevada do sobreproduto, isto é, a viver à custa das classes privilegiadas em via de constituição, o que retardou ainda mais o desenvolvimento. Mas isto não é tudo. O Estado, fundado sobre o "produto necessário" do camponês, privou-o da sua subsistência, levando-o a fugir da terra, na qual ainda não tinha tido tempo de se estabelecer, e assim foi travado o crescimento da população e o desenvolvimento das forças produtivas. Desta maneira, à medida que o Estado absorvia uma parte desproporcionada do sobreproduto, entravava a diferenciação, já de si lenta, entre os estados; e na medida em que retirava uma parte importante do produto necessário, destruía as próprias bases da produção primitiva das quais dependia.
Mas, para poder existir, funcionar, e, antes de tudo e por conseqüência, apropriar-se da parte do produto social que lhe era necessário, o Estado necessitava de uma organização hierárquica dos estados. É por isto que, minando os seus próprios fundamentos econômicos, o Estado esforçava-se, ao mesmo tempo, através de medidas governamentais, por acelerar o desenvolvimento, e - como qualquer outro Estado - por aproveitar-se do desenvolvimento dos "estados".
Miliukov, historiador da cultura russa, vê aqui um contraste absoluto com a história da Europa ocidental. Mas não é assim.
A monarquia dos Estados da Idade Média, que se tornou um regime de absolutismo burocrático, era uma forma de Estado destinada à consolidação de interesses e de relações sociais determinadas. Mas esta forma de Estado, uma vez desenvolvida, tinha os seus interesses próprios (os da dinastia, da corte, da burocracia) que entravam em conflito, não só com os interesses dos estados inferiores, mas também com os estados mais elevados. Os estados dominantes, que constituíam o tabique, socialmente indispensável, entre as massas do povo e a organização do Estado, exerciam pressão sobre esta última e faziam dos seus próprios interesses o conteúdo da atividade prática do Estado. Contudo, o poder de Estado, como força independente, considerava também do seu próprio ponto de vista os interesses dos estados mais elevados e resistia às suas aspirações e tentava submetê-los. A história real das relações entre o Estado e os estados desenvolveu-se ao longo das linhas resultantes, determinadas pela relação das forças.
Foi um processo fundamentalmente idêntico que se desenrolou na Rússia. O Estado esforçou-se por utilizar o desenvolvimento dos grupos econômicos a fim de o subordinar aos seus próprios interesses especializados, financeiros e militares. Os grupos econômicos, dominantes, por seu lado, esforçavam-se, ao longo do seu desenvolvimento, por utilizar o Estado para consolidar as suas vantagens sob a forma de privilégios de estados.
A resultante deste jogo das forças sociais foi bastante mais favorável ao poder de Estado, do que na Europa ocidental. A troca de serviços, à custa das massas trabalhadoras, entre o poder de Estado e os grupos sociais superiores, que encontra a sua expressão na distribuição dos direitos e das obrigações, dos encargos e dos privilégios, era, na Rússia, menos vantajosa para a nobreza e para o clero do que nas monarquias medievais européias.
Isto está fora de dúvida. Mas exagera-se consideravelmente e perde-se todo o sentido das proporções quando se sustenta, como faz Miliukov, que teriam sido os "estados" no Ocidente que criaram o Estado, mas na Rússia, pelo contrário, foi o Estado que criou os "estados" no seu próprio interesse.
Os estados não podem ser criados pela ação do Estado, pela lei. Antes que este ou aquele grupo social possa, com a ajuda do poder de Estado, tomar a forma de um estado privilegiado, deve ter-se desenvolvido economicamente com todas as suas vantagens sociais. Os estados não podem ser fabricados de acordo com uma hierarquia pré-estabelecida ou à ordem da Legião de Honra. O poder de Estado só pode apoiar, com todos os seus recursos, o processo econômico elementar que dá origem a formações econômicas mais elevadas.
Já o dissemos acima: o Estado russo consumia uma porção comparativamente grande das forças da nação, entravando assim o processo de cristalização social, mas este processo era-lhe necessário para os seus próprios objetivos. Era pois natural que, sob a influência e a pressão do meio ocidental mais diferenciado, pressão transmitida pela organização militar-estatal, o Estado, por sua vez, se esforçasse por acelerar o desenvolvimento da diferenciação social sobre fundamentos econômicos primitivos.
Além do mais, era natural que o Estado, constrangido pela fraqueza das formações econômico-sociais, a recorrer a um tal "forçar" do seu desenvolvimento, tivesse tentado utilizar o poder preponderante adquirido no exercício do seu papel de tutor para dirigir para seu proveito o desenvolvimento das classes elevadas. Mas quando o Estado pretendia obter maiores resultados nesta via, deparava então com a sua própria franqueza, com o caráter primitivo da sua própria organização, que era determinado, sabemo-lo, por uma estrutura social primitiva.
Assim, o Estado russo, construído sobre o fundamento da economia russa, foi lançado para a frente pela pressão exercida sobre ele pelos seus vizinhos, os Estados amigos e sobretudo os Estados inimigos que se tinham formado em países economicamente mais desenvolvidos. A partir de um certo momento, sobretudo desde o fim do século XVII, o Estado procura por todos os meios acelerar a evolução econômica natural. Novos ramos do artesanato, máquinas e atelieres, produção em grande escala, capital, parecem ser de algum modo enxertos artificiais na árvore da economia natural. O capitalismo aparece como criado pelo Estado.
Deste ponto de vista, poder-se-á mesmo dizer que toda a economia russa é uma criação artificial do Estado, que ela foi enxertada artificialmente na árvore natural da ignorância nacional.
Como a economia russa, o pensamento russo desenvolveu-se sob a pressão direta do pensamento mais avançado e da economia mais desenvolvida do Ocidente. Ao caráter de "economia natural" da economia russa correspondia um desenvolvimento medíocre do comércio externo: foi pois essencialmente sob a égide do Estado que se encontraram colocadas as relações com os outros países, e a influência destes manifestou-se numa luta encarniçada pela existência do Estado antes de encontrar a sua expressão numa competição econômica direta.
Foi por intermédio do Estado que as economias ocidentais influenciaram a economia russa. A fim de poder sobreviver no meio de países hostis e melhor armados, a Rússia viu-se constrangida a construir fábricas, a organizar escolas navais, a editar manuais sobre a arte das fortificações, etc. Mas se o curso geral da economia interna deste imenso país não tivesse sido nesta direção, se o desenvolvimento das condições econômicas não tivesse criado a necessidade da ciência pura e aplicada, todos os esforços do Estado teriam sido vãos. A economia nacional que, pelo seu próprio movimento, tendia a transformar-se, não respondia senão a medidas governamentais que correspondiam às suas próprias tendências, e só na medida em que elas lhes correspondiam. A história da indústria russa, do sistema monetário russo e do crédito do Estado russo constitui a melhor demonstração possível da justeza deste ponto de vista.
"A maior parte dos ramos industriais (metalurgia, refinarias de açúcar, petróleo, destilarias, a própria indústria têxtil), escreve o professor. Mendéléev, nasceu sob a influência direta de medidas governamentais, por vezes mesmo com a ajuda de importantes subsídios do governo, mas sobretudo graças ao fato de o governo adotar sempre, conscientemente, uma política protecionista. Sob o reinado de Alexandre, o governo inscreveu abertamente esta política na sua bandeira. Aceitando sem reservas aplicar à Rússia os princípios do protecionismo, os círculos governamentais mostraram ser mais avançados do que o conjunto das nossas classes educadas".
O douto panegirista do protecionismo industrial esquece-se de acrescentar que a política do governo não era de maneira nenhuma guiada pela preocupação de desenvolver as forças da indústria, mas por considerações fiscais e, por outro lado, militares e técnicas.
Foi por isto que a política protecionista se encontrou bastantes vezes em oposição não só com os interesses fundamentais do desenvolvimento industrial, mas também com os interesses privados dos vários grupos de homens de negócios. Foi assim que os proprietários de fiações de algodão declaravam abertamente que "são mantidos os direitos elevados sobre o algodão, não para encorajar a sua cultura, mas exclusivamente no interesse do fisco". De igual modo, quando da "criação" dos estados, o governo prosseguia antes de tudo a realização dos objetivos do Estado, e, ao "implantar" a indústria, a sua principal preocupação eram as exigências do Tesouro.
Contudo, não existe nenhuma dúvida de que, para a transplantação do sistema de produção das fábricas no solo russo, o papel da autocracia não foi menor.
No momento em que a sociedade burguesa, que se desenvolvia, começou a sentir a necessidade de instituições políticas semelhantes às dos países ocidentais, a autocracia dispunha de toda a força material dos Estados europeus. Ela repousava sobre um aparelho burocrático centralizado, sem nenhuma utilidade para estabelecer novas relações, mas apto a despender uma grande energia na execução de repressões sistemáticas.
A imensidão do país tinha sido superada graças ao telégrafo, que dá confiança aos atos da administração e assegura uma uniformidade relativa e rapidez na execução das suas decisões (em matéria de repressão). Os caminhos de ferro permitiam à autocracia transportar rapidamente as suas forças armadas de um extremo ao outro do país. Os governos da Europa pré-revolucionária não conheceram o caminho de ferro nem o telégrafo. O exército de que o absolutismo dispunha era colossal e, se ele se revelou ineficaz nas sérias provas da guerra contra o japão, era bastante eficaz para dominar no interior. Nem o governo da França anterior à grande Revolução, nem mesmo o de 1848, conheceram algo de semelhante ao exército russo de hoje.
Submetendo o país a uma extrema exploração através dos seus aparelhos militar e fiscal, o governo elevou o montante do seu orçamento anual até ao enorme número de dois mil milhões de rublos. Sustentado pelo seu exército e pelo orçamento, o governo da autocracia fez da Bolsa européia o seu ministro das finanças, de tal maneira que o contribuinte russo se tornou o seu tributário sem esperança.
Foi nestas condições que, nos dois últimos decênios do Século. XIX, o governo russo pôde aparecer ao mundo como uma organização colossal, militar, burocrática, fiscal e bolseira, com um poder invencível.
O poderio financeiro e militar da monarquia absoluta não assustou e não ofuscou somente a burguesia européia, mas também o liberalismo russo, que perdeu toda a confiança na possibilidade de obter satisfação numa prova aberta de força com o absolutismo. No poderio militar e financeiro do absolutismo parecia excluir qualquer oportunidade, embora mínima, de uma revolução russa.
Mas a realidade veio a mostrar exatamente o contrário.
Quanto mais um governo é centralizado, tanto mais é independente da sociedade e mais cedo se torna uma organização autocrática, colocada acima da sociedade. Quanto mais vastos são os recursos financeiros e militares de uma tal organização, mais tempo e mais frutuosamente pode continuar a sua luta pela existência. O Estado centralizado, com um orçamento de dois mil milhões de rublos, a sua dívida de oito mil milhões e o seu exército de numerosos milhões de homens armados, podia continuar a existir bastante tempo depois de ter deixado de satisfazer às necessidades mais elementares do desenvolvimento social; não só às necessidades mais elementares do desenvolvimento social; não só às necessidades da administração interna, mas até às de segurança militar, para as quais tinha sido formado na sua origem.
Quanto mais tempo se mantinha um tal estado de coisas, maior se tornava a contradição entre as necessidades do desenvolvimento econômico e cultural e a política do governo, cuja inércia tinha atingido o máximo. Depois do período das grandes reformas de remendos, que, longe de eliminarem as contradições, as fizeram ressaltar pela primeira vez com uma particular clareza, tornou-se psicologicamente ainda mais impossível o governo tomar, pelo seu próprio movimento, o caminho do parlamentarismo. A situação só oferecia à sociedade uma única saída para as contradições existentes: a acumulação, na caldeira do absolutismo, de uma quantidade suficiente de vapor para a fazer explodir.
Assim, o poder administrativo, militar e financeiro do absolutismo, que se devia manter, apesar do desenvolvimento social, bastante longe, como pensavam os liberais, de excluir a possibilidade de uma revolução, já não deixava outra saída; além disso, a revolução estaria destinada desde a origem, a tomar um caráter tanto mais radical quanto mais profundo era o abismo que separava o absolutismo da nação. O marxismo russo pode sentir-se orgulhoso por ter sido o único a explicar a direção deste desenvolvimento e a predizer as suas formas gerais, enquanto os liberais se moviam no "praticismo" mais utópico e os narodniki revolucionários viviam de fantasmagorias e acreditavam em milagres. Todo o desenvolvimento social anterior tornava a revolução inevitável.
Quais eram pois as forças motrizes desta revolução?
Capítulo II
Cidades e capital
As cidades russas são um produto bastante recente da história; mais precisamente, um produto dos últimos decênios. No fim do reinado de Pedro I, no primeiro quarto do século. XVIII, a população urbana representava um pouco mais de 328.000 pessoas, isto é 3% da população total do país. No fim do mesmo século, atingia o número de 1.301.000, isto é, 4,1% da população total. Em 1812, a população urbana elevava-se a 1.653.000 pessoas, ou 4,4% do total. Em meados do Século. XIX, não ultrapassava ainda o número de 3.482.000 pessoas, 7,8% do total. Por fim, o último recenseamento, em 1897, avaliava a população das cidades em 16.289.000 pessoas, aproximadamente 13% da população total.
Se nós considerarmos a cidade não só como uma unidade administrativa, mas como uma formação econômico-social, ser-nos-á necessário admitir que os números citados não representam um quadro exato do desenvolvimento urbano: a história do Estado russo mostra-nos numerosos exemplos em que cartas de foral foram dadas ou retiradas às cidades por causas que nada tinham a ver com uma apreciação científica. Estes números não mostram menos claramente a insignificância das cidades da Rússia anterior à reforma, e o seu crescimento febril durante a última década. Segundo os cálculos de Mikailovski, de 1885 a 1897, a população das cidades aumentara de 33,80%; aumentou pois duas vezes mais depressa do que a população russa no total, cujo crescimento era de 15,25%, e cerca de três vezes mais depressa do que a população rural, 12,7%. Se lhe acrescentarmos as vilas e aglomerados industriais, a rapidez de crescimento da população urbana (entenda-se toda a população não agrícola) torna-se ainda mais clara.
Entretanto, as modernas cidades russas não diferem somente das antigas pelo número dos seus habitantes, mas também pelo seu tipo social: são centros comerciais e industriais. A maior parte das nossas antigas cidades não desempenhava, praticamente, nenhum papel econômico; eram centros militares e administrativos ou fortalezas; os seus habitantes eram, sob esta ou aquela forma, funcionários do Estado e viviam à custa do Tesouro público; a cidade era, no geral, um centro administrativo, militar e fiscal.
Por outro lado, se outros, não funcionários, por motivos de segurança, residiam na área da cidade ou nos seus arredores, isso não os impedia de continuar a exercer os seus ofícios agrícolas. A maior cidade da antiga Rússia, Moscou, era, segundo Miliukov, unicamente "um palácio real"; uma parte considerável da população estava ligada à corte, de uma ou de outra maneira, como membros da comitiva do soberano, guardas ou criados.
Segundo o recenseamento de 1701, em cada 16.000 chefes de família, mais de 7.000, isto é, 44% do total, eram lavradores ou artesãos, e mesmo estes viviam na dependência do Estado e trabalhavam para o palácio. Dos restantes 9.000, 1.500 pertenciam ao clero, os outros à camada social dirigente.
Assim, as cidades russas, como as cidades dos regimes de despotismo asiático, contrariamente às cidades artesanais e mercantis da Idade Média européia, eram somente consumidoras. Nesse mesmo tempo, as cidades ocidentais estabeleciam em princípio, com melhor ou pior resultado, que os artesãos não tinham o direito de residir nas aldeias; as cidades russas nunca tentaram atingir tais objetivos. Onde estavam, pois, as manufaturas e as ocupações artesanais? No campo, ligadas à agricultura.
Em virtude do fraco nível econômico e dos impostos elevados do Estado, não pôde constituir-se qualquer acumulação de riqueza nem instituir-se qualquer divisão social do trabalho. Ao verão mais curto correspondiam ócios invernais mais longos do que no ocidente. Nestas condições, a manufatura nunca se separou da agricultura nem se concentrou nas cidades; continuou no campo, como ocupação auxiliar, ao lado da agricultura. Quando, na segunda metade do século. XIX, a indústria capitalista começou a desenvolver-se largamente, não encontrou à sua frente qualquer artesanato urbano, mas só pequenos artesãos de aldeia.
"Para um milhão e meio, no máximo, de operários de fábrica que há na Rússia, não há menos de quatro milhões de camponeses ocupados em trabalhos ao domicílio nas suas próprias aldeias e que continuam ao mesmo tempo a exercer a sua ocupação de agricultor. Eis a classe da qual saíram as fábricas européias, mas que, em grau algum, participou no estabelecimento das fábricas russas".
Bem entendido que o ulterior crescimento da população e da sua produtividade lançou as bases da divisão social do trabalho, o que se aplica também naturalmente ao artesanato urbano. Mas foi a grande indústria capitalista que se apropriou destas bases, graças à pressão econômica dos países avançados, se bem que os ofícios das cidades não tivessem tempo de se desenvolver.
Os quatro milhões de artesãos rurais constituíram a camada social cujos membros, na Europa, formaram o núcleo da população das cidades, entraram nas corporações como mestres ou como companheiros, e foram em seguida, cada vez mais, irradiados das corporações. Durante a grande Revolução, foi precisamente a classe dos artesãos que formou o núcleo da população dos bairros mais revolucionários de Paris. Este fato - a insignificância do nosso artesanato urbano - teve enormes conseqüências para a revolução russa.
O traço econômico essencial da cidade moderna é transformar as matérias primas fornecidas pelo campo. É por isso que, para a cidade, as condições de transporte são decisivas. Só os caminhos de ferro estão aptos a alargar suficientemente as fontes de abastecimento para que as massas humanas possam concentrar-se nas cidades. E é o crescimento da grande indústria que torna necessária a concentração da população. Numa cidade moderna, pelo menos numa cidade de alguma importância econômica e política, é a classe dos trabalhadores assalariados, fortemente diferenciada do resto dos cidadãos, que constitui o núcleo da população. E foi esta classe, ainda desconhecida, no essencial, durante a Revolução francesa, a destinada a tomar o papel decisivo na revolução russa.
O sistema industrial não se contenta em colocar o proletariado no primeiro plano, corta também as asas à democracia burguesa. Porque esta, quando das revoluções precedentes, tinha-se apoiado na pequena burguesia das cidades: artesãos, pequenos comerciantes, etc.
Um outro motivo do papel excepcional desempenhado pelo proletariado é que o capital russo é, em grandes proporções, de origem estrangeira. Foi por esta razão, segundo Kautski, que o proletariado cresceu bastante mais em número, força e influência que o liberalismo burguês.
O absolutismo contribuiu de diversas maneiras para colocar o país sob o jugo do capitalismo.
Em primeiro lugar, fez do camponês russo um tributário das Bolsas do mundo inteiro. A falta de capitais no país e a constante necessidade de dinheiro por parte do governo criaram um terreno favorável à conclusão de empréstimos estrangeiros usurários. Do reinado de Catarina II ao ministério de Witte e Dournovo, os banqueiros de Amsterdã, de Londres, de Berlim e de Paris procuraram sistematicamente transformar a autocracia numa colossal especulação bolseira. Uma parte considerável dos pretensos investimentos "internos", isto é, investimentos levados a cabo pelas instituições de crédito do próprio país, não se distinguia de qualquer maneira dos investimentos estrangeiros, porque eram, na realidade, cobertos por capitalistas estrangeiros.
O absolutismo, que tinha proletarizado e pauperizado o campesinato, cobrindo-o de impostos, transformou os milhões da Bolsa européia em soldados e em navios de guerra, em prisões e em caminhos de ferro. A maior parte destas despesas era, do ponto de vista econômico, absolutamente improdutiva. Uma enorme fração do produto nacional partia, sob a forma de lucros, para o estrangeiro, onde enriquecia e reforçava a aristocracia financeira européia.
Assim, os capitalistas financeiros europeus, cuja influência política, nos países de regime parlamentar, não cessou de aumentar durante os dez últimos anos e deixou para trás a dos capitalistas comerciais e industriais, fizeram do governo czarista o seu vassalo; mas não podiam nem queriam tornar-se parte integrante da oposição burguesa no interior das fronteiras russas. Inspiravam-se, nas suas simpatias e nas suas antipatias, em princípios estabelecidos pelos banqueiros holandeses Hopp e Ca. quando formulavam as condições do empréstimo concedido ao czar Paulo em 1798: "Os juros devem ser pagos sem qualquer consideração com as circunstâncias políticas".
A Bolsa européia estava mesmo diretamente interessada no suporte do absolutismo, porque nenhum outro governo poderia garantir uma tal taxa de lucro usurário. Mas o capital europeu não penetrava só na Rússia pelo canal dos empréstimos de Estado. As somas de dinheiro cujo pagamento absorvia uma boa parte do orçamento do Estado russo, regressava ao território russo sob a forma de capital comercial e industrial, atraído pelas riquezas naturais intactas do país, e especialmente pelas forças de trabalho de operários desorganizados que estavam ainda longe de adquirir o hábito de resistir ao capital.
O último período do "boom" industrial russo de 1893-1902 foi também um período de imigração acelerada do capital europeu. Assim, foi um capital que, como no passado, continuava largamente europeu, e cujo poder político tinha o seu lugar nos parlamentos francês e belga, que mobilizou a classe operária na Rússia.
Reduzindo ao estado de escravatura econômica este país atrasado, o capital europeu fazia os seus principais ramos de produção e os seus principais meios de comunicação ultrapassar toda uma série de etapas técnicas e econômicas intermediárias, pelas quais tinham sido forçadas a passar nos seus países de origem; mas quanto menos numerosos foram os obstáculos que encontrou na via da dominação econômica, tanto mais insignificante se revelou o seu papel político.
O absolutismo russo desenvolveu-se sob a pressão direta dos Estados ocidentais. Copiou os seus métodos de governo e a sua administração, muito antes que as condições econômicas internas permitissem a uma burguesia capitalista elevar-se. Numa época em que as cidades russas só representavam ainda um papel econômico absolutamente insignificante, o absolutismo russo dispunha já de um formidável exército permanente, de um aparelho fiscal e burocrático centralizado, e já estava irremediavelmente endividado com relação aos banqueiros europeus.
O capital ocidental irrompeu com a cooperação direta do absolutismo e transformou em poucos anos um grande número de cidades arcaicas em centros comerciais e industriais; criou mesmo, num curto lapso de tempo, novas cidades comerciais e industriais em lugares até aí absolutamente desabitados. Este capital apareceu freqüentemente sob a forma de grandes companhias por ações ao portador. Durante os dez anos do "boom" industrial de 1893-1902, o total do capital por ações aumentou de dois bilhões de rublos, enquanto, de 1854 a 1892, só tinha aumentado de 900 milhões. O proletariado encontrou-se imediatamente concentrado em massas enormes, enquanto só existia uma burguesia numericamente muito fraca, isolada do povo, semi-estrangeira, sem tradições históricas, e unicamente inspirada pela sede de lucro.
Capítulo III
1789-1848-1905
A História não se repete. Será conveniente comparar-se ainda e sempre a Revolução Russa com a grande Revolução Francesa mas nunca se pode fazer da primeira uma repetição da segunda. O século XIX não passou em vão.
O ano de 1848 difere já muito de 1789. Comparadas à grande revolução, as revoluções prussiana e austríaca surpreendem pela sua insignificância. Num sentido, tiveram lugar muito cedo, e noutro sentido, muito tarde.
É necessário à sociedade burguesa um gigantesco desenvolvimento de forças para regular radicalmente as suas contas com os senhores do passado; isto só é possível pela força da nação unânime, lançando-se contra o despotismo feudal, ou por um amplo desenvolvimento da luta de classes no seio da nação em luta pela sua emancipação.
No primeiro caso, que se realizou em 1789-1793, a energia nacional, comprimida pela vigorosa resistência da antiga ordem, dispendeu-se inteiramente na luta contra a reação; no segundo caso, que ainda não se produziu na história, e que, neste momento consideramos somente como uma possibilidade, é uma guerra de classe intestina, no seio da nação burguesa, que produz a energia efetivamente necessária para triunfar das forças obscuras da História.
A dura luta interior absorve uma grande quantidade de energia, priva a burguesia da possibilidade de tomar o papel de dirigente, empurra o seu adversário, o proletariado, para o primeiro plano, dá-lhe dez anos de experiência num mês, coloca-o à cabeça das tarefas e estende-lhe, estreitamente apertadas, as rédeas do poder. Esta classe resoluta, ignorando as dúvidas, dá um poderoso impulso aos acontecimentos.
Uma revolução pode ser levada a cabo por uma nação que se assemelha a um leão preparando-se a saltar, ou por uma nação que, no decurso da luta, se divide de maneira decisiva, a fim de libertar a sua melhor parte para o cumprimento das tarefas que é incapaz de cumprir como um todo. Encontram-se aqui dois conjuntos opostos de condições históricas que, na sua forma pura, só constituem, naturalmente, uma oposição lógica.
Neste caso, como freqüentemente, o meio termo é a pior das soluções. Mas foi este meio termo que teve lugar em 1848.
Vimos, no período heróico da História da França, uma burguesia esclarecida e ativa, ainda inconsciente das contradições que comportava a sua própria posição, a quem a História tinha imposto a tarefa de dirigir a luta por uma ordem nova, não só contra as instituições caducas em França, mas também contra as forças reacionárias de toda a Europa. Como conseqüência, a burguesia considerava-se em todas as suas frações, como o chefe da nação, juntava as massas para a luta, dava-lhes palavras de ordem e ditava-lhes uma tática para o combate.
A democracia cimentava com uma ideologia política a unidade da nação. O povo (pequeno-burgueses das cidades, camponeses e operários) elegia burgueses como deputados; e as instruções dadas a estes deputados pelos seus constituintes eram escritas na linguagem de uma burguesia que tomava consciência do seu papel de Messias.
Durante a própria revolução, os antagonismos de classes revelaram-se; mas subsistiu o poder de inércia na luta revolucionária para varrer do caminho os elementos mais conservadores da burguesia. Nenhuma camada foi rejeitada antes de ter transmitido a sua energia à camada que a seguiu. A nação prosseguiu como um todo a luta pelos seus objetivos, com métodos mais precisos e mais resolutos. Uma vez que as camadas superiores da burguesia rica, rompendo com o núcleo da nação que tinha entrado no movimento, se foram aliar a Luís XVI, as reivindicações democráticas da nação passaram a ser dirigidas contra esta burguesia, e isto conduziu ao sufrágio universal e à república como a forma lógica, inevitável, da democracia.
A grande Revolução foi verdadeiramente uma revolução nacional. E ainda mais a luta mundial da burguesia pela dominação, pelo poder, por uma vitória total, encontrou neste contexto nacional a sua expressão clássica.
O termo "jacobinismo" é atualmente uma expressão pejorativa na boca de todos os sábios liberais. O ódio da burguesia contra a revolução, o seu ódio pelas massas, o seu ódio pela força e pela grandeza da História que se faz na rua, concentra-se neste grito de medo e de indignação: "É jacobinismo!". Nós, o exército mundial do comunismo, regulamos, de há muito, as nossas contas com o jacobinismo. Todo o movimento proletário internacional atual formou-se e reforçou-se na luta contra as tradições do jacobinismo, submetemos as suas teorias à crítica, denunciamos os seus limites históricos, o seu caráter socialmente contraditório e utópico, a sua fraseologia, rompemos com as suas tradições, que, durante decênios, tinham sido olhados como a herança sagrada da revolução.
Mas nós defendemos o jacobinismo contra os ataques, as calúnias, as injúrias estúpidas do liberalismo anêmico. A burguesia traiu vergonhosamente todas as tradições da sua juventude histórica e os seus atuais mercenários desonram os túmulos dos seus antepassados e desprezam as cinzas dos seus ideais. O proletariado tomou sob a sua proteção a honra do passado revolucionário da burguesia. O proletariado, por mais radicalmente que possa ter rompido na prática com as tradições revolucionárias da burguesia, preserva-as pelo menos como uma herança sagrada, herança de grandes paixões de heroísmo e de iniciativa, e o seu coração bate em uníssono com as palavras e atos da Convenção jacobina.
O que é que tornou o liberalismo atraente senão as tradições da grande Revolução Francesa? Quando é que a democracia burguesa atingiu um tal cume e iluminou uma tal chama no coração do povo senão durante o período da democracia jacobina, "sans-culotte", terrorista, robespierrista, de 1793?
O que é que, a não ser o jacobinismo, tornou e torna ainda possível às muitas variedades do radicalismo burguês, manter sob a sua influência a esmagadora maioria do povo e mesmo do proletariado francês, numa época em que, na Alemanha e na Áustria, o radicalismo burguês terminou a sua breve história na mesquinhez e na vergonha?
O quê, senão a atração do jacobinismo, com a sua ideologia política abstrata, o seu culto da república sagrada, as suas declarações triunfantes, que, ainda hoje, alimentam os radicais e os radicais-socialistas franceses, como Clemenceau, Millerand, Briand e Bourgeois, e todos esses políticos que sabem, tão bem como os junkers de Guilherme II, imperador pela graça de Deus, defender os fundamentos da sociedade burguesa?
Ele são desesperadamente invejados pelos democratas burgueses dos outros países e, contudo, não se privam de lançar calúnias sobre a fonte das suas vantagens políticas: o heróico jacobinismo.
Mesmo após tantas esperanças desiludidas, o jacobinismo continua, com a sua tradição na memória do povo.
O proletariado exprimiu o seu futuro durante muito tempo na linguagem de passado. Em 1840, meio século depois do governo da Montanha, oito anos antes das jornadas de Junho de 1848, Heine visitou várias oficinas nos arredores de Saint-Marcel, e observou o que liam os operários, "a parte mais sã das classes inferiores". "Aí encontrei", escreveu ele num jornal alemão, "nas edições de vinte cêntimos, vários discursos de Robespierre assim como brochuras de Marat; a História da Revolução de Cabet, os remoques perniciosos de Cormenin, os livros de Buonarotti, de Babeuf e a Conspiração dos Iguais, tudo produções que exalavam um odor a sangue. Um dos frutos desta semente é que, mais cedo ou mais tarde, corre-se o risco de aparecer uma república em França".
Em 1848, a burguesia era já incapaz de desempenhar um tal papel. Ela não queria nem podia empreender a liquidação revolucionária do sistema social que lhe barrava o caminho do poder. Sabemos agora porque é que isto era assim. O seu objetivo - e ela tinha perfeita consciência disso - era introduzir no velho sistema as garantias necessárias, não à sua dominação política, mas a uma partilha do poder com as forças do passado. Tal era a sabedoria mesquinha da burguesia francesa, instruída pela experiência, corrompida pela traição, amedrontada pelos seus malogros. Ela não se mostrou só incapaz de conduzir as massas ao assalto da velha ordem, apoiou-se nesta ordem para melhor fazer recuar as massas que a pressionavam.
A burguesia francesa conseguiu levar a bom termo a sua grande Revolução. A sua consciência era a consciência da sociedade, e nenhuma instituição podia ser instaurada sem ter primeiro passado pela sua consciência enquanto objetivo a realizar, enquanto problema para a sua imaginação política. Recorria muitas vezes a atitudes teatrais a fim de dissimular perante si mesma, os limites do seu próprio mundo burguês -- mas ia para a frente.
A burguesia alemã, desde o princípio, bem longe de fazer a revolução, dissociou-se dela. A sua consciência dirigia-se contra as condições objetivas da sua própria dominação. A revolução não podia ser feita por ela, mas só contra ela. As instituições democráticas representavam, no seu espírito, não um objetivo pelo qual combatesse, mas uma ameaça para o seu bem-estar.
Era necessária, em 1848, uma classe apta a dirigir os acontecimentos sem a burguesia, uma classe pronta, não só a coagir a burguesia a ir para a frente, mas também, no momento decisivo, a desembaraçar o terreno do seu cadáver político. Nem a pequena burguesia nem o campesinato poderiam preencher esta tarefa.
A pequena burguesia urbana não era só hostil ao regime da véspera, como ao de amanhã. Ainda mergulhada em relações medievais, mas já incapaz de resistir à "livre" indústria, mantendo ainda a sua supremacia nas cidades, mas cedendo já terreno perante a média e a grande burguesia apodrecida por preconceitos, atordoada pelo tumulto dos acontecimentos, explorada e exploradora, voraz e impotente na sua voracidade, a pequena burguesia desamparada não podia controlar os formidáveis acontecimentos do dia.
O campesinato encontrava-se, ainda mais, completamente privado de iniciativa política. Acorrentado durante séculos, miserável e furibundo, sofrendo simultaneamente todos os aspectos da antiga exploração e de todos os da nova, o campesinato constituiu, numa certa época, um vasto reservatório de forças revolucionárias; mas, desorganizado, disseminado, isolado dos centros nervosos da política e da cultura que são as cidades, mergulhado num estado de estupor, limitado no seu horizonte aos confins das respectivas aldeias, indiferente a tudo o que a cidade pensava, o camponês não podia representar o papel de força dirigente. Logo que se via liberto do fardo das obrigações feudais, o campesinato apaziguava-se e mostrava uma negra ingratidão com relação às cidades que se tinham batido pelos seus direitos. Os camponeses emancipados tornavam-se fanáticos da "ordem".
Aos intelectuais democratas faltava a força de uma classe. Durante certo tempo, este grupo fizera uma espécie de corte política à sua irmã mais velha, a burguesia liberal, depois abandonara-a no instante crítico para revelar a sua própria fraqueza. Debatia-se em contradições não resolvidas e espalhava a sua própria confusão onde quer que fosse.
O proletariado era demasiado fraco; faltava-lhe organização, experiência e conhecimento. O capitalismo desenvolvera-se o suficiente para tornar necessária a abolição das antigas relações feudais, mas não o bastante para colocar em primeiro plano, como força política decisiva, a classe operária, nascida das novas relações industriais. Mesmo no quadro nacional da Alemanha, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia tinha ido bastante longe para que esta pudesse assumir sem temor o papel de dirigente da nação, e não o bastante para permitir que o proletariado o assumisse. Evidentemente, o conflito que se desenrolava no interior da revolução preparava o proletariado para a independência política, mas, ao mesmo tempo, enfraquecendo a energia e a unidade da ação, provocava um estéril dispêndio de energias e o obrigava a revolução a marcar passo, após os seus primeiros êxitos, para, finalmente, bater em retirada sob os golpes da reação.
É na Áustria que o caráter inacabado e incompleto, revestido pelas relações políticas neste período da revolução, aparece da maneira mais clara e mais trágica.
O proletariado de Viena deu provas, em 1848, de um admirável heroísmo e de uma energia inesgotável. Movido por um confuso instinto de classe, faltando-lhe uma concepção geral dos objetivos da luta, tateando de uma palavra de ordem para outra, lançou-se sempre de novo no combate. Coisa bastante notável, a direção do proletariado passou pelas mãos dos estudantes, o único grupo democrático ativo que, em virtude da sua própria atividade, desfrutava de uma grande influência sobre as massas e, por conseguinte, sobre os acontecimentos. Sem a menor dúvida, os estudantes sabiam bater-se corajosamente nas barricadas e fraternizar honrosamente com os operários, mas eram absolutamente incapazes de dirigir os progressos de uma revolução que lhes tinha entregado a "ditadura" da rua.
O proletariado, desprovido de organização, de experiência política e de uma direção independente, seguida os estudantes. A cada fase crítica dos acontecimentos, os operários ofereciam aos "senhores que trabalhavam com a cabeça" a ajuda dos "que trabalhavam com as mãos". Os estudantes, tanto chamavam os operários ao combate, como lhes barravam os caminhos de acesso dos arredores para a cidade. Por vezes, serviam-se da sua autoridade política, apoiando-se ao mesmo tempo nas armas da sua legião acadêmica, para proibir os operários de avançarem com as suas próprias reivindicações independentes. Esta é uma forma clara e clássica de ditadura revolucionária bem intencionada sobre o proletariado.
A que conduziram, pois, estas relações sociais? A isto: em 26 de Maio, quando os operários de Viena, respondendo ao apelo dos estudantes, se prepararam para resistir ao desarmamento da sua legião; quando toda a população da capital, cobrindo toda a cidade de barricadas, deu provas de uma notável energia e se apoderou de Viena; quando toda a Áustria se aliou e Viena em armas e a monarquia fugiu e se desvaneceu; quando, sob pressão do povo, as últimas tropas foram retiradas da capital; quando o governo da Áustria se demitiu sem designar sucessor -- não se encontrou qualquer força política para tomar o leme!
A burguesia liberal recusou-se a tomar um poder que tinha sido conquistado por tais processos de arruaceiros; ela só sonhava com a volta do imperador, que se tinha refugiado no Tirol.
Os operários tinham bastante bravura para vencer a reação, mas não bastante organização nem consciência para ocupar o seu lugar. Existia um poderoso movimento operário, mas a luta de classe proletária, com os seus objetivos políticos precisos, não estava ainda suficientemente desenvolvida. O proletariado era incapaz de tomar o leme, não podia cumprir esta grande tarefa histórica, e os democratas burgueses, como acontece freqüentemente, esquivavam-se no momento decisivo.
Obrigar estes desertores a cumprir as suas obrigações não teria exigido do proletariado menos energia e maturidade do que as necessárias para estabelecer um governo operário provisório.
A conseqüência de tudo isto foi uma situação da qual um contemporâneo poderia dizer com pertinência: "A república estabeleceu-se em Viena mas, infelizmente, ninguém se apercebeu disso". Esta república, da qual ninguém se apercebeu, abandonou a cena por um longo período, deixando lugar aos Habsburgos. Uma ocasião falhada raramente volta a encontrar-se.
Da experiência das revoluções húngara e alemã, Lassalle tirou a conclusão de que, de ora avante, as revoluções só poderiam apoiar-se na luta de classe do proletariado.
Eis o que ele escreveu a Marx, numa carta datada de 24 de Outubro de 1849:
"A Hungria tinha mais possibilidades de conduzir a sua luta a uma saída vitoriosa do que qualquer outro país. Isto, entre outras razões, porque neste país o partido não estava dividido nem exposto a violentos conflitos, como na Europa ocidental; e porque aí a revolução tomou, em larga medida, a forma de uma luta pela independência nacional. No entanto, a Hungria foi vencida, e vencida precisamente em virtude da traição do partido nacional.
"Estes acontecimentos e a história da Alemanha em 1848-1849 levam-me a concluir que nenhuma revolução poderá vencer na Europa se não se afirmar puramente socialista desde o início. Nenhuma luta poderá ser vitoriosa se as questões sociais só entrarem como um elemento vago e ficarem para trás, ou se for conduzida sob a bandeira do renascimento nacional e da república burguesa".
Não nos demoraremos a criticar estas conclusões demasiado categóricas. O que, todavia, se encontra fora de dúvida, é que, desde meados do Século. XIX, o problema da emancipação política não podia ser resolvido por uma táctica de pressão, combinada e unânime, de toda a nação. Só uma táctica independente do proletariado, encontrando na sua posição de classe, e só na sua posição de classe, as forças necessárias para a luta, poderia assegurar a vitória da revolução.
A classe operária russa de 1906 difere em absoluto dos operários vienenses de 1848. A melhor prova disso é a aparição, em toda a Rússia, de sovietes de deputados operários. Não se tratava aqui de organizações conspirativas preparadas previamente, com o fim de assegurarem, no momento da revolta, a tomada do poder pelos operários. Não. Os sovietes eram órgãos criados, de maneira organizada, pelas próprias massas, com o fim de coordenarem as suas lutas revolucionárias. E estes sovietes, eleitos pelas massas e responsáveis perante elas, são incontestáveis instituições democráticas, fazendo a mais resoluta política de classe no espírito do socialismo revolucionário.
As particularidades sociais da Rússia são especialmente mais evidentes na questão do armamento da nação. A primeira reivindicação e a primeira conquista de todas as revoluções, em 1789 e em 1848, em Paris, em todos os Estados de Itália, em Viena e em Berlim, foi a formação de uma milícia, a guarda nacional. Em 1848, toda a oposição burguesa, mesmo os seus elementos mais moderados, exigiu a formação de uma guarda nacional, isto é, o armamento das classes possidentes e "educadas", e isto não só para defender as liberdades conquistadas, ou melhor, susceptíveis de serem concedidas, contra golpes de Estado vindos de cima, mas também para proteger a propriedade privada burguesa dos assaltos do proletariado.
"O Italianos compreenderam muito bem que uma milícia civil armada tornaria impossível a existência ulterior do absolutismo. Além disso, esta milícia era, para as classes possidentes, uma garantia contra uma eventual anarquia e quaisquer desordens vindas de baixo".
E a reação no poder, não dispondo de bastantes tropas no centro das operações para acabar com a "anarquia", isto é, com as massas revolucionárias, armou a burguesia. O absolutismo começou por autorizar os burgueses a reduzir e a pacificar os trabalhadores, depois desarmou e pacificou os burgueses.
Na Rússia, a reivindicação de uma milícia não encontrou nenhum eco no seio dos partidos burgueses. Os liberais não podem deixar de compreender qual é a significação verdadeira da questão das armas; o absolutismo deu-lhes algumas lições a este respeito. Mas eles compreendem também que é absolutamente impossível criar uma milícia na Rússia fora do proletariado ou contra ele. Os operários russos não se parecem com os operários de 1848, que enchiam os bolsos de pedras e se armavam com enxadas, enquanto os comerciantes, os estudantes e os advogados traziam um mosquete real ao ombro e uma espada à cintura.
Armar a revolução, na Rússia, significa, em primeiro lugar e antes de tudo, armar os operários. Os liberais, que o sabem e que têm medo disso, renunciaram em absoluto à milícia. Eles adotaram mesmo esta posição sem combater o absolutismo, exatamente como o burguês Thiers entregou Paris e a França a Bismarck, simplesmente para não ser obrigado a armar os operários.
No manifesto da coligação democrático-liberal, Djivelegov, discutindo a possibilidade de revoluções, diz muito justamente que "a própria sociedade deve estar pronta, quando o momento chegar, para defender a sua constituição". Mas como esta afirmação tem por conclusão lógica a reivindicação do armamento do povo, o filósofo liberal considera necessário acrescentar que não é "preciso que estejam todos armados", para impedir qualquer golpe de Estado. Basta que a sociedade esteja pronta a resistir, mas de que maneira não o diz. Se qualquer conclusão pode ser tirada de tudo isto, é que, no coração dos nossos democratas, o medo do proletariado em armas é mais fortes que o da soldadesca da autocracia.
É por isso que a tarefa do armamento da revolução pesa com todo o seu peso sobre os ombros do proletariado. A milícia civil, reivindicação de classe da burguesia em 1848, foi, na Rússia, desde o princípio, a reivindicação do armamento do povo e antes de tudo do proletariado. A sorte da revolução russa foi jogada nesta questão.
Capítulo IV
A revolução e o proletariado
A revolução é uma prova de força aberta entre as forças sociais em luta pelo poder. O Estado não é um fim em si, é unicamente uma máquina nas mãos das forças sociais dominantes. Como qualquer máquina, tem os seus mecanismos: um mecanismo motor, um mecanismo de transmissão e um mecanismo de execução. A força motriz do Estado é o interesse da classe; o mecanismo motor é a agitação, a imprensa, a propaganda pela Igreja e pela Escola, os partidos, os comícios na rua, as petições e as revoltas; o mecanismo de transmissão é a organização legislativa dos interesses de casta, de dinastia, de estado ou de classe, que se apresentam como a vontade de Deus (absolutismo) ou a vontade da nação (parlamentarismo); finalmente, o mecanismo executivo é a administração com a sua política, os tribunais com as suas prisões, e o exército.
O Estado não é um fim em si, mas um meio extremamente poderoso de organizar, de desorganizar e de reorganizar as relações sociais. Consoante quem o controla, pode ser uma poderosa alavanca para a revolução, ou um instrumento de que se serve o governo para organizar a estagnação.
Qualquer partido político digno deste nome luta para conquistar o poder político e colocar assim o Estado ao serviço da classe cujos interesses exprime. A social-democracia, partido do proletariado, luta naturalmente pela dominação política da classe operária.
O proletariado cresce e reforça-se com o crescimento do capitalismo. Neste sentido, o desenvolvimento do capitalismo é também o desenvolvimento do proletariado no sentido da sua ditadura. Mas o dia e a hora em que o poder passará para as mãos da classe operária dependem diretamente, não do nível atingido pelas forças produtivas, mas das relações na luta de classes, da situação internacional e de um certo número de fatores subjetivos: tradições, iniciativa, combatividade dos operários.
É possível que os operários conquistem o poder num país economicamente atrasado antes de o conquistarem num país avançado. Em 1871, os operários tomaram deliberadamente o poder na cidade pequeno-burguesa de Paris; só por dois meses, é verdade, mas, nos centros ingleses ou americanos do grande capitalismo, os trabalhadores nunca tiveram o poder, mesmo por uma hora, nas suas mãos. Imaginar que a ditadura do proletariado depende, de algum modo automaticamente, do desenvolvimento e dos recursos técnicos de um país, é tirar uma conclusão falsa de um materialismo "econômico" simplificado até ao absurdo. Este ponto de vista nada tem a ver com o marxismo.
Na nossa opinião, a revolução russa criará condições favoráveis à passagem do poder para as mãos dos operários --e, se a revolução prevalecer, é o que se realizará com efeito -- antes que os políticos do liberalismo burguês tenham tido a possibilidade de poder mostrar plenamente a prova do seu talento para governar.
Ao fazer o balanço da revolução e da contra-revolução de 1848-1849 para o jornal americano The Tribune, Marx escreveu:
"No seu desenvolvimento social e político, a classe operária está tão atrasada na Alemanha com relação à de Inglaterra e à da França como a burguesia alemã com as destes países. Tal mestre, tal discípulo. A evolução das condições de existência para uma classe proletária numerosa, forte, concentrada e inteligente marcha a par com o desenvolvimento das condições de existência duma classe burguesa numerosa, rica, concentrada e poderosa. O movimento operário nunca é independente, nunca possui um caráter exclusivamente proletário antes que as diferentes frações da burguesia, e sobretudo a sua fração mais progressiva, os grandes industriais, não tenham conquistado o poder político e transformado o Estado de acordo com as suas necessidades. É então que o inevitável conflito entre patrões e operários se torna eminente e já não pode ser adiado".
Esta citação é provavelmente familiar ao leitor, porque os marxistas têm abusado de textos semelhantes nos últimos tempos. Ela foi utilizada como um argumento irrefutável contra a idéia de um governo da classe operária na Rússia. "Tal mestre, tal discípulo". Se a burguesia capitalista não é ainda bastante forte para tomar o poder, dizem eles, então é ainda menos possível estabelecer uma democracia operária, isto é a dominação política do proletariado.
O marxismo é antes de tudo um método de análise -- de análise, não de textos, mas de relações sociais. Será verdade que na Rússia a fraqueza do liberalismo capitalista significa inevitavelmente a fraqueza do movimento operário? Será verdade, para a Rússia, que não pode haver movimento operário independente antes que a burguesia tenha conquistado o poder? Basta colocar estas questões para ver que formalismo sem esperança se dissimula por trás das tentativas feitas para transformar uma observação, historicamente relativa, num axioma supra-histórico.
Durante o período do "boom" industrial, o desenvolvimento da indústria tinha tomado na Rússia um caráter "americano"; mas, do ponto de vista das suas dimensões atuais, a indústria russa está na infância, se se comparar com a dos Estados Unidos. Cinco milhões de pessoas - 16,6% da população ocupada na economia - estão empenhadas na indústria, na Rússia; nos Estados Unidos, os números correspondentes seriam seis milhões: 22,2%. Estes números ainda nos dizem relativamente pouco, mas tornam-se eloqüentes se nos lembramos que a população russa e americana, é necessário observar que, em 1900, as fábricas americanas produziram mercadorias num total de 25 biliões de rublos, enquanto no mesmo período, as fábricas russas produziam menos de 2 biliões e meio de rublos!
Não há dúvida que o número, a concentração, a cultura e a importância política dos operários industriais dependem do grau de desenvolvimento da indústria capitalista. Mas esta dependência não é direta. Entre as forças produtivas de um país e a força política das suas classes interferem, seja qual for o momento, diversos fatores políticos e sociais com um caráter nacional ou internacional, que modificam ou por vezes alteram completamente a expressão política das relações econômicas. Embora as forças produtivas dos Estados Unidos sejam dez vezes superiores às da Rússia, não é menos verdadeiro que o papel político do proletariado russo, a sua influência sobre a política do país e a sua possibilidade de influir na política mundial num futuro próximo são incomparavelmente maiores do que acontece com o proletariado dos Estados Unidos.
Numa obra recente sobre o proletariado americano, Kautski sublinha que não há relação direta entre o poder político do proletariado ou da burguesia, por um lado, e o nível de desenvolvimento do capitalismo, por outro.
"Existem dois Estados", escreve ele, "que estão em contraste absoluto um com o outro. No primeiro, um dos elementos do modo de produção capitalista desenvolveu-se desmesuradamente com relação ao desenvolvimento de conjunto deste modo de produção; no segundo, o mesmo acontece, mas trata-se de elementos diferentes; na América, este elemento é a classe capitalista, na Rússia, é o proletariado. Não há país em que seja mais acertado falar de ditadura do capital do que na América; mas em parte alguma adquiriu o proletariado tanta importância como na Rússia. Esta importância vai aumentar e aumentará sem dúvida alguma, porque só recentemente este país começou a tomar parte na luta de classes e lhe deixou algum campo livre".
Sublinhando que, numa certa medida, a Alemanha pode aprender na Rússia sobre o seu próprio futuro, Kautski prossegue: "É verdadeiramente extraordinário que o proletariado russo nos possa mostrar o nosso futuro, na medida em que este encontra a sua expressão, não no grau de desenvolvimento do capital, mas no protesto da classe operária. O fato de a Rússia ser o mais atrasado dos Estados do mundo capitalista poderia parecer contradizer a concepção materialista da História segundo a qual o desenvolvimento econômico é a base do desenvolvimento político. Mas, na realidade, só se contradiz a caricatura da concepção materialista da história dos seus adversários e dos seus críticos que nela mais não vêem do que um esquema estereotipado e não um método de pesquisa".
Recomendamos particularmente o estudo destas linhas aos nossos marxistas russos que substituem a análise independente das relações sociais por deduções feitas a partir de textos escolhidos para poderem servir em todas as circunstâncias da vida. Ninguém mais compromete o marxismo do que estes marxistas.
Assim, do ponto de vista econômico e segundo Kautski, a Rússia encontra-se num nível inferior de desenvolvimento do capitalismo; do ponto de vista político, tem uma burguesia capitalista insignificante e um poderoso proletariado revolucionário. Daqui resulta que "a luta pelos interesses de toda a Rússia se tornou o destino da única classe forte atualmente existente no país: o proletariado industrial; é por isso que o proletariado industrial tem uma enorme importância política; é por isso que a luta para libertar a Rússia da carcaça do absolutismo que a abafa, se transformou num singular combate entre o absolutismo e o proletariado industrial, um combate singular ao qual os camponeses podem dar uma ajuda considerável, embora nele não possam tomar um papel dirigente".
Será que tudo isto não nos autoriza a concluir que, na Rússia, o "discípulo" tomará o poder antes do "mestre"?
Pode haver duas formas de otimismo político. Podemos, numa situação revolucionária, exagerar as nossas forças e as nossas vantagens e empreender a realização de tarefas que não correspondem à relação de forças. Por outro lado, é-nos possível fixar, com otimismo, limites às nossas tarefas revolucionárias, embora sejamos inevitavelmente conduzidos, pela lógica da nossa posição, a ultrapassar estes limites.
Afirmando que a nossa revolução é burguesa nos seus objetivos e, por conseqüência, nos seus resultados inevitáveis, fixam-se limites a todos os problemas que levanta esta revolução; mas isto quer dizer que se fecham os olhos perante o fato de o autor principal nesta revolução burguesa ser o proletariado, que todo o curso da revolução empurra para o poder.
Poder-se-ia então argumentar dizendo que, no quadro de uma revolução burguesa, a dominação política do proletariado será simplesmente um episódio passageiro; seria esquecer que, uma vez que o proletariado tenha o poder nas mãos, não o cederá sem opor uma resistência desesperada; este poder só poderá ser-lhe subtraído pela força das armas.
Poder-se-ia igualmente argumentar sustentado que as condições sociais da Rússia não se encontram ainda maduras para uma economia socialista; é necessário, no entanto, considerar que o proletariado, uma vez no poder, será inevitavelmente pressionado, pela própria lógica da sua posição, a instalar uma gestão estatal da indústria. A fórmula sociológica geral revolução burguesa não resolve de maneira nenhuma os problemas táticos e políticos, as contradições e as dificuldades levantadas pelo mecanismo de uma revolução burguesa determinada.
No final do século XVIII, no quadro de uma revolução burguesa cuja tarefa era estabelecer a dominação do capital, a ditadura dos "sans-culottes" revelou-se possível. Este não foi um episódio passageiro; esta ditadura marcou todo o século seguinte, embora tenha rapidamente fracassado contra as barreiras da revolução francesa, que a limitavam de todos os lados. No princípio do século XX, numa revolução cujas tarefas objetivas diretas são igualmente burguesas, emerge, como a perspectiva de um futuro próximo, a dominação política inevitável, ou pelo menos provável, do proletariado. E este saberá assegurar que a sua dominação não seja, como esperam alguns filisteus realistas, um simples episódio.
Mas nós podemos desde já colocar a questão: será inevitável que a ditadura proletária tenha de fracassar contra as barreiras da revolução burguesa, ou será possível que, nas atuais condições históricas mundiais, ela possa descobrir uma perspectiva de vitória despedaçando tais barreiras? São meras questões de tática que se colocam à nossa frente: deveremos, à medida que a revolução se aproxima desta etapa, preparar conscientemente um governo da classe operária, ou ser-nos-á necessário considerar, neste estádio, o poder político com uma infelicidade que a revolução burguesa está pronta a impor aos trabalhadores e que seria melhor evitar?
Bem poderíamos aplicar a nós mesmos a frase do político "realista" Vollmar sobre os communards de 1871: "Em vez de tomar o poder, seria melhor que fossem dormir...".
Capítulo V
Proletariado no poder e o campesinato
Se a revolução trouxer uma vitória decisiva, o poder passará para a classe que tomar o papel dirigente na luta, por outros termos, a classe operária. Digamos já que isto não exclui de maneira nenhuma a entrada no governo dos representantes revolucionários dos grupos sociais não proletários. Estes podem e devem estar no governo: uma política sã obrigará o proletariado a chamar ao poder os dirigentes influentes da pequena burguesia das cidades, dos intelectuais e dos campesinato. Todo o problema reside nisto: quem determinara o conteúdo da política governamental, quem formará no seu seio uma maioria estável?
Uma coisa será os representantes das camadas democráticas do povo entrarem num governo de maioria operária, outra será, completamente diferente, os representantes do proletariado participarem num governo democrático burguês característico, no qual tomam, mais ou menos, um papel de reféns.
A política da burguesia capitalista liberal, com todas as suas hesitações, recuos e traições, é perfeitamente determinada. A política do proletariado é ainda mais determinada e acabada. Mas a dos intelectuais, em virtude do seu caráter social intermediário e da sua elasticidade política: a do campesinato, em virtude da sua diversidade social, da posição intermediária que ocupa, e do seu caráter primitivo; a da pequena burguesia das cidades, em virtude, uma vez ainda, da sua falta de caráter, da posição intermediária que ocupa e da completa ausência de tradições políticas, - a política destes três grupos sociais é absolutamente indeterminada, informe, rica de possibilidades diversas, portanto de surpresas.
Um governo democrático revolucionário sem representantes do proletariado é uma concepção desprovida de sentido. Basta que procuremos imaginar um tal governo para disso nos apercebermos. Recusando-se a participar no governo, os social-democratas tornariam um governo revolucionário absolutamente impossível; e também uma tal atitude da sua parte equivaleria a uma traição.
Mas é só como força dominante e dirigente que a participação do proletariado é altamente provável e permitida em princípio. É possível, naturalmente, descrever um tal governo como sendo a ditadura do proletariado e do campesinato ou a ditadura do proletariado, do campesinato e da "intelligentsia", ou mesmo num governo de coligação da classe operária e da pequena burguesia. Seja como for, a questão não deixa de se poder colocar: quem exercerá a hegemonia no seio do próprio governo, e, por seu intermédio, no país? Falando de um governo operário, respondemos, por isso mesmo, que a hegemonia deverá pertencer à classe operária.
A Convenção Nacional, órgão da ditadura jacobina, não era exclusivamente composta por jacobinos. Mais ainda, os jacobinos constituíam uma minoria; mas a influência dos "sans-culottes" fora do recinto da Convenção e a necessidade de adotar uma política resoluta para salvar o país, fizeram cair o poder nas mãos dos jacobinos. Se, na sua forma, a Convenção, composta de jacobinos, girondinos, e desse vasto centro hesitante que se chamava o pântano, representava a nação, na sua essência era uma ditadura dos jacobinos.
Quando falamos de um governo operário, o que temos em vista é um governo no seio do qual os representantes da classe operária dominam e dirigem. O proletariado não poderá senão alargar a base da revolução afim de consolidar o seu poder. Só quando a vanguarda da revolução, o proletariado das cidades, estiver no governo do Estado, numerosos sectores das massas trabalhadoras, nomeadamente no campo, entrarão na revolução e organizar-se-ão politicamente. A agitação e a organização revolucionárias poderão então beneficiar da ajuda do Estado. O poder legislativo tornar-se-á uma poderosa alavanca para revolucionar as massas. A natureza das relações sociais históricas, que fez cair todo o peso da revolução burguesa sobre os ombros do proletariado, não colocará só o governo operário diante de formidáveis dificuldades, mas assegurar-lhe-á também o benefício de inestimáveis vantagens. Todas as relações entre o proletariado e o campesinato serão, com isso, afetadas.
Após a derrotada do absolutismo, nas revoluções de 1789-1793 e de 1848, coube aos elementos mais moderados da burguesia ficarem com o poder, e foi esta última classe que emancipou o campesinato (de que maneira, é outra questão), antes que a democracia revolucionária recebesse o poder, ou estivesse mesmo pronta para o receber. O campesinato, uma vez emancipado, perdeu todo o interesse pelas tarefas políticas das "pessoas das cidades", por outras palavras, pelo ulterior desenvolvimento da revolução, e, tornado a pedra angular da "ordem", traiu a revolução a favor da reação, sob a forma de cesarismo ou do antigo regime absolutista.
A revolução russa não poderá (e por um longo período, não quererá) estabelecer qualquer espécie de ordem constitucional burguesa susceptível de resolver os problemas mais elementares da democracia. Todos os esforços "esclarecidos" de burocratas reformadores à Witte ou à Stolipin são reduzidos a nada pela luta que são forçados a conduzir pela sua própria existência. É por isso que o destino dos interesses revolucionários mais elementares do campesinato -- mesmo do campesinato tomado como um todo, como estado -- depende do destino da revolução, portanto o destino do proletariado.
O proletariado no poder será, aos olhos dos camponeses, a classe que os terá emancipado. A dominação do proletariado não significará simplesmente a igualdade democrática, o direito de se governar a si próprio livremente, a transferência do fardo dos impostos para os ombros das classes ricas, a dissolução do exército permanente e o armamento do povo, a abolição dos impostos do clero, mas também o reconhecimento de todas as transformações revolucionárias (expropriações) levadas a cabo pelos camponeses nas próprias relações sociais. O proletariado fará destas transformações o ponto de partida para novas medidas do Estado na agricultura.
Nestas condições, o campesinato russo, no curso da primeira fase, a mais difícil, da revolução, não terá, em todo o caso, menos interesse na manutenção do regime proletário, da democracia operária, quanto tinha o campesinato francês na manutenção do regime militar de Napoleão Bonaparte, que garantia aos novos proprietários, pela força das baionetas, a inviolabilidade das suas possessões. E isto significa que o organismo representativo da nação, convocado sob a direção de um proletariado que se terá assegurado do apoio do campesinato, nada mais será do que uma roupagem democrática para o reino do proletariado.
Mas não será possível que o campesinato se desembarace do proletariado e tome o seu lugar? Não, isso não é possível. Toda a experiência histórica fala contra tal hipótese. A experiência histórica mostra que o campesinato é absolutamente incapaz de assumir um papel político independente.
A história do capitalismo é a história da subordinação do Campo à cidade. O desenvolvimento das cidades européias, chegado a um estádio determinado, tornou impossível a persistência das relações feudais na agricultura. Mas o campo jamais produziu uma classe susceptível de levar a cabo a tarefa revolucionária de abolir o feudalismo. A cidade, que subordinava a agricultura ao capital, criou uma força revolucionária que conquistou a hegemonia política sobre o campo, e estendeu ao campo a revolução no estado e nas relações de propriedade. E, prosseguindo a história o seu curso, o campo caiu finalmente na escravatura econômica do capital, e o campesinato na escravatura política dos partidos capitalistas. Estes partidos ressuscitaram a feudalismo no quadro da política parlamentar, fazendo do campesinato uma coutada para as suas batidas eleitorais.
Com os seus impostos e o seu militarismo, o moderno Estado burguês lançou o camponês nas garras do usurário, e, com os seus sacerdotes, as suas escolas e a corrupção da vida militar, fez do camponês a vítima de uma política de usurários.
A burguesia russa abandonará ao proletariado a totalidade das posições da revolução; abandonar-lhe-á também a hegemonia revolucionária sobre os camponeses; nada mais restará ao campesinato, na situação que resultará da transferência do poder para o proletariado, senão aliar-se ao regime da democracia operária. E se o não fizer com um grau de consciência mais elevado do que quando se alia, como é hábito, aos partidos burgueses, isso terá pouca importância. Enquanto um partido burguês, que dispõe dos sufrágios dos camponeses, se apressa a usar o poder para iludir e burlar estes últimos e deixa, se as coisas correm mal, o seu lugar a um outro partido capitalista, -- o proletariado, apoiando-se no campesinato, mobilizará todas as suas forças para elevar o nível cultural do campo e desenvolver a consciência política do campesinato.
Do que já dissemos, resulta claramente o que pensamos de uma "ditadura do proletariado e do campesinato". A questão não reside em saber se consideramos que uma tal forma de cooperação política é admissível em princípio, se a desejamos ou não. Nós pensamos que ela é irrealizável, pelo menos num sentido direto e imediato; de fato, uma tal coligação pressupõe que um dos partidos burgueses existentes tenha o campesinato sob a sua influência, ou que o campesinato tenha criado um poderoso partido independente; mas nós esforçamos-nos precisamente por demonstrar que nem uma nem outra destas eventualidades é realizável.
Capítulo VI
O regime proletário
O proletariado só poderá ter acesso ao poder apoiando-se num levantamento e dentro de um entusiasmo nacional. Entrará no governo como representante revolucionário da nação, como o seu dirigente reconhecido na luta contra o absolutismo e a barbárie feudal. Entretanto, ao tomar o poder, o proletariado abrirá uma nova época, uma época de legislação revolucionária, de política positiva e, deste ponto de vista, não pode de maneira nenhuma ter assegurada a conservação do papel de porta-voz reconhecido da vontade da nação.
Evidentemente, as primeiras medidas tomadas pelo proletariado para varrer as cavalariças de Áugias do antigo regime e expulsar os seus habitantes, encontrarão o apoio ativo de toda a nação, a despeito do que possam dizer, sobre o caráter tenaz de certos preconceitos nas massas, os eunucos liberais. Esta limpeza política será completada por uma reorganização democrática de todas as relações sociais e estatais. O governo operário será obrigado por pressões diretas e reivindicações populares a intervir de maneira decisiva em tudo e em toda a parte...
A sua primeira tarefa consistirá em expulsar do exército e da administração todos aqueles que têm sangue nas mãos e, licenciar ou dispersar os regimentos que mais crimes cometeram contra o povo. Isto deverá ser levado a cabo nos primeiros dias da revolução, antes que seja possível introduzir o sistema da elegibilidade e da responsabilidade dos funcionários e de organizar uma milícia nacional. Mas isto não é tudo. A democracia operária será imediatamente colocada perante a questão da duração do dia de trabalho, perante a questão agrária e perante o problema do desemprego.
Uma coisa é clara. Com cada dia que passe, a política do proletariado no poder aprofundar-se-á, e o seu caráter de classe afirmar-se-á de maneira cada vez mais resoluta. Ao mesmo tempo romper-se-ão os laços do proletariado com a nação, a desintegração do campesinato como classe revestirá uma forma política, e o antagonismo entre os diversos sectores que a compõem crescerá à medida que a política do governo operário se defina e deixe de ser uma política democrática no sentido geral do termo, para se tornar uma política de classe.
A ausência, tanto entre os camponeses como entre os intelectuais, de tradições burguesas e individualistas acumuladas, como de preconceitos contra o proletariado, facilitará, evidentemente, o acesso ao poder deste último; no entanto, é necessário não esquecer que esta ausência de preconceitos não é fruto de maturidade social e de caráter. Aqui nada existe que seja susceptível de fornecer, para uma política proletária coerente e ativa, uma base na qual se possa confiar.
Todo o campesinato sustentará a abolição do feudalismo, porque é ele que suporta o fardo. Na sua grande maioria, apoiará a instauração de um imposto progressivo sobre a renda. Mas uma legislação destinada a proteger os proletários agrícolas não desfrutará da simpatia ativa da maioria dos camponeses; mais ainda, encontrará decerto a oposição de uma minoria.
O proletariado será obrigado a levar a luta de classe à aldeia e a destruir, desta maneira, a comunidade de interesses que existe incontestavelmente entre os camponeses, embora em limites muito mais estreitos. Imediatamente após a tomada do poder, o proletariado terá de procurar o apoio nos antagonismos entre a aldeia pobre e a aldeia rica, assim como entre o proletariado agrícola e a burguesia agrícola. A heterogeneidade do campesinato criará dificuldades à aplicação de uma política proletária e diminuir-lhe-á base; mas o grau insuficiente, atingido pela diferenciação de classe do campesinato, criará obstáculos à introdução no seu seio de uma luta de classe desenvolvida sobre a qual o proletariado se possa apoiar. O caráter atrasado do campesinato será no futuro uma fonte de obstáculos para a classe operária.
O desânimo do campesinato, a sua passividade política é, mais ainda, a oposição ativa das suas camadas superiores não poderão deixar de influenciar uma parte dos intelectuais e da pequena burguesia das cidades.
Assim, quanto mais a política do proletariado no poder se mostrar precisa e resoluta, mais o terreno diminuirá e se tornará perigoso sob os seus passos. Tudo isto é extremamente provável e até mesmo inevitável...
Os dois principais aspectos da política do proletariado que suscitarão a oposição dos seus aliados são o coletivismo e o internacionalismo. O caráter atrasado e pequeno-burguês do campesinato, a estreiteza rural das suas visitas, o seu afastamento dos laços e das obediências da política mundial, serão fonte de terríveis dificuldades na via da política revolucionária do proletariado no poder.
Imaginar que o papel do social-democratas consistirá em entrar primeiro num governo provisório, dirigi-lo durante o período das reformas democráticas revolucionárias, lutar para lhes dar um caráter absolutamente radical, apoiando-se, para esse fim, sobre o proletariado organizado e, em seguida, uma vez inteiramente realizado o programa democrático, deixar o edifício que terá sido construído para ceder o lugar aos partidos burgueses e passar para a oposição, abrindo assim um período de parlamentarismo, é considerar a coisa de um modo susceptível de comprometer a própria idéia de um governo operário. Não porque uma tal atitude seja inadmissível "em princípio" -- colocar a questão nesta forma abstrata não tem sentido -- mas porque é absolutamente irreal, porque é utopismo da pior espécie: utopismo filisteu-revolucionário.
Eis porquê:
Durante o período em que o poder pertence à burguesia, a divisão do nosso programa em programa máximo e programa mínimo reveste um significado profundo e fundamental de princípio. O próprio fato de a burguesia estar no poder elimina do programa mínimo todas as reivindicações que são incompatíveis com a propriedade privada dos meios de produção. Estas reivindicações formam o conteúdo de uma revolução socialista e pressupõem a ditadura do proletariado.
Mas a divisão em programa máximo e programa mínimo perde todo o significado, tanto em princípio como na prática, desde que o poder esteja nas mãos de um governo revolucionário de maioria socialista. Um governo proletário não pode em caso algum fixar-se em tais limites.
Consideremos a questão do dia de trabalho de oito horas. Como se sabe, esta reivindicação não está de modo algum em contradição com a existência de relações capitalistas; é por isso que ela constitui um dos pontos do programa mínimo da social-democracia. Mas suponhamos que esta medida entra efetivamente em vigor durante um período revolucionário, período em que as paixões de classe são exacerbadas; não há dúvida que provocaria uma resistência organizada e resoluta dos capitalistas, que tomaria por exemplo a forma de lock-out e o encerramento de fábricas.
Centenas de milhares de trabalhadores seriam lançados para a rua. Que deveria fazer o governo? Por muito radical que pudesse ser, um governo burguês deixaria chegar as coisas a tal ponto, porque, perante o encerramento das fábricas, sentir-se-ia impotente, seria obrigado a bater em retirada, o dia de trabalho não seria aplicado e a indignação dos trabalhadores seria reprimida.
Pelo contrário, sob a dominação do proletariado, a entrada em vigor do dia de trabalho de oito horas teria outras conseqüências. Um governo que, contrariamente aos liberais, não procurasse tomar o papel de intermediário "imparcial" da democracia burguesa; que procurasse apoiar-se, não sobre o capital, mas sobre o proletariado, não veria, no encerramento das fábricas, uma desculpa para aumentar o dia de trabalho. Para um governo operário, não haveria senão uma saída: expropriar as fábricas encerradas e organizar a produção sobre uma base socialista.
Pode-se naturalmente racionar da seguinte maneira: suponhamos que o governo operário, fiel ao seu programa, decreta o dia de trabalho de oito horas; se a resistência que o capital opuser não puder ser ultrapassada no quadro de um programa democrático fundado sobre a preservação da propriedade privada, os social-democratas demitir-se-ão e chamarão o proletariado. Uma tal solução seria talvez una para o grupo cujos membros formariam o governo; não seria una para o proletariado, nem para o desenvolvimento da revolução. A situação seria igual, após a demissão dos social-democratas, àquela que existia antes, quando tinham sido obrigados a assumir o poder. E fugir perante a oposição organizada do capital seria uma traição mais grave que recusar tomar o poder na etapa precedente. Seria realmente bem melhor para a classe operária não entrar no governo do que entrar e mostrar depois a sua própria fraqueza e sair.
Consideremos um outro exemplo. O proletariado no poder terá de recorrer às medidas mais enérgicas para resolver o problema do desemprego, porque é evidente que os representantes dos operários no governo não poderão responder às reivindicações dos desempregados argumentando com o caráter burguês da revolução.
Mas se o governo empreender o apoio aos desempregados -- e pouco importa qual a maneira -- isto significa uma alteração imediata e substancial da reação entre as forças econômicas em favor do proletariado. Os capitalistas que se apóiam sempre na existência de um exército de reserva de trabalhadores para oprimir os operários, sentir-se-iam reduzidos à impotência econômica no momento em que o governo revolucionário os reduzisse à impotência política.
Empreendendo o apoio aos desempregados, o governo apoiará também os grevistas. Se faltar a este dever, minará imediata e irrevogavelmente a sua própria existência. Só restará então aos capitalistas o recurso ao lock-out, isto é, ao encerramento das fábricas. É evidente que os empresários podem resistir muito mais tempo do que os operários com a paragem da produção e por isso um governo operário só poderá ter uma resposta a um lock-out geral: a expropriação das fábricas, e a introdução, pelo menos nas maiores, da produção estatal ou comunal.
Problemas análogos colocar-se-ão na agricultura, pelo simples fato da expropriação da terra. É absolutamente impossível conceber que um governo proletário, depois de ter expropriado os proprietários onde a produção se fazia em grande escala, os divida em parcelas para pôr à venda e fazer explorar por pequenos produtores. A via única neste domínio, é a organização da produção cooperativa, sob o controle das comunas ou diretamente do Estado. Mas esta via é que conduz ao socialismo.
Tudo isto demonstra sem ambigüidade que seria impossível aos social-democratas entrar num governo revolucionário, comprometendo-se ao mesmo tempo perante os operários, sem abandonarem o programa mínimo e, relativamente aos burgueses, sem o ultrapassarem. Um tal comprometimento bilateral não poderia de forma alguma ser mantido. Do simples fato de os representantes do proletariado entrarem no governo, não a título de reféns impotentes, mas como força dirigente, desaparece a fronteira entre programa mínimo e programa máximo; isto quer dizer que o coletivismo coloca-se na ordem do dia. Até onde irá o proletariado por esta via? Isso depende da relação das forças, mas nunca das intenções primitivas do partido proletário.
É por isso que não se pode falar de não sei que forma especial de ditadura do proletariado na revolução burguesa, de uma ditadura democrática do proletariado, ou de uma ditadura do proletariado e do campesinato. A classe operária só pode preservar o caráter da sua ditadura, não renunciando a ultrapassar os limites do programa democrático. Toda a ilusão neste aspecto seria fatal e comprometeria desde o início a social-democracia.
Uma vez que o proletariado tenha tomado o poder, lutará por este poder até ao fim. E se é verdade que, nesta luta para manter e consolidar o seu poder, terá que recorrer, especialmente no campo, à arma da agitação e da organização, não poderá deixar de recorrer também à outra arma que constitui para ele a política coletivista. O coletivismo não será apenas a única via pela qual o partido no poder poderá avançar na posição que será a sua, mas também o meio de defender esta posição com o apoio do proletariado.
A nossa imprensa "progressista" lançou um grito unânime de indignação, logo que foi formulada pela primeira vez, na imprensa socialista, a idéia de revolução permanente -- uma idéia que ligava a liquidação do absolutismo e da feudalidade a uma revolução socialista, através de conflitos sociais crescentes, de levantamentos nas novas camadas das massas, de ataques incessantes conduzidos pelo proletariado contra os privilégios políticos e econômicos das classes dirigentes.
"Oh!", gritavam eles, "nós já suportamos muitas coisas, mas não toleraremos isto. A revolução se poderá recorrer a medidas excepcionais. O objetivo do movimento de emancipação não é tornar a revolução permanente, mas conduzi-la o mais depressa possível a uma situação legal", etc.
Os representantes mais radicais desta mesma democracia não se arriscam, por seu lado, a tomar uma posição contra a revolução, mesmo do ponto de vista de "êxitos" constitucionais já adquiridos. Aos seus olhos, esse cretinismo parlamentar que precede a aparição do próprio parlamento, não constitui uma arma suficiente na luta contra a revolução proletária. É uma outra via que escolhem, tomam posição fundamentando-se, não sobre a lei, mas sobre o que eles consideram como fatos -- sobre as "possibilidades" históricas, sobre o "realismo" político e, em última instância, sobre o "marxismo". E porque não? O piedoso burguês de Veneza, Antônio, disse-o muito justamente: "O diabo pode citar as Escrituras para as suas necessidades" (Shakespeare, O mercador de Veneza).
Estes democratas radicais não olham só como fantástica a idéia de um governo operário na Rússia, eles negam igualmente que uma revolução socialista seja possível na Europa, em todo o próximo período histórico: "As premissas da revolução", dizem eles, "não são ainda visíveis". Será verdade? Evidentemente, a questão não se põe em fixar uma data limite para a revolução socialista; mas é necessário fazer ressaltar a perspectiva histórica verdadeira.
Capítulo VII
As premissas do socialismo
O marxismo fez do socialismo uma ciência; mais isto não impede que certos "marxistas" façam do marxismo uma utopia. Roikov, argumentando contra o programa de socialização e de cooperação, apresenta da seguinte maneira as "premissas necessárias da sociedade futura, firmemente estabelecidas por Marx":
"As premissas objetivas materiais estão já realizadas? Elas suportariam um nível técnico suficiente para reduzir ao mínimo o móbil do ganho pessoal e o desejo de dinheiro (?), do esforço pessoal, da empresa e do risco, e que colocaria, por conseqüência, a produção social em primeiro plano. Um tal progresso da técnica está estreitamente girado a uma dominação quase completa (!) da produção em grande escala em todos (!) os ramos da economia. Já se atingiu este estado? Até mesmo as premissas subjetivas, psicológicas, como um desenvolvimento suficiente, no seio do proletariado, da consciência de classe até ao grau necessário para realizar a unidade espiritual da grande maioria do povo, mesmo esta consciência falta. Nós conhecemos associações de produtores, como na França as famosas vidrarias de Albi e diversas associações agrícolas e, todavia, a experiência francesa mostra melhor que nenhuma outra, que as próprias condições que existem, num país tão avançado, não estão suficientemente desenvolvidas para que predomine a cooperação. Estas empresas são apenas de um tamanho médio, o seu nível técnico não ultrapassa o das empresas capitalistas vulgares; bem longe de estar em primeiro plano do desenvolvimento industrial, de o dirigir, em elas não atingem mais do que uma média modesta. Só quando a experiência das associações individuais de produtores indicar que têm um papel dirigente na vida econômica, poderá então dizer-se que se está próximo de um novo sistema, poder-se-á então estar seguro de as condições necessárias à sua existência terem sido realizadas".
Com todo o respeito devido às boas intenções de Roikov, devemos reconhecer com desgosto que raramente nos é dado encontrar uma tal confusão a propósito do que se chama as premissas do socialismo, até mesmo na literatura burguesa. Ser-nos-á necessário examinar com um certo pormenor esta confusão, se não por Roikov, pelo menos pela importância do problema posto.
Roikov declara que não atingimos ainda "um grau de desenvolvimento técnico suficiente para reduzir ao mínimo o móbil do ganho pessoal e o desejo do dinheiro (?), do esforço pessoal, da empresa e do risco, e que colocaria, por conseqüência, a produção social em primeiro plano".
É bastante difícil compreender o que significa esta passagem. O que Roikov quer dizer, aparentemente, é, em primeiro lugar, que a técnica moderna não eliminou ainda suficientemente a mão de obra humana da indústria, em segundo lugar, que esta eliminação suporia a "dominação" quase completa das grandes empresas de Estado "em todos os ramos da economia" e, por conseqüência, a proletarização quase completa da população do país inteiro. Tais são as duas premissas do socialismo "firmemente estabelecidas por Marx".
Tentemos imaginar o funcionamento das relações capitalistas, tais como, segundo Roikov, o socialismo as encontrará no seu advento. "A dominação quase completa da produção em grande escala em todos os ramos da indústria", isto significa, sob o capitalismo, já o dissemos, a proletarização de todos os pequenos e médios produtores, tanto na agricultura como na indústria, isto é, a transformação de toda a população em proletários. Mas a dominação completa do maquinismo nestas grandes empresas levaria a reduzir ao mínimo o emprego da força humana de trabalho; por conseqüência, a esmagadora maioria da população do país -- digamos 90% -- seria transformada num exército de reserva vivendo a expensas do Estado nos asilos para os pobres. Nós dizemos 90% mas nada nos impede de sermos lógicos e imaginarmos um estado de coisas no qual a totalidade da produção consistiria num único mecanismo automático, pertencendo a um único cartel e não tendo necessidade, como trabalho vivo, senão de um único orangotango qualificado. Reside aí, sabemo-lo, a teoria brilhante e plena de lógica do professor Tugan-Baranovski. Nestas condições, a "produção social" não está só em "primeiro plano", ocupa todo o terreno; e, além disso, o consumo é também naturalmente socializado, pois que toda a nação, exceto os 10% que possuem o trust, viverá dos fundos públicos nos asilos. Assim por trás de Roikov, aparece o rosto sorridente e familiar de Tugan-bAranovski. O socialismo pode fazer agora a sua entrada. A população emerge dos asilos e expropria o grupo dos expropriadores. Nunca mais a revolução nem a ditadura do proletariado são evidentemente necessárias.
O segundo sinal da maturidade de um país para o socialismo é, segundo Roikov, a possibilidade de predominar a produção cooperativa. Mesmo em França a cooperativa vidreira de Albi não está a um nível mais elevado do que qualquer outra empresa capitalista. A produção socialista só se tornará possível quando as cooperativas estiverem "no primeiro plano do desenvolvimento industrial" e o "dirigirem".
Toda a argumentação está de pernas para o ar. Se as cooperativas não podem tomar o comando do desenvolvimento industrial, não é porque este não tenha ido bastante longe, é porque foi muito longe. Sem dúvida alguma, o desenvolvimento econômico lança as bases da cooperação, mas de que espécie de cooperação? Se se refere à cooperação capitalista, fundada sobre o trabalho assalariado, então cada fábrica oferece-nos o quadro de uma tal cooperação. E a importância desta cooperação aumenta cada vez mais com o desenvolvimento da técnica. Mas como é que o desenvolvimento capitalista pode colocar as cooperativas "no primeiro plano da indústria"? Sobre que se fundamenta Roikov para esperar que cooperativas possam prevalecer sobre os cartéis e os trusts, e tomar o seu lugar à cabeça do desenvolvimento industrial? É evidente que, se isso acontecesse, mais não restaria então às cooperativas do que expropriar automaticamente todas as empresas capitalistas, depois reduzir suficientemente o dia de trabalho para poder dar trabalho a todos os cidadãos, e regular o montante da produção dos diversos ramos, de maneira a evitar as crises. As características principais do socialismo estariam então realizadas. E então sim, é claro que nem a revolução nem a ditadura da classe operária seriam mais necessárias.
A terceira premissa é de ordem psicológica: é necessário que "a consciência de classe do proletariado esteja suficientemente desenvolvida para realizar a unidade espiritual da grande maioria da população" no seio do proletariado social-democrata. Roikov supõe evidentemente que o capitalismo, transformando os pequenos produtores em proletários, e a massa dos proletários em exército de reserva do trabalho, dará à social-democracia a possibilidade de unir e esclarecer espiritualmente "a grande maioria" (90%?) do povo.
É uma eventualidade tão impossível no mundo da barbárie capitalista como a dominação das cooperativas no quadro da competição capitalista. Mas, bem entendido, se isso fosse realizável, a "grande maioria" da nação, unida em consciência e em espírito, não hesitaria em abater os poucos magnatas do capital e organizaria, sem revolução nem ditadura, uma economia socialista.
Uma questão se pode pôr então. Roikov considera Marx como o seu mestre. Ora Marx, que acabava de indicar as "premissas essenciais do socialismo" no seu Manifesto Comunista, considerava a revolução de 1848 como o prólogo imediato da revolução socialista. Não é necessário, evidentemente, muita perspicácia para constatar, sessenta anos depois, que Marx se enganou: o mundo capitalista ainda existe. Mas como é possível que Marx tenha cometido precisamente este erro? Não se apercebeu ele que as grandes empresas dominavam ainda todos os ramos da indústria; que as cooperativas de produtores não estavam ainda à cabeça das grandes empresas; que a maioria do povo não estava ainda unida na base das idéias expostas no Manifesto Comunista? Se mesmo hoje, vêmo-lo bem, tudo isto ainda não se realizou, como é possível que Marx não se tenha sido, em 1848, senão um jovem utopista!
Embora Roikov não faça parte absolutamente dos críticos de Marx, elimina contudo do número das premissas essenciais do socialismo a revolução proletária. Mas Roikov não fez senão exprimir, impelindo-as até às suas últimas conseqüências, concepções e dividem, nas duas tendências do nosso partido, numerosos marxistas; é por isso que interessa examinar os fundamentos principais e metodológicos dos erros que cometeu.
Observemos de passagem que a argumentação de Roikov, fundada sobre o destino das cooperativas, lhe é própria. Nunca encontramos em parte alguma socialistas que acreditassem, simultaneamente, que a concentração da produção e a proletarização do povo progredissem de modo simples e irresistível, e que as cooperativas de produção adquirissem um papel dominante antes da revolução proletária. É muito mais difícil reunir a realização destas duas premissas na evolução econômica do que na cabeça de um indivíduo; embora este último ponto nos tenha, até hoje, parecido impossível.
Passemos agora a um exame de duas outras "premissas" que constituem as conjecturas mais espalhadas.
Não há dúvida que a concentração da produção, o desenvolvimento da técnica e a elevação da consciência das massas são as premissas essenciais do socialismo. Mas estes processos produzem-se simultaneamente; não se reforçam apenas um ao outro, mas também retardam-se e limitam-se mutuamente. Cada um destes processos, a um nível superior, exige um certo desenvolvimento de um deles, a um nível inferior. Mas o seu desenvolvimento completo, para cada um, é incompatível com o dos outros.
O desenvolvimento da técnica encontra incontestavelmente o seu limite ideal num mecanismo automático único, extraindo as matérias primas do seio da natureza e dispondo-as aos pés do homem sob a forma de objetos de consumo acabados.
Se a existência do sistema capitalista não fosse limitada pelas relações de classe que comporta e a luta revolucionária que daí resulta, teríamos algumas razões para admitir que a técnica, aproximando-se, no quadro do sistema capitalista, do ideal do mecanismo automático único, aboliria automaticamente, por isso mesmo, o capitalismo.
A concentração da produção que resulta das leis da concorrência tem uma tendência inerente para proletarizar toda a população. Isolando esta tendência, teríamos razão em supor que o capitalismo completaria a sua obra até ao fim, se o processo de proletarização não fosse interrompido por uma revolução; mas é isso que acontecerá inevitavelmente, numa relação de forças determinada, muito antes que o capitalismo tenha transformado a maior parte da nação em exército de reserva, encerrado em casernas-prisões.
Sem dúvida alguma que, por fim, graças à experiência das lutas quotidianas e aos esforços conscientes dos partidos socialistas, a consciência progride gradualmente; se isolarmos este processo, podemos seguir pela imaginação o desenvolvimento até que a maior parte do povo pertença aos sindicatos e às organizações políticas e esteja unida por um espírito de solidariedade e pelo reconhecimento de um objetivo único. Se este processo pudesse realmente ter lugar quantitativamente sem ser afetado qualitativamente, o socialismo poderia, num dado momento do século XXI ou XXII, ser realizado pacificamente por um "ato civil" consciente e unânime.
Mas toda a questão é que os processos que constituem as premissas históricas do socialismo não se desenvolvem isoladamente umas das outras, mas limitam-se mutualmente: logo que atingem um certo ponto, que depende de numerosas circunstâncias, mas está em todo o caso muito afastado do seu limite matemático, sofrem uma modificação qualitativa; a sua combinação complexa origina então o fenômeno a que nós chamamos revolução social.
Comecemos pelo processo mencionado em último lugar: o processo da consciência. Este progresso realiza-se, sabemo-lo muito bem, não nas academias onde se reteria o proletariado artificialmente por cinqüenta, cem ou quinhentos anos, mas no curso da própria vida, que os operários na sociedade capitalista conhecem sob todos os seus aspectos, sobre a base de uma luta de classes de todos os momentos. O progresso da consciência do proletariado transforma a luta de classe, torna-a mais profunda e volta-se cada vez mais em direção ao seu objetivo, o qual, por sua vez, implica uma reação correspondente por parte da classe dominante. A luta do proletariado contra a burguesia atingirá o seu desenlace muito antes de as grandes empresas começarem a dominar todos os ramos da indústria.
Além disso, é naturalmente verdadeiro que o progresso da consciência depende do crescimento numérico do proletariado, e que a ditadura do proletariado pressupõe que este se torne suficientemente numeroso para levar de vencida a resistência da contra-revolução burguesa. Mas isso não significa absolutamente que "a grande maioria" da população se deva tornar proletária, nem a grande maioria do proletariado conscientemente socialista. É claro que o exército conscientemente revolucionário do proletariado deve ser mais forte do que o exército contra-revolucionário do capital, enquanto que as camadas intermediárias da população, duvidosas ou indiferentes, devem estar numa situação tal que o regime da ditadura do proletariado as lance para o lado da revolução em vez de as entregar aos seus inimigos; eis que a política proletária deve tomar em consideração natural e conscientemente.
E, tudo isto, por sua vez, pressupõe a hegemonia da indústria sobre a agricultura e a dominação da cidade sobre o campo.
Vamos agora empreender o exame das premissas do socialismo na ordem decrescente de generalidade, e na ordem crescente de complexidade.
1.O socialismo não é só uma questão de igualdade na distribuição, mas também de planificação na produção. O socialismo, isto é, a produção cooperativa em grande escala só é possível quando o desenvolvimento das forças produtivas é suficiente para que as grandes empresas sejam mais produtivas do que as pequenas.
Quanto mais as grandes empresas ultrapassarem as pequenas, isto é, mais desenvolvida estiver a técnica, mais vantajosa, do ponto de vista econômico se torna a produção socializada; mais elevado, por conseguinte, deve ser o nível da cultura de toda a população, em conseqüência da igualdade na distribuição fundada sobre a planificação da produção.
Esta primeira premissa objetiva do socialismo existe desde há muito tempo: desde que a divisão social do trabalho conduziu à divisão manufatureira do trabalho. Existe numa escala ainda maior desde que a manufatura deu lugar, na fábrica ao maquinismo. As grandes empresas tornaram-se sempre mais vantajosas: a sua socialização teria enriquecido sempre muito a sociedade. É claro que, se todas as oficinas artesanais se tivessem tornado propriedade coletiva dos artesãos, eles não tinham enriquecido nem mais um tostão; pelo contrário, a transformação das manufaturas em propriedade coletiva dos trabalhadores parcelares, como a passagem das fábricas para as mãos dos operários que aí estão empregados -- ou, mais exatamente, a passagem de todos os meios da grande produção industrial para as mãos de toda a população -- elevaria incontestavelmente o nível de vida do povo; e isto tanto mais quanto mais elevado fosse o estágio atingido pela produção em grande escala.
Cita-se freqüentemente, na literatura socialista, o exemplo do deputado inglês, Bellers que, em 1696, um século antes da conspiração de Babeuf, submeteu ao Parlamento um projeto de sociedades cooperativas provendo cada uma inteiramente às suas necessidades. Segundo Bellers, estas cooperativas de produção deviam compor-se de duzentas a trezentas pessoas. Não podemos discutir aqui esta tese; aliás não é necessária para o que nos propomos; o que nos importa é que, desde o fim do século XVII, a economia coletiva, mesmo concebida em grupos de cem, duzentas, trezentas, ou quinhentas pessoas, era considerada como vantajosa do ponto de vista da produção.
Nos começos do século XIX, Fourier apresentou os planos dos seus "falanstérios", associação de produtores-consumidores contando cada uma de duas a três mil pessoas. Os cálculos de Fourier nunca brilharam pela sua exatidão; mas, em todo o caso, inspirando-se no desenvolvimento das manufaturas da sua época, deu às suas comunidades econômicas uma base bastante mais larga do que no outro exemplo citado. É todavia claro que, tanto as associações de John Bellers como os falanstérios de Fourier se aproximaram bastante mais, pela sua natureza, das comunas econômicas livres com as quais sonham os anarquistas, e cujo caráter utópico não está ligado à sua "impossibilidade" ou ao fato de serem "contra a natureza" -- as comunas comunistas da América provaram que eram possíveis --, mas porque estão atrasadas cem ou duzentos anos com relação ao desenvolvimento da economia.
Por um lado, o desenvolvimento da divisão social do trabalho, do maquinismo por outro, fazem com que seja o Estado o único organismo cooperativo que pode utilizar as vantagens da produção coletiva em grande escala. Além disso, tanto por causas econômicas como políticas, a produção socialista não pode confinar-se aos limites dos estados individuais.
No final do último século, um socialista alemão que não partilhava o ponto de vista marxista, Atlanticus, calculou as vantagens econômicas que resultariam da aplicação da economia socialista a uma unidade como a Alemanha Atlanticus não se distinguia, de modo algum, pelos seus rasgos de imaginação. As suas idéias moviam-se geralmente no círculo da rotina econômica do capitalismo. Fundava os seus argumentos em obras autorizadas de agrônomos e engenheiros modernos. Isto não enfraqueceu a sua argumentação, é antes pelo contrário o seu lado forte, porque evita assim cair num otimismo injustificado. Atlanticus chega sempre à seguinte conclusão: com uma organização socialista conveniente da economia, apelando para os recursos técnicos dos meados do século XIX, a renda dos trabalhadores poderia ser duplicada ou triplicada, enquanto que o dia de trabalho diminuiria para metade.
Não pensemos entretanto que foi Atlanticus o primeiro a mostrar a superioridade econômica do socialismo. A produtividade do trabalho nas grandes empresas, por um lado, as crises econômicas a sublinharem a necessidade de uma planificação da produção, por outro, constituíram provas bastante mais convincentes da necessidade do socialismo do que Atlanticus com a sua contabilidade. Teve, porém, o mérito de ter passado para números, aproximadamente, esta superioridade.
Do que precede, podemos concluir que o ulterior crescimento da potência técnica do homem tornará o socialismo sempre mais vantajoso; que as premissas técnicas suficientes da produção coletiva já existem há cem ou duzentos anos; e que na hora atual, não é só no plano nacional que o socialismo apresenta uma superioridade técnica, mas também -- e esta superioridade é colossal -- à escala mundial.
Entretanto, não basta apenas a superioridade técnica do socialismo para assegurar a sua realização. Não foi sob uma forma socialista, mas sob uma forma capitalista que, no decurso dos séculos XVIII e XIX, se manifestou a superioridade da produção em grande escala. Nem os projetos de Bellers, nem os de Fourier foram aplicados. Porquê? Porque não existiam, na sua época, forças sociais aptas a aplicá-los e prontas a fazê-lo.
2. Passamos agora das premissas técnico-produtivas do socialismo às premissas sócio-econômicas. Se nos referíssemos aqui, não a uma sociedade dilacerada pelo antagonismo das classes, mas a uma comunidade homogênea que escolhesse conscientemente a forma da sua economia, os cálculos de Atlanticus seriam, sem dúvida alguma, absolutamente suficientes para que se empreendesse a construção do socialismo.
É, aliás, sob este ângulo que Atlanticus, pertencendo a um tipo de socialistas absolutamente vulgar, considerava a sua obra. Ora, na hora atual, é unicamente nos limites dos negócios privados de uma só pessoa ou de uma companhia que este ponto de vista encontra a sua aplicação. É sempre com toda a razão que se espera ver os proprietários das empresas aceitar um projeto qualquer de reforma econômica, como a introdução de novas máquinas, de novas matérias primas, de um novo modo de organização do trabalho, ou de um novo sistema de remuneração, sendo unicamente necessário que se possa mostrar que este projeto apresenta uma vantagem comercial.
Mas, tratando-se da economia de toda a sociedade, isso não basta. Aqui, interesses opostos entram em conflito. O que é vantajoso para um, é desvantajoso para outro. O egoísmo de uma classe não se opõe só ao de uma outra classe; é igualmente pernicioso para toda a comunidade. Por conseguinte, para que o socialismo possa ser realizado, é necessário que, entre as classes antagônicas da sociedade capitalista, exista uma força social que tenha interesse, pelo fato da sua situação objetiva, em o realizar, que seja bastante poderosa para poder levar de vencida a resistência dos interesses hostis.
Um dos méritos essenciais do socialismo científico é ter descoberto teoricamente essa força social no proletariado, de ter mostrado que esta classe, que se desenvolve inevitavelmente com o capitalismo, só pode encontrar a salvação no socialismo e que a doutrina do socialismo não pode, com o tempo, deixar de se tornar a ideologia do proletariado.
É pois fácil compreender o enorme passo atrás que dá Atlanticus ao afirmar que, uma vez demonstrado que "transferindo os meios de produção para o Estado, se pode não só assegurar o bem estar geral, mas reduzir o dia de trabalho, torna-se indiferente saber se a teoria da concentração do capital e do desaparecimento das classes intermédias está ou não confirmada".
Segundo Atlanticus, desde que tenham sido demonstradas as vantagens do socialismo, "não serve para nada repousar nas esperanças que se põem no fetiche do desenvolvimento econômico, é necessário fazer investigações extensas e empreender (!) uma preparação ampla e completa da passagem da produção privada à produção estatal ou social".
Quando critica a tática puramente oposicionista dos social-democratas e sugere que se "empreenda" imediatamente a preparação da passagem para o socialismo, Atlanticus esquece que os social-democratas não possuem ainda o poder necessário, e que Guilherme II, Bulow e a maioria do Reichstag alemão, embora tendo o poder nas suas mãos, não têm a menor intenção de introduzir o socialismo. Os planos socialistas de Atlanticus não são, para os Hohenzollern, mais convincentes do que eram, para os Bourbons da Restauração, os planos de Fourier, não obstante o fato de este último encontrar um fundamento para as suas utopias políticas na imaginação apaixonada que mostrava no domínio da teoria econômica, enquanto Atlanticus fundava a sua política, não menos utópica, numa convincente contabilidade de merceeiro, de uma sobriedade de filisteu.
Qual o nível que deve atingir a diferenciação social para que possa ser realizada a segunda premissa do socialismo? Por outros termos, qual deve ser o peso numérico relativo do proletariado? Deve constituir metade, dois terços, nove décimos da população? Seria uma empresa totalmente desesperada tentar definir, de maneira puramente aritmética, os limites desta segunda premissa do socialismo. Para tentar uma tal esquematização, seria necessário, em primeiro lugar, saber exatamente quem se deve incluir na categoria do "proletariado". Será necessário incluir aí a vasta classe dos semi-proletários, dos semi-camponeses? Será necessário incluir as massas de reversa do proletariado industrial, que, por um lado, se fundam no proletariado parasitário dos mendigos e dos ladrões, e por outro, enchem as ruas das cidades como pequenos comerciantes representando, com relação ao sistema econômico tomam no seu conjunto, um papel de parasitas? Eis um problema que não é nada simples.
A importância do proletariado depende inteiramente do papel que toma na produção em grande escala. Na sua luta pela dominação política, a burguesia apóia-se no poder econômico. Antes de se apoderar do poder político, concentra os meios de produção nas suas mãos. É isso que determina o seu peso específico na sociedade. O proletariado, a despeito de todas as fantasmagorias dos cooperativistas, continuará desprovido dos meios de produção enquanto a revolução socialista não se tornar uma realidade. Os meios de produção pertencem à burguesia, mas é ele o único que os pode pôr em movimento: daqui resulta a sua força social.
Do ponto de vista da burguesia, o proletariado é pois um meio de produção que, em conjunto, não constitui mais do que um mecanismo unificado. Mas o proletariado é a única parte do mecanismo que não é automática e, apesar de todos os esforços, não pode ser reduzido à condição de autômato. A sua situação dá ao proletariado o poder de suspender à vontade, parcial ou totalmente, o próprio funcionamento da economia da sociedade, por greves parciais ou pela greve geral. Segue-se que a importância do proletariado -- suposta numericamente imutável -- cresce na proporção da importância das forças produtivas que põe em movimento; quer dizer que um proletário de uma grande fábrica é, em igualdade de circunstâncias, uma grandeza social mais elevada do que um operário artesanal, e um operário da cidade uma grandeza mais elevada do que um operário do campo.
Por outras palavras, o papel político do proletariado é tanto mais importante quanto mais a produção em grande escala dominar a pequena produção, a indústria dominar a agricultura, a cidade dominar o campo. Consideremos a história da Alemanha ou da Inglaterra na época em que o proletariado destes países formava a mesma fração da nação que o proletariado forma hoje na Rússia: veremos que não só não representava mas também a sua importância objetiva não lhe permitia representar, um papel comparável ao que representa, na hora atual, o proletariado russo.
O mesmo acontece, já o vimos, com o papel das cidades. Quando, como é atualmente o caso da Rússia, a população das cidades não era na Alemanha mais de 15% da de todo o país, era inimaginável ver as cidades alemães tomarem, na vida econômica e política do país, o papel que tomam hoje as cidades russas. A concentração nas cidades de grandes instituições industriais e comerciais, a ligação estabelecida pelos caminhos de ferro entre as cidades e as províncias, deram às nossas cidades uma importância que excede de longe a que resulta apenas do número dos seus habitantes; a sua importância aumentou muitíssimo mais do que o número da sua população, enquanto o aumento desta, por sua vez, ultrapassou o crescimento natural da população de todo o país. Na Itália, em 1848, o número de trabalhadores artesãos -- proletários e mestres independentes em conjunto -- elevava-se a 15% da população, isto é, tanto quanto os artesãos e os proletários em conjunto, na Rússia, na hora atual. Mas o seu papel era incomparavelmente mais restrito do que o papel representado na Rússia pelo proletariado industrial moderno.
É pois inútil -- deve agora ser evidente -- o esforço de definir previamente qual a produção da população total que deve pertencer ao proletariado no momento da conquista do poder político. Daremos alguns números brutos que indicam qual é, na hora atual, a importância numérica relativa do proletariado dos países avançados.
Na Alemanha, em 1895, a população ativa, não compreendendo o exército, os funcionários e as pessoas sem profissão definida, era de 20 milhões e meio de pessoas, das quais doze milhões e meio de proletários (assalariados industriais, assalariados agrícolas e criados); o número de operários, industriais ou agrícolas, era de 10,75 milhões. Dos 8 milhões restantes, muitos eram na realidade também proletários, como os operários a domicílio e os membros da família que trabalhavam com eles, etc. O número de assalariados na agricultura, tomada à parte, era de 5,75 milhões. A população agrícola constituía 36% de toda a população do país. Estes números, repetimo-lo, são de 1895. Os onze anos posteriores trouxeram incontestavelmente uma enorme mudança no sentido de um aumento da relação entre a população urbana e a população agrícola (que, em 1882, constituía 42% do total), da relação entre o proletariado industrial e o proletariado agrícola, e, finalmente, do total do capital produtivo por operário industrial. Mas bastam os números de 1895 para mostrar que o proletariado alemão constitui há muito tempo já a força produtiva dominante do país.
A Bélgica, com a sua população de 7 milhões de habitantes, é um país puramente industrial. Em cada 100 pessoas que têm uma ocupação, 41 pertencem à indústria no sentido estrito do termo, e só 21 à agricultura. Em cada 3 milhões de pessoas, em números redondos, que exercem um ofício lucrativo, cerca de 1,8 milhões, portanto 60%, são proletários. Este número torna-se-ia mais expressivo se acrescentássemos ao proletariado, fortemente diferenciado, os elementos sociais que lhe são próximos, os pretensos produtores "independentes" (que, independentes do capital só na forma, lhe estão na realidade acorrentados), os pequenos funcionários, os soldados, etc.
Mas o primeiro lugar, quanto à industrialização da economia e à proletarização da população, pertence incontestavelmente à Inglaterra. Em 1901, o número de pessoas empregadas na agricultura, na exploração das florestas e na pesca era, neste país, de 2,3 milhões; na indústria, comércio e transportes, de 12,5 milhões.
Vemos que, nos principais países da Europa, a população das cidades ultrapassa em número a dos campos. Todavia a sua preponderância não está ligada somente à massa de forças produtivas que constitui, mas também à qualidade dos elementos que a compõem. A cidade atrai os elementos mais enérgicos, mais capazes e mais inteligentes do campo. Isto é difícil de provar por estatísticas, embora o exame da composição de idades da população urbana, comparada com a da população rural, forneça uma prova indireta. Este último fato tem uma significação própria. Na Alemanha, calculou-se que havia em 1896, 8 milhões de pessoas empregadas na agricultura e 8 milhões na indústria. Mas, se se dividir a população por grupos de idade, vê-se que a agricultura contava, entre 14 e 40 anos, um milhão de pessoas válidas a menos do que a indústria. São pois "os velhos e os jovens" que continuam, sobretudo, no campo.
Tudo isto nos leva a concluir que a evolução econômica -- o crescimento da indústria, das grandes empresas, das cidades, do proletariado em geral e do proletariado industrial em particular -- já preparou o terreno, não só para a luta do proletariado pelo poder político, mas também para a conquista deste poder.
3.Chegamos agora à terceira premissa do socialismo: a ditadura do proletariado. É no plano político que as premissas subjetivas do socialismo se associam às suas premissas objetivas. Em certas condições sócio-econômicas precisas, uma classe adota conscientemente um objetivo determinado: a conquista do poder político; ela une as suas forças, avalia a força do inimigo e aprecia a situação. Mesmo nesta terceira esfera, no entanto, o proletariado não é absolutamente livre. Além dos fatores subjetivos -- a consciência, a preparação e a iniciativa, cujo desenvolvimento têm também a sua lógica própria -- o proletariado, na execução da sua política, choca-se com um certo número de fatores objetivos, como a política das classes dominantes e as instituições estatais existentes (tais como o exército, as escolas de classe, a Igreja de Estado, as relações internacionais, etc.).
Ocupemo-nos, em primeiro lugar, das condições subjetivas: o grau de preparação do proletariado para a revolução socialista. Não basta naturalmente que, medida pelo padrão da técnica, a economia socialista se tenha tornado vantajosa do ponto de vista da produtividade do trabalho social. Já não basta que a diferenciação social fundada sobre esta técnica tenha criado um proletariado que em virtude do seu número e do seu papel econômico, seja a classe principal, e tenha objetivamente interesse no socialismo. É necessário, além disso, que esta classe esteja consciente dos seus interesses objetivos; é necessário que ela compreenda que não existe saída para ela fora do socialismo; é necessário que ela se una num exército bastante poderoso para conquistar, numa luta aberta, o poder político.
Seria estúpido, na hora atual, negar a necessidade de o proletariado se preparar para uma tal tarefa. Só os blanquistas à antiga podem esperar a vitória da iniciativa de organizações conspirativas estruturadas independentemente das massas; no pólo oposto, só os anarquistas poderiam esperar uma explosão espontânea das massas, uma explosão elementar, uma explosão que ninguém poderá dizer como acaba. Os social-democratas falam da conquista do poder como uma ação consciente de uma classe revolucionária.
Mas muitos ideólogos socialistas (ideólogos no pior sentido do termo: o de homens que invertem tudo) falam em preparar o proletariado para o socialismo no sentido de o regenerar moralmente: o proletariado, a própria Humanidade em geral, deveriam primeiramente libertar-se da sua velha natureza egoísta, o altruísmo deveria dominar a vida social, etc. Como estamos ainda bastante longe de um tal estado de coisas, e como a natureza humana muda muito lentamente, eis o socialismo adiado por vários séculos. Um tal ponto de vista parece provavelmente muito realista e evolucionista, etc., mas é, de fato, superficial e moralizante.
Admite-se que uma psicologia socialista se deve desenvolver antes do advento do socialismo; por outros termos, que é possível, para as massas, adquirir uma psicologia socialista sob o capitalismo. Será necessário aqui não confundir o esforço consciente em direção ao socialismo com uma psicologia socialista. Esta última supõe a ausência de motivações egoístas na vida econômica; enquanto que, se o proletariado aspira ao socialismo e luta pelo socialismo, isto resulta da sua psicologia de classe. Seja qual for o número de pontos comuns que possa haver entre a psicologia de classe do proletariado e a psicologia socialista sem classe, um profundo abismo não deixa de as separar.
A luta conduzida em comum contra a exploração cria magníficas manifestações de idealismo, de solidariedade e de sacrifício, mas, ao mesmo tempo, a luta pela existência individual, o abismo sempre medonho da pobreza, a diferenciação nas fileiras dos próprios trabalhadores, a pressão exercida de baixo pelas massas ignorantes e a influência corruptora dos partidos burgueses não permitem que estas manifestações magníficas se desenvolvam plenamente. Todavia embora continue egoísta e filisteu, e sem ultrapassar em "valor humano" o representante médio das classes burguesas, o operário médio sabe por experiência que as suas necessidades e os seus desejos naturais mais simples só poderão ser satisfeitos sobre as ruínas do sistema capitalista.
Os idealistas exaltam a longínqua geração futura que se tornará digna do socialismo exatamente como os cristãos exaltam as primeiras comunidades cristãs.
Fosse qual fosse a psicologia dos primeiros adeptos do cristianismo (e os Atos dos Apóstolos relatam casos de roubo da propriedade comum), em todo o caso, quando se começou a expandir, o cristianismo não só falhou nos seus esforços para regenerar as almas de toda a população, mas ele próprio degenerou, tornando-se materialista e burocrático; a prática da instrução fraterna de um cristão por outro cristão cedeu lugar ao papismo, a mendicidade errante ao parasitismo monacal; em suma, a cristandade, longe de submeter-se-lhes; não foi o fruto das atitudes insuficientes ou da avidez dos Pais da Igreja, mas sim das leis inexoráveis que fazem depender a psicologia humana das condições da vida social e do trabalho social; os Pais da Igreja não fizeram senão demonstrar esta dependência nas suas pessoas.
Se o socialismo tivesse por fim criar uma nova natureza humana nos limites da antiga sociedade, nada mais seria do que uma nova edição das velhas utopias moralizantes. O socialismo não tem por fim criar uma psicologia socialista como premissa do socialismo, mas sim criar as condições de vida socialista como premissas de uma psicologia socialista.
Capítulo VIII
Um governo operário na Rússia e o socialismo
Mostramos que as premissas objetivas de uma revolução socialista já foram realizadas pelo desenvolvimento econômico dos países capitalistas avançados. Mas que poderemos dizer, no que respeita à Rússia? Acaso, poderemos esperar que a passagem do poder para as mãos do proletariado russo seja o início da transformação da nossa economia nacional numa economia socialista? Respondemos a esta questão há um ano, num artigo que foi submetido, nos órgãos das duas facções do nosso partido, ao fogo cruzado de uma severa crítica. Dizíamos nós:
"A classe operária não esperava milagres da Comuna", diz-nos Marx. Já não devemos hoje esperar milagres imediatos da ditadura do proletariado. O poder político não é todo-poderoso. Seria absurdo acreditar que basta ao proletariado, para substituir o capitalismo pelo socialismo, tomar o poder e fazer em seguida alguns decretos. Um sistema econômico não é o produto de medidas tomadas pelo governo. Tudo quanto o proletariado pode fazer é utilizar com toda a energia possível o poder político para facilitar e encurtar o caminho que conduz a evolução econômica para o coletivismo.
"O proletariado começará pelas reformas que figuram naquilo a que chamam o programa mínimo; e a própria lógica da sua posição obrigá-los-á a passar diretamente para medidas coletivistas”.
"A introdução do dia de oito horas e de um imposto sobre a renda rapidamente progressiva será comparativamente fácil, embora o centro de gravidade não resida na outorga dos "atos", mas na organização da sua realização na prática. Mas a principal dificuldade -- e é aqui que se situa a passagem ao coletivismo -- residirá na organização, pelo Estado, da produção nas fábricas que tenham sido fechadas pelos seus proprietários em resposta à outorga destes atos. Decretar uma lei para abolir o direito de herança e colocar esta lei em prática será, comparativamente, uma tarefa fácil. As heranças sob forma de capital-dinheiro não embaraçam decerto o proletariado, nem pesarão na sua economia. Mas, para preencher a função de herdeiro da terra ou do capital industrial, o Estado operário tem de estar pronto a empreender a organização da produção social”.
"Poder-se-á dizer a mesma coisa, mas num grau superior, da expropriação -- com ou sem indenização. A expropriação com indenização seria politicamente vantajosa, mas financeiramente difícil, enquanto a expropriação sem indenização seria financeiramente vantajosa, mas politicamente difícil. Mas será na organização da produção que se irão encontrar as maiores dificuldades. Repetimos: um governo do proletariado não é um governo capaz de fazer milagres”.
"A socialização da produção começará nos ramos da indústria em que ela apresenta menores dificuldades. No primeiro período, a produção socializada será limitada a um certo número de oásis, ligados às empresas privadas pelas leis da circulação de mercadorias. Quanto mais se estender o domínio da produção social e mais evidentes se tornarem as suas vantagens, mais sólido se sentirá o novo regime político e mais resolutas se tornarão as medidas econômicas ulteriores do proletariado. Poderá apoiar-se (e apoiar-se-á), para tomar estas medidas, não só nas forças produtivas nacionais, mas também na técnica do mundo inteiro, exatamente como, na sua política revolucionária, não se apoiará somente na sua experiência das relações de classes no seu país mas também em toda a experiência histórica do proletariado internacional".
A dominação política do proletariado é incompatível com a sua escravatura econômica. Seja qual for a bandeira política sob a qual o proletariado tenha ascendido ao poder, ele será obrigado a tomar o caminho de uma política socialista. Seria o máximo do utopismo pensar que o proletariado, depois de ter ascendido à dominação política através do mecanismo interno de uma revolução burguesa, possa, ainda que o deseje, limitar a sua missão a criar as condições democráticas e republicanas da dominação social da burguesia.
Mesmo que seja temporária, a dominação política do proletariado enfraquecerá num grau extremo a resistência do capital, que tem constantemente necessidade do apoio do Estado, e fará impulsionar num surto gigantesco a luta econômica do proletariado. Os operários não poderão deixar de reclamar o apoio do governo revolucionário para os grevistas, e um governo que se apóia nos operários não poderá recusá-lo. Mas isto terá como conseqüência anular os efeitos da existência dos operários, não só no terreno político, mas também no terreno econômico; reduzirá a um Estado de ficção a propriedade privada dos meios de produção.
Estas conseqüências sociais e econômicas, inevitáveis na ditadura do proletariado, manifestar-se-ão muito cedo, muito antes de estar terminada a democratização do sistema político. Cai a barreira entre o programa mínimo e o programa máximo logo que o proletariado toma o poder.
O primeiro problema que o regime proletário terá de abordar logo que chegue ao poder, é a questão agrária, à qual está ligada a sorte das grandes massas da população russa. Na solução desta questão, como na de todas as outras, o proletariado tomará por guia o objetivo fundamental da sua política econômica: dispor de um domínio tão vasto quanto possível para organizar uma economia socialista. Entretanto, esta política agrícola, tanto na sua forma como no ritmo da sua prática, terá de ser determinada em função dos recursos materiais de que o proletariado disponha, assim como pelo desejo de não lançar possíveis aliados nas fileiras da contra-revolução.
A questão agrária, isto é, a questão da sorte da agricultura tal como se coloca em termos de relações sociais, não se reduz, bem entendido, à questão da terra, isto é, às formas da propriedade da terra. Mas não há dúvida alguma que a solução trazida ao problema, embora não decida a evolução da agricultura, decidirá pelo menos a política agrária do proletariado: por outras palavras, o que o regime proletário fará da terra deve estar intimamente ligado à sua atitude em geral com relação ao curso e às necessidades do desenvolvimento da agricultura. É por esta razão que a questão da terra ocupa o primeiro lugar.
Uma solução do problema da terra à qual os social-revolucionários deram uma popularidade que está longe de ser irreprovável, é a socialização de toda a terra. Eis um termo que, uma vez desembaraçado da sua marca ou patente, européia, nada mais significa do que a "igualdade no emprego da terra" ou a "redistribuição negra". O programa da igual redistribuição da terra supõe pois a expropriação de toda a terra, não só da terra que pertence a proprietários privados em geral ou a camponeses proprietários, mas também da terra comunitária.
Se nos lembrarmos que a expropriação deve ser um dos primeiros atos do novo regime, isto é, num momento em que as relações da economia mercantil e capitalista são ainda completamente dominantes, teremos de constatar que os camponeses seriam (ou melhor, pensariam ser) as primeiras "vítimas" da expropriação; se nos lembrarmos que, durante várias décadas, o camponês pagou o imposto que tornaria sua propriedade a terra que lhe foi designada em partilha; se nos lembrarmos que alguns dos nossos camponeses mais abastados adquiriram vastas extensões de terra fazendo incontestavelmente sacrifícios consideráveis, sacrifícios consentidos por uma geração que ainda vive; poderemos facilmente imaginar a formidável resistência que provocaria a tentativa de transformar em propriedade estatal as terras comunitárias e as que pertencem a pequenos proprietários.
Ao agir desta maneira, o novo regime começaria por levantar no campesinato uma enorme oposição contra ele.
E por que razão deveriam as terras comunitárias e as dos pequenos proprietários ser transformadas em propriedade do Estado? A fim de as tornar disponíveis, de qualquer maneira, para a sua exploração econômica, "igual" por todos os agricultores, compreendendo os atuais camponeses sem terra e os trabalhadores agrícolas. Assim, do ponto de vista econômico, o novo regime nada ganharia com a expropriação dos pequenos proprietários e das terras comunitárias, porque, após a redistribuição, as terras estatais ou públicas seriam cultivadas como terras privadas; e, do ponto de vista político, o novo regime cometeria um erro grosseiro, porque levantaria imediatamente a massa do campesinato contra o proletariado das cidades, cabeça da política revolucionária.
Além disso, uma distribuição igual das terras supõe que o emprego de mão de obra assalariada será proibida por lei. Ora, a abolição do trabalho assalariado pode e deve ser uma conseqüência das reformas econômicas, mas não previamente travada por meios jurídicos. Não basta proibir aos proprietários agrícolas capitalistas o emprego de mão de obra assalariada, é necessário antes assegurar aos cultivadores sem terra uma existência racional do ponto de vista social e econômico. Sob a égide da igualdade no uso da terra, proibir o emprego de mão de obra assalariada significaria, por um lado, obrigar os cultivadores sem terra a instalar-se em parcelas mínimas, por outro lado, obrigar o governo a fornecer-lhes os instrumentos e os fundos necessários à sua produção, socialmente irracional.
Compreende-se bem que o proletariado, quando intervier na organização da agricultura, não começará por ligar aos seus dispersos pedaços de terra cultivadores dispersos, mas por fazer explorar as grandes propriedades pelo Estado ou pelas comunas. Só quando a socialização da produção estiver bem firme é que o processo da socialização poderá avançar, no sentido da interdição do trabalho assalariado. A pequena granja capitalista tornar-se-à então impossível; mas o mesmo não acontecerá às pequenas explorações que vivem em economia mais ou menos fechada, cuja expropriação não entra de modo algum nos planos do proletariado socialista.
Em todo o caso, não podemos empreender a aplicação de um programa de distribuição igual que, por um lado, comporta uma expropriação sem objeto, puramente formal, dos pequenos proprietários, e por outro, provoca o emparcelamento completo das grandes propriedades. Esta política, que não passa de desperdício, do ponto de vista econômico, só poderia ter um móbil ulterior utópico e reacionário; acima de tudo, só serviria para enfraquecer politicamente o partido revolucionário.
Até que ponto pode a política socialista da classe operária ser aplicada às condições econômicas da Rússia? Existe uma coisa que podemos dizer com certeza: encontrar-se-á mais depressa perante obstáculos políticos do que perante o atraso técnico do país. Sem o apoio estatal direto do proletariado europeu, a classe operária russa não poderá manter-se no poder e transformar a sua dominação temporária em ditadura socialista durável. Sobre isto, dúvida alguma é permitida. Mas também não há dúvida nenhuma de que uma revolução socialista no ocidente tornar-nos-á diretamente capazes de transformar a dominação temporária da classe operária numa ditadura socialista.
Em 1904, Kautski, ao discutir as perspectivas do desenvolvimento social e ao avaliar as possibilidades de uma próxima revolução na Rússia, escreveu: "Na Rússia, a revolução não pode conduzir imediatamente a um regime socialista. As condições econômicas do país estão longe de estar maduras para isso". Mas a revolução russa daria certamente um poderoso impulso ao movimento proletário no resto da Europa, e as lutas que daí resultariam poderiam muito bem levar ao poder o proletariado alemão. "Tal resultado", continuava Kautski, "deverá ter larga influência em toda a Europa. Deverá conduzir à dominação política do proletariado na Europa ocidental, dar ao proletariado da Europa oriental a possibilidade de encurtar as etapas do seu desenvolvimento e, copiando o exemplo da Alemanha, instaurar artificialmente instituições socialistas. A sociedade não pode, na sua totalidade, saltar artificialmente nenhuma das etapas do seu desenvolvimento, mas algumas das suas partes constituintes podem acelerar o seu desenvolvimento, porque não têm de suportar o fardo de tradições que os países mais antigos carregam. Isto pode acontecer, mas, como já dissemos, deixamos aqui o domínio do inevitável para se entrar no possível, e pode acontecer que as coisas se passem de outro modo".
Estas linhas foram escritas pelo teórico social-democrata alemão um momento em que examinava se uma revolução estalaria primeiro na Rússia ou no Ocidente. Depois, o proletariado russo revelou uma força colossal e ultrapassou as esperanças mais otimistas dos social-democratas russos. O curso da revolução russa foi determinado, pelo menos nos seus traços fundamentais. O que pertencia ao domínio do possível dois ou três anos antes, aproximou-se do provável e, tudo o indica, está muito próximo de se tornar inevitável.
Capítulo IX
A Revolução e a Europa
Em Junho de 1905 escrevíamos:
"Mais de meio século se passou depois de 1848, mais de meio século de incessantes conquistas do capitalismo no mundo inteiro; mais de meio século durante o qual a burguesia manifestou a sua sede demente de uma dominação pela qual não hesita em se bater ferozmente.
"Como um homem que, procurando o movimento perpétuo, encontra obstáculos após obstáculos, e acumula máquinas sobre máquinas para os ultrapassar, a burguesia modificou e reconstruiu o seu aparelho de Estado evitando um conflito "extra-legal" com as forças que lhe são hostis. Mas, assim como o nosso investigador acaba um dia por deparar com o inultrapassável obstáculo da lei da conservação da energia, assim a burguesia irá deparar finalmente com um último obstáculo para ela inultrapassável: os antagonismos de classe, que conduzirão inevitavelmente ao conflito.
"Criando laços entre todos os países pelo modo de produção e pelo comércio, o capitalismo fez do mundo inteiro um organismo único, econômico e político. Assim como o moderno sistema de crédito liga milhares de empresas através de laços indivisíveis e dá ao capital uma inacreditável mobilidade, que permite evitar muitas pequenas falências, mas é, ao mesmo tempo, a causa da amplitude sem precedentes das crises econômicas gerais, assim também os esforços econômicos e políticos do capitalismo, o seu mercado mundial, o seu sistema de monstruosas dívidas de Estado, os agrupamentos políticos de nações que reúnem todas as forças da reação numa espécie de truste mundial -- não só resistiram a todas as crises políticas individuais, mas também prepararam as bases de uma crise social de uma extensão inaudita.
"Recalcando todos os sintomas da doença à superfície, iludindo todas as dificuldades, adiando a solução dos problemas maiores da política interna e internacional, a burguesia acabou por adiar o desenlace; mas, por isso mesmo, preparou uma liquidação radical do seu papel, à escala mundial. Apressou-se a unir-se a todas as forças reacionárias, sem se preocupar com a sua origem. O papa e o sultão não são os seus amigos menores. A única razão que a impediu de estabelecer laços de amizade com o imperador da China, foi porque ele não representa força alguma. Era bastante mais proveitoso para a burguesia pilhar o seu território do que conservá-lo ao eu serviço, pagando-lhe as suas rendas pelas funções de polícia. Vemos pois que a burguesia fez depender largamente a estabilidade do seu sistema de Estados da precária estabilidade dos baluartes pré-capitalistas da reação.
"Isto dá aos acontecimentos que atualmente decorrem, um caráter internacional, e abre largos horizontes. A emancipação política da Rússia sob a direção da classe operária elevará esta classe a cumes históricos desconhecidos até esse dia, e dela faça a iniciadora da liquidação do capitalismo mundial, da qual a história realizou todas as condições objetivas".
Se o proletariado russo, tendo ascendido temporariamente ao poder, não levar a revolução, por sua própria iniciativa, a território europeu, será obrigado a fazê-lo pelas forças da reação feudal-burguesa européia. Será naturalmente inútil, na hora atual, determinar os métodos que empregará a revolução russa para se lançar ao assalto da velha Europa capitalista. Estes métodos poderão ser perfeitamente imprevistos. Tomemos a Polônia como exemplo dos laços entre a Leste revolucionário e o Ocidente revolucionário, entendendo-se que se trata mais de uma ilustração do nosso ponto de vista que de uma verdadeira previsão.
O triunfo da revolução na Rússia significará a vitória inevitável da revolução na Polônia. Não é difícil imaginar que a existência de um regime revolucionário nas dez províncias da Polônia russa deverá conduzir a uma revolta da Galizia e da Posnânia. Os governos dos Hohenzollern e dos Habsburgs responderão enviando forças militares para a fronteira polaca para, em seguida, a atravessar e esmagar o seu inimigo no seu verdadeiro centro: Varsóvia. É absolutamente evidente que a revolução russa não poderá deixar a sua vanguarda ocidental nas mãos da soldadesca austro-prussiana. Uma guerra contra os governos de Guilherme II e de Francisco José tornar-se-á, nestas condições, um ato de autodefesa por parte do governo revolucionário russo. Que atitude adotará então o proletariado da Áustria e da Alemanha? É evidente que não poderia ficar passivo enquanto os exércitos destes dois países conduzem uma cruzada contra-revolucionária. Uma guerra entre a Alemanha feudal-burguessa e a Rússia revolucionária conduzirá inevitavelmente a uma revolução proletária na Alemanha. A quem esta afirmação possa parecer demasiado categórica, respondendo pedindo-lhe que procure o acontecimento histórico que teria mais possibilidades de levar os operários alemães e os reacionários alemães a uma prova aberta de força.
Quando o nosso ministério de Outubro decretou imprevistamente a lei marcial na Polônia, espalhou-se um rumor absolutamente plausível segundo o qual esta medida teria sido tomada por instruções vindas diretamente de Berlim. Na véspera da dispersão da Duma, os jornais governamentais publicaram informações, apresentando-as como ameaças, a respeito das negociações em curso entre os governos de Berlim e de Viena, sobre a eventualidade de uma intervenção armada nos negócios internos da Rússia, com o fim de reduzir a sedição. Nenhuma espécie de desmentido oficial pôde enfraquecer o choque provocado por estas informações. Era claro que, nos palácios de três países vizinhos, se preparava uma sangrenta vingança contra-revolucionária. Poderiam as coisas ser de outro modo? Poderiam as monarquias semi-feudais dos países vizinhos ficar passivas enquanto as chamas da revolução queimavam as fronteiras do seus reinos?
Embora esteja ainda longe de ter conquistado a vitória, a revolução russa teve já os seus efeitos na Galizia através da Polônia. "Quem teria podido prever, há um ano -- afirmou Daszinski em Maio último, na conferência de Lvov do partido social-democrata -- o que se passa neste momento na Galizia? Este grande movimento camponês deixou estupefata a Áustria inteira. Zbaraz elegeu um social-democrata para o lugar de vice-preboste do conselho regional. Camponeses publicam um jornal socialista revolucionário destinado aos camponeses, intitulado A Bandeira Vermelha, realizam-se grandes comícios de camponeses de perto de 30.000 pessoas, manifestações atravessam as aldeias da Galizia, outrora tão calmas e apáticas, brandindo bandeiras vermelhas e cantando hinos revolucionários. "Que acontecerá quando o anúncio da nacionalização do solo vier da Rússia e atingir estes camponeses miseráveis?".
Há mais de dois anos, no decurso de uma discussão com o socialista polaco Luznia, Kautski apontou que a Rússia não deve ser já considerada como uma grilheta ligada aos pés da Polônia, nem a Polônia como uma testa de ponta oriental da Europa revolucionária cravada como unha nas estepes da barbárie moscovita. Se a revolução russa se desenvolver e conseguir a vitória, a questão polaca, segundo Kautski, "encontrará a sua acuidade, mas não no sentido que pensa Luznia. A sua ponta dirigir-se-á não contra a Rússia, mas contra a Áustria e a Alemanha e, se a Polônia serve a causa da revolução, o seu dever será, não defender a revolução contra a Rússia, mas estendê-la à Áustria e à Alemanha". Esta profecia está bem mais perto de se realizar do que Kautski o poderia pensar.
Mas uma Polônia revolucionária não é o único ponto de partida possível para uma revolução na Europa. Já indicamos que a burguesia se absteve sistematicamente de resolver muitas questões complexas e graves, tanto em política interna como externa. Os governos burgueses colocaram enormes massas de homens sob as armas, mas são no entanto incapazes de desembaraçar os nós enredados da política internacional. Só um governo que tenha o apoio da nação cujos interesses vitais estejam em jogo, ou ainda um governo que sinta o chão fugir sob os seus pés e seja inspirado pela coragem do desespero, pode lançar para o combate centenas e milhares de homens. Nas modernas condições de cultura política, de ciência militar, de sufrágio universal e de serviço militar obrigatório, só uma profunda confiança ou um aventureirismo insensato pode lançar duas nações para um conflito. Na guerra franco-prussiana de 1870, havia, de um lado, Bismarck, que combatia pela prussianização da Alemanha, o que, em última conseqüência, significava a unidade nacional, necessidade elementar reconhecida por todos os alemães; do outro lado o governo de Napoleão III, insolente, impotente, desprezado pela nação, pronto a lançar mão de qualquer aventura susceptível de lhe assegurar mais doze meses de existência. A mesma divisão de papéis conduziu à guerra russo-japonesa. Havia, de uma lado, o governo do Mikado, ao qual, até esse dia, nenhum proletariado revolucionário se opunha, que lutava pela dominação do capital japonês no Extremo-Oriente, do outro um governo autocrático que tinha feito a sua época e se esforçava por fazer esquecer as derrotas sofridas no interior por vitórias no exterior.
Nos velhos países capitalistas não há reivindicações "nacionais", isto é, reivindicações da sociedade burguesa na sua totalidade, das quais a burguesia dirigente se possa tornar a guardiã. Os governos da França, da Inglaterra, da Alemanha e da Áustria são incapazes de conduzir guerras nacionais. Os interesses vitais das massas, os interesses das nacionalidades oprimidas, a política interna bárbara de um país vizinho, já não são susceptíveis de levar um só governo burguês a fazer uma guerra que pudesse ter um caráter libertador, portanto nacional.
Por outro lado ainda, os interesses dos larápios capitalistas, que conduzem, de tempos a tempos, este ou aquele governo a entrar em conflito e a mostrar a sua força ao mundo, não podem suscitar qualquer resposta das massas. E é por isto que a burguesia não pode, ou não quer, proclamar, nem conduzir, guerras nacionais. E a que conduzem as guerras anti-nacionais modernas, é o que se pode ver das duas experiências recentes: na África do Sul e no Extremo-Oriente.
A severa derrota sofrida pelos conservadores imperialistas na Inglaterra não é devida, em última análise, às lições da guerra contra os Boers. Uma conseqüência bastante mais importante e mais ameaçadora da política do proletariado britânico que, depois de ter começado, avançará com botas de sete léguas. Quanto às conseqüências da guerra russo-japonesa, são, para o governo de São Petersburgo, suficientemente conhecidas para que seja necessário ocupar-nos delas. Mas, independentemente destas duas experiências, desde o momento em que o proletariado europeu começou a levantar-se pelas suas próprias forças, os governos europeus, recusaram-se sempre a colocá-lo perante a alternativa da guerra ou da revolução. É precisamente porque temem a revolta do proletariado que os partidos burgueses são obrigados, no próprio momento em que votam somas monstruosas para as despesas militares, a fazer declarações solenes a favor da paz, a sonhar com tribunais internacionais de arbitragem e mesmo com a organização dos Estados Unidos da Europa. Estas piedosas declarações não podem, naturalmente, abolir os antagonismos entre Estados, nem os conflitos armados.
A paz armada que se instaurou na Europa após a guerra franco-prussiana estava fundada num equilíbrio de forças que não supunha somente a inviolabilidade da Turquia, a partilha da Polônia e a salvaguarda da Áustria -- esse manto de Arlequim etnográfico -- mas também o suporte do absolutismo russo, armado até aos dentes, nas suas funções de polícia da reação européia.
A guerra russo-japonesa deu um severo golpe neste sistema, mantido artificialmente, no qual a autocracia ocupava uma posição de primeiro plano. A Rússia desapareceu por uns tempos do pretenso concerto das potências. O equilíbrio entre as potências estava destruído.
Por outro lado, as vitórias japonesas excitavam os instintos agressivos da burguesia capitalista, especialmente nas Bolsas, que representam um importante papel na política contemporânea. A possibilidade de uma guerra em território europeu aumentou consideravelmente. Conflitos amadurecem por todo o lado, e se, até ao presente, puderam ser regulados por meios diplomáticos, não há, entretanto, qualquer garantia de que estes meios possam subsistir durante muito tempo. Mas uma guerra européia significa inevitavelmente uma revolução européia.
Durante a guerra russo-japonesa, o partido socialista francês declarou que, se o governo francês interviesse em favor da autocracia, chamaria o proletariado a tomar as medidas mais resolutas, incluindo a revolta. Em Março de 1906, logo que o conflito franco-alemão em Marrocos atingiu o seu ponto culminante, o bureau socialista internacional resolveu, na eventualidade de uma ameaça de guerra "determinar os métodos de ação mais vantajosos para todos os partidos socialistas da Internacional e para toda a classe operária organizada, a fim de impedir a guerra ou de lhe pôr cobro". Naturalmente, não era mais do que uma resolução. É necessária uma guerra para pôr a prova a sua significação real, mas a burguesia tem toda a razão em evitar semelhante prova. No entanto, infelizmente para a burguesia, a lógica das relações internacionais é mais forte do que a lógica da diplomacia.
A bancarrota do Estado russo, quer seja o resultado da continuação da gestão dos negócios pela burocracia, quer seja declarada por um governo revolucionário que recuse pagar os pecados do antigo regime, terá na França terríveis conseqüências. Os radicais, que mantêm neste momento os destinos políticos da França nas suas mãos, assumiram, ao tomar o poder, todas as funções de proteção dos interesses do capital. É por isto que há toda a razão em admitir que a crise financeira resultante da bancarrota russa se repercutirá diretamente em França, e tomará aí a forma de uma aguda crise política, que só pode acabar com a passagem do poder para as mãos do proletariado. De uma forma ou de outra, seja por intermédio de uma revolução na Polônia, ou pelas conseqüências de uma guerra européia, ou pelos efeitos da bancarrota do Estado russo, a revolução atravessará a fronteira e penetrará nos territórios da velha Europa capitalista.
Mas, embora sem a pressão de acontecimentos exteriores como uma guerra ou uma bancarrota, a revolução pode produzir-se num futuro próximo, sob o efeito do extremo agravamento da luta das classes em qualquer país da Europa. Não estaremos formular aqui hipóteses sobre a questão de saber qual será o primeiro país a tomar o caminho da revolução, mas uma coisa é certa: é que, no último período e em todos os países europeus, as contradições entre as classes atingiram uma alto grau de intensidade.
O crescimento colossal da social-democracia alemã, no quadro de uma constituição semi-absolutista, conduzirá o proletariado a uma luta aberta contra a monarquia semi-feudal, como uma necessidade inelutável. A questão de uma grande guerra, como meio de resistência a um golpe de Estado político, tornou-se, no último ano, uma questão central na vida política do proletariado alemão. Em França, a passagem do poder para os radicais deixa ao proletariado as mão inteiramente livres, as mesmas mãos que, desde há muito tempo, estavam ligadas pela cooperação com os partidos burgueses na luta contra o nacionalismo e o clericalismo. O partido socialista, rico das imortais tradições de quatro revoluções, e a burguesia conservadora, que se dissimula sob a máscara do radicalismo, estão a frente. Em Inglaterra, onde, durante um século, os dois partidos burgueses jogaram regularmente o jogo da báscula do parlamentarismo, o proletariado, sob a influência de toda uma série de fatores, acaba justamente de tomar o caminho da separação política. Enquanto na Alemanha este processo levou duas décadas, a classe operária inglesa, que possui poderosos sindicatos e é rica em experiências no domínio das lutas econômicas, pode, em alguns saltos, juntar-se ao exército do socialismo continental.
A revolução russa exerce uma influência enorme sobre o proletariado europeu. Não contente em destruir o absolutismo russo, força principal da reação européia, ela criará, na consciência e no humor do proletariado europeu, as premissas necessárias da revolução.
A função dos partidos operários era e é a de revolucionar a consciência da classe operária, assim como o desenvolvimento do capitalismo revolucionou as relações sociais. Mas o trabalho de agitação e de organização nas fileiras do proletariado tem a sua inércia interna. Os partidos socialistas europeus -- especialmente o maior, a social-democracia alemã -- desenvolveram o seu conservadorismo na mesma proporção em que as grandes massas abraçaram o socialismo, e isto tanto mais quanto estas massas se tornaram mais organizadas e disciplinadas. Por conseguinte, a social-democrata, organização que abraça a experiência política do proletariado, pode, num certo momento, tornar-se um obstáculo direto ao desenvolvimento do conflito aberto entre os operários e a reação burguesa.
Por outros termos, o conservadorismo do socialismo propagandista nos partidos proletários pode, num dado momento, travar o proletariado na luta direta pelo poder. Mas a formidável influência exercida pela revolução russa mostra que esta influência destruirá a rotina e o conservadorismo de partido e colocará na ordem do dia a questão de uma prova de força aberta entre o proletariado e a reação capitalista. A luta pelo sufrágio universal tornou-se encarniçada na Áustria, em Saxe e na Prússia, sob a influência direta das greves de Outubro na Rússia. A revolução no Leste injetará no proletariado ocidental o seu idealismo revolucionário e acordará o desejo de "falar russo" com o inimigo. Se o proletariado russo se encontrar no poder, mesmo que seja apenas em conseqüência de um momentâneo concurso de circunstâncias na nossa revolução burguesa, encontrará a hostilidade organizada da reação mundial e encontrará, por outro lado, o proletariado mundial pronto a dar-lhe o seu apoio organizado.
Deixada com os seus próprios recursos, a classe operária russa será inevitavelmente esmagada pela contra-revolução desde que o campesinato se afaste dela; só terá a possibilidade de ligar a sorte do seu poder político e, por conseqüência, a sorte de toda a revolução russa, à da revolução socialista na Europa; lançará na balança da luta de classes de todo o mundo capitalista o enorme peso político e estatal que lhe terá dado um momentâneo concurso de circunstâncias na revolução burguesa russa. Tendo o poder de Estado nas suas mãos, os operários russos, com a contra-revolução atrás deles, lançarão aos seus camaradas do mundo inteiro o velho grito de união que será desta vez um apelo à luta final: Proletários de todos os países, uni-vos.
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